Opinião

Da submissão da CPR física à recuperação extrajudicial

Autores

  • é advogado e administrador judicial mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) especialista em Direito Empresarial com ênfase em reestruturação de empresas e sócio Lara Martins Advogados.

    Ver todos os posts
  • é advogado sócio do BBMOV Sociedade de Advogados especialista em Direito Constitucional e Processo Civil e em Recuperação e Reestruturação Empresarial com Capacitação e Especialização pelo Instituto Brasileiro da Insolvência (Ibajud) pelo Tournaround Management Association (TMA Brasil) e pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) ex-secretário adjunto da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB-MT.

    Ver todos os posts
  • é advogada associada do Grupo ERS e pesquisadora especialista em Direito Processual Civil pela PUC-MG atuante na seara do Direito Empresarial com foco em reestruturação empresarial e agronegócio especialista em administração judicial pelo Instituto Brasileiro da Insolvência e mediação na recuperação empresarial (Ibajud) e membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falências da OAB-MT.

    Ver todos os posts

30 de outubro de 2024, 15h20

A crise do setor agrícola tem ganhado corpo do ano passado para cá. Em 2023, por exemplo, tivemos o recorde de pedidos de recuperação judicial no setor. Em 2024, foram mais de 156 pedidos, resultando na alta de 535% se comparado ao ano de 2022. Segundo o Serasa, somente nos três primeiros meses deste ano já tivemos 106 pedidos.

Talvez um dos maiores obstáculos da atualidade para o produtor rural em dificuldades financeiras que busca sua reestruturação é a exclusão de diversos créditos do procedimento de recuperação judicial, destacadamente a cédula de produtor rural de liquidação física (CPR física).

Segundo artigo 49 da Lei nº 11.101/05 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas), estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

Por outro lado, não estão sujeitos à recuperação judicial (§3º do artigo 49 da LFR) credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio.

Em se tratando de recuperação judicial do produtor rural, além dos créditos citado alhures, inclui-se, nesse rol, os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, com exceção das hipóteses de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeçam o cumprimento parcial ou total da entrega do produto, consoante dispõe o artigo 11 da Lei 8.929/94 com a redação dada pela Lei n° 14.112/20.

Cédula de produto rural: origem, objetivo e modalidades

A CPR é um instrumento de crédito que permite ao produtor e/ou cooperativas agrícolas captar recursos para financiar a atividade rural mediante a entrega futura do produto ou de recursos financeiros, de acordo com a data, local e características de conformidade, qualidade e valores expressos no título.

A CPR foi criada nos anos 1990, com o objetivo de incentivar o financiamento privado no agro, sendo um título que pode circular sob endosso do credor, admitindo mudanças por meio de aditivos. Essa funcionalidade dá liquidez ao instrumento ao possibilitar negociações por meio de novos agentes financeiros, que têm o interesse na rentabilidade da cédula, e não diretamente no produto em si objeto do título.

Existem duas modalidades de CPR: a financeira e a física. A financeira, como o próprio nome diz, funciona como um título que permite a possibilidade de liquidação financeira, ou seja, o emitente poderá pagar em dinheiro o valor nela previsto em vez de entregar a produção propriamente dita.

Já a física determina ao emissor a entrega física do produto agrícola ao credor, permitindo ao produtor rural antecipar a venda de sua produção antes mesmo da colheita, podendo ocorrer a antecipação parcial ou integral do preço ou representativa de operação de troca por insumos (barter).

Funciona como um contrato de compra e venda, em que o produtor se compromete a entregar uma quantidade específica de um produto agrícola em um local e data determinados, com qualidade pré-definida.

Recuperação extrajudicial do produtor rural

Com advento da Lei nº 14.112/20, foi alterada a redação do artigo 11 da Lei nº 8.929/94 para afastar a CPR física da recuperação judicial, ou seja, não poderão ser renegociadas e alcançadas em decorrência de processo de recuperação.

Como é cediço, a Lei nº 11.101/2005 sofreu alterações legislativas advindas da vigência da Lei nº 14.112/2020, sendo uma delas a possibilidade de o produtor rural entrar com pedido de recuperação judicial ou extrajudicial. Dentro do contexto normativo que dispõe sobre o procedimento da recuperação extrajudicial, em especial a sujeição ou não sujeição dos créditos aos efeitos do soerguimento extrajudicial, o legislador alterou o texto do §1º do artigo 161 e, de forma significativa, transmutou a interpretação do respectivo dispositivo legal ao ponto de alterar as naturezas dos créditos no que se refere à concursalidade e extraconcursalidade.

A priori, necessário tratar da redação do §1º do artigo 161, antes da alteração legislativa, que estava assim redigida:

Não se aplica o disposto neste Capítulo a titulares de créditos de natureza tributária, derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidente de trabalho, assim como àqueles previstos nos arts. 49, § 3º, e 86, inciso II do caput, desta Lei.”

Com a modificação oriunda da nova norma, o texto ficou assim positivado:

 “§1º. Estão sujeitos à recuperação extrajudicial todos os créditos existentes na data do pedido, exceto os créditos de natureza tributária e aqueles previstos no § 3º do art. 49 e no inciso II do caput do art. 86 desta Lei, e a sujeição dos créditos de natureza trabalhista e por acidentes de trabalho exige negociação coletiva com o sindicato da respectiva categoria profissional.”

Em detida análise de ambos os excertos legais, identifica-se a expressiva diferença das disposições normativas. Enquanto a redação anterior à positivação da Lei nº 14.112/2020 discorria apenas sobre quais créditos não se sujeitavam aos efeitos da recuperação extrajudicial, o texto inovado pela norma recuperacional ulterior tratou de dispor que todos os créditos existentes até a data da distribuição do pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial estão sujeitos aos seus efeitos e taxativamente evidenciou quais créditos não estariam sujeitos ao procedimento.

Dentre os créditos que ficaram, de forma expressa, fora do concurso de credores da recuperação extrajudicial, o legislador destacou os débitos tributários, os créditos elencados no artigo 49, §3º, artigo 86, II e, por fim, fez a ressalva da submissão dos créditos de natureza trabalhista, no sentido de que para compor o quórum de credores da recuperação extrajudicial, seria obrigatória a negociação coletiva com os sindicatos respectivos. Denota-se da singela, porém taxativa, leitura do dispositivo legal que nenhum outro crédito fora excluído.

Sujeição das CPRs físicas à recuperação extrajudicial

Vê-se, por este ângulo, que nada dispôs o legislador sobre a submissão da CPR física da recuperação extrajudicial, já que o referido artigo 11 da Lei da CPR trata especificamente da não submissão à recuperação judicial.

Da leitura dos referidos dispositivos podemos concluir que as cédulas de produtor rural de liquidação física (CPRs físicas) são sujeitas à recuperação extrajudicial, motivo pelo qual poderá ser uma alternativa eficaz para o produtor rural em dificuldade econômico-financeira que possui muitas operações atreladas a operações com cédula de produtor rural física.

Esse entendimento é calcado justamente na alteração do texto normativo, que trata da sujeição ou não dos créditos na recuperação extrajudicial. Nota-se que na redação anterior à Lei nº 14.112/2020, ainda se poderia conferir uma interpretação expansiva, pois o legislador resumiu-se em apenas delimitar o que não estaria sujeito aos efeitos, mas nada mencionando quais estariam sujeitos. Ao menos não de forma expressa, como o fez no novo texto em vigência com a nova norma.

Com a Lei nº 14.112/2020, o legislador, além de taxar o que não estaria dentro do concurso de credores, ele foi além e estabeleceu, agora, de forma expressa, que todos os créditos existentes na data do pedido estariam sujeitos à recuperação extrajudicial. Portanto, com exceção dos créditos oriundos de créditos tributários, dos previstos no artigo 49, §3º e artigo 86, II da norma de reestruturação, todos os demais estão sujeitos ao concurso de credores quando se tratar de pedido de homologação de plano de recuperação extrajudicial.

Recuperação branca

Dentro deste contexto, a recuperação extrajudicial apesar de não ser tão famosa e ganhar os holofotes como sua “irmã” – recuperação judicial –, é um importante instrumento de reestruturação empresarial.

Spacca

Assim como a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial está prevista na Lei nº 11.101/05 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas), tratando-se ambas de instrumentos para a recuperação de empresas e mais recentemente para o produtor rural.

A recuperação extrajudicial ou “recuperação branca” como alguns a chamam, é um acordo privado entre devedor e credor. É uma proposta de recuperação apresentada pela empresa para um ou mais credores, fora da esfera judicial. Pode ser proposta em qualquer condição, a qualquer credor, desde que não haja impedimento legal.

A lei permite que o empresário em crise econômico-financeira possa propor e negociar um plano de recuperação diretamente com os credores. Nessa oportunidade, novos prazos e valores poderão ser estabelecidos a fim de verificar viabilidade ao contínuo da atividade empresarial.

Dentre os meios de recuperação que poderão ser utilizados estão o deságio da dívida, carência, parcelamentos, alteração dos encargos contratuais, taxa de juros, além dos demais previstos no art. 50 da lei recuperação.

Cumpre-nos salientar, ainda, que há duas modalidades na recuperação extrajudicial, sendo a primeira (1) meramente homologatória, em que o devedor leva o acordo assinado por todos aqueles que aderiram para a homologação judicial [1] e, a segunda, (2) a recuperação impositiva, nesta modalidade, a lei exige a assinatura de todos os credores que representam mais da metade dos créditos de cada espécie que estão sujeitos ao plano [2].

A recuperação extrajudicial impositiva (artigo 162, da Lei 11.101/05), é uma medida é interessante uma vez que, diferentemente da recuperação judicial, onde o Plano de Recuperação somente é aprovado por credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembleia e, cumulativamente, pela maioria simples do presente (nas classes garantia real e quirografário) [3], na recuperação extrajudicial impositiva, por outro lado, a lei dispõe somente sobre “a metade dos créditos”, nada diz sobre o voto por “cabeça”.

A medida também poderá ser apresentada com a comprovação da anuência de credores que representem pelo menos 1/3 (um terço) de todos os créditos de cada espécie por ele abrangidos e com o compromisso de, no prazo improrrogável de 90 (noventa) dias, contado da data do pedido, atingir o quórum previsto, por meio de adesão expressa, facultada a conversão do procedimento em recuperação judicial [4].

Além disso, aplica-se à recuperação extrajudicial, desde o respectivo pedido (entende-se por pedido, o momento da distribuição da inicial), a suspensão de que trata o artigo 6° da Lei 11.101/05 [5], exclusivamente em relação às espécies de crédito por ele abrangidas, e somente deverá ser ratificada pelo juiz se comprovado o quórum inicial de 1/3 (um terço) de todos os créditos de cada espécie, exigido pelo § 7°, do artigo 163, da Lei 11.101/05.

Garantia real

Optando o produtor rural pela recuperação extrajudicial, os créditos vinculados a CPRs físicas deverão ser classificadas como garantia real, já que é na operação é dado em garantia penhor agrícola (semoventes e grãos), modalidade de garantia real.

Haja vista a submissão da CPRs físicas à recuperação extrajudicial, os grãos dados em garantia deverão ser liberados para comercialização para que o produtor rural posso ter liquidez para manter sua operação e pagar os compromissos assumidos com a aprovação do plano de recuperação.

Em tempos de crise a recuperação extrajudicial é uma alternativa que ganha relevância na reestruturação empresarial levando em conta sua celeridade e o baixo custo comparado à provocação jurisdicional, e ainda ajuda a evitar a judicialização de parte dos conflitos decorrentes da crise causado pelo coronavírus que poderá levar o colapso do judiciário, sem falar que no insucesso da recuperação extrajudicial poderá ser proposto na sequência pedido de recuperação judicial.

É importante o produtor ter em mente que sua demora na busca de remédios para mitigar ou solucionar os efeitos da crise poderá resultar no não alcance dos efeitos pretendidos, que é a recuperação de sua atividade. A recuperação extrajudicial poderá ser um poderoso aliado no combate a crise das empresas, mas deste que proposta no momento certo (timing).

 


[1] Art. 162. O devedor poderá requerer a homologação em juízo do plano de recuperação extrajudicial, juntando sua justificativa e o documento que contenha seus termos e condições, com as assinaturas dos credores que a ele aderiram.

[2] Art. 162. O devedor poderá requerer a homologação em juízo do plano de recuperação extrajudicial, juntando sua justificativa e o documento que contenha seus termos e condições, com as assinaturas dos credores que a ele aderiram.

[3] Art. 45. Nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, todas as classes de credores referidas no art. 41 desta Lei deverão aprovar a proposta. § 1º Em cada uma das classes referidas nos incisos II e III do art. 41 desta Lei, a proposta deverá ser aprovada por credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembléia e, cumulativamente, pela maioria simples dos credores presentes.

[4] Art. 163, § 7º O pedido previsto no caput deste artigo poderá ser apresentado com comprovação da anuência de credores que representem pelo menos 1/3 (um terço) de todos os créditos de cada espécie por ele abrangidos e com o compromisso de, no prazo improrrogável de 90 (noventa) dias, contado da data do pedido, atingir o quórum previsto no caput deste artigo, por meio de adesão expressa, facultada a conversão do procedimento em recuperação judicial a pedido do devedor.

[5] Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: I – suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao regime desta Lei; II – suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; III – proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência.

Autores

  • é advogado, sócio do Lara Martins Advogados, mestrando em Direito (Núcleo de Direito Comercial na PUC-SP), formação executiva em Turnaround Management pela FGV-SP, especialista em Direito e Reestruturação de Empresas e Produtor Rural e diretor secretário da Comissão Nacional de Recuperação Judicial e Falência da OAB.

  • é advogado, sócio do BBMOV Sociedade de Advogados, especialista em Direito Constitucional e Processo Civil e em Recuperação e Reestruturação Empresarial com Capacitação e Especialização pelo Instituto Brasileiro da Insolvência (Ibajud), pelo Tournaround Management Association (TMA Brasil) e pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), ex-secretário adjunto da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB-MT.

  • Advogada associada ao Grupo ERS e pesquisadora, atuante na área de Reestruturação e Recuperação de Empresas e do Produtor Rural. Especialista em Direito Processual Civil. Especializando em Direito Empresarial pela FGV (2024-2025). Possui cursos de Capacitação em Administrador Judicial pelo Instituto Brasileiro da Insolvência – IBAJUD; curso de Mediação na Recuperação Empresarial – IBAJUD; M&A pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais -IBMEC e em curso em Recuperação Judicial pela Escola da Magistratura do Rio de Janeiro - EMERJ.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!