Decisão do CNJ sobre alienação fiduciária de imóveis: retrocesso ou proteção jurídica?
30 de outubro de 2024, 11h19
Neste ano, o mercado foi surpreendido com uma decisão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que limitou a constituição de alienação fiduciária de bens imóveis exclusivamente a entidades integrantes do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), cooperativas de crédito e administradoras de consórcio de imóveis, obrigando todas as demais pessoas (físicas e jurídicas) a utilizarem escritura pública para formalização da alienação fiduciária de imóveis.
A decisão ocorreu no julgamento do Procedimento de Controle Administrativo nº 0000145-56.2018.2.00.0000 e reconheceu a validade do Provimento nº 93/2020 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O entendimento corrobora o posicionamento, que até então era tido como minoritário, das Justiças do Pará, Maranhão, Paraíba e Bahia.
Os principais fundamentos do CNJ foram: o instrumento particular que trata de alienação fiduciária causa insegurança jurídica; o Estado deve intervir em determinadas relações entre particulares para conferir-lhes juridicidade e autenticidade; o artigo 108 do Código Civil exige a escritura pública nos contratos de oneração e/ou transmissão de propriedade imóvel; e a interpretação que mais harmoniza os dispositivos legais pertinentes é a de que a celebração de contratos de alienação fiduciária de bens imóveis por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, é restrita às entidades do SFI, cooperativas de crédito e administradoras de consórcio de imóveis.
Essa posição é um retrocesso significativo. Há anos o mercado privado utiliza o instrumento particular para a constituição de garantia fiduciária sobre imóveis, sendo que muitos desses documentos têm utilizado inclusive assinaturas eletrônicas em sua constituição. A forma como referidas garantias têm sido constituídas trazem segurança jurídica e celeridade na liberação dos recursos que baseiam a operação. Fundos de investimento, fundos imobiliários, companhias securitizadoras, empresas de fomento mercantil e fintechs de crédito desenvolveram estruturas que permitem a negociação de créditos garantidos por imóveis sem a necessidade da onerosa e burocrática escritura pública, tudo expressamente autorizado por lei.
Evolução legislativa
Quando dizemos que referida forma de atuação é (ou era) expressamente autorizada por lei, é fundamental analisar a evolução legislativa sobre a questão. O Código Civil de 1916 exigia, em seu artigo 134, II, escritura pública para atos constitutivos ou translativos de direitos reais. No entanto, a Lei nº 9.514 de 1997, na redação original do seu artigo 38, permitiu a celebração de contratos de alienação fiduciária por escritura pública ou instrumento particular, afastando expressamente a exigência do referido artigo 134, II, do Código Civil de 1916.
Ora, se a própria lei que rege o instituto da alienação fiduciária de imóvel estabelece que referida garantia pode ser outorgada por escritura pública ou instrumento particular e afasta a incidência prevista anteriormente, não há desarmonia legislativa que pudesse justificar uma interpretação tão restritiva (e contrária ao texto expresso da lei).
Mesmo com o Código Civil de 2002, o artigo 38 da Lei nº 9.514 de 1997, com a redação dada pela Lei nº 10.931 de 2004, permitiu o instrumento particular para a constituição de alienação fiduciária de bem imóvel nos casos de compra e venda com financiamento, mútuo, arrendamento mercantil e cessão de crédito com garantia real. Não se pode mencionar o efeito repristinatório do artigo 108 do Código Civil, em razão do que dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, aplicável à lei de 1997.
Por quase 30 anos permitiu-se a constituição de alienação fiduciária de bem imóvel por instrumento particular. No entanto, agora o CNJ decide “tutelar” essa relação entre particulares sob a justificativa de “conferir-lhes juridicidade e autenticidade”. O registro dessa garantia (que basicamente a torna pública para todos os interessados) já não atenderia essa finalidade?
Garantia de alienação fiduciária
Além disso, existem diversos instrumentos que sempre conviveram com a garantia de alienação fiduciária de imóvel incluída no próprio título, como ocorre, por exemplo, com as cédulas, em especial a própria cédula de produto rural. Referidos instrumentos, a partir de hoje, deverão ser elaborados em escritura pública ou ter a sua garantia concedida em instrumento separado?
Embora tenhamos o entendimento de que a atual posição do CNJ não tem o condão de macular nenhuma garantia que tenha sido previamente constituída e registrada, é evidente que o órgão, ao não dedicar uma linha sequer a explicar os efeitos dessa decisão sobre instrumentos já registrados, foi responsável por criar discussões no mercado de crédito privado sobre revisar ou aditar as garantias concedidas em instrumentos particulares.
Em um mundo cada vez mais digital, exigir escritura pública para esses atos é um verdadeiro retrocesso, devido à burocracia, morosidade e onerosidade que se impõe. Essa decisão, além de ser questionável do ponto de vista legal, representa um retrocesso ao restringir a celebração de contratos de alienação fiduciária por instrumento particular fora do ambiente do SFI. O posicionamento compromete a segurança jurídica e impõe obstáculos desnecessários na relação entre particulares.
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