Opinião

A prova do BNDES, a Constituição e Jesus Cristo

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29 de outubro de 2024, 6h03

Depois de 12 anos, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) promoveu, no último dia 13 de outubro, concurso público para o preenchimento de vários cargos, dentre os quais o de advogado. A oportunidade faz parte do cotidiano de inúmeros brasileiros, pois, aqui, o número de pessoas que almeja um cargo público cresce 40% ao ano. Deixando de lado as identidades e as coerências que, como dizia Saramago, “têm obrigação de explicar-se por si mesmas”, há circunstâncias desse fato que nos levam a comemorar, apesar de alguns desacertos.

Da prova divulgada pelo próprio banco, inferem-se as famosas idiossincrasias que acometem os concursos públicos, das quais se destaca a cobrança, dos candidatos, de exigências distintas do cargo a que aspiram, que mais lembram o encontro da Alice com o Chapeleiro Maluco e a Lebre de Março durante a festa do chá, na obra de Lewis Carroll. Quando Alice tenta entender a lógica da conversa deles, o Chapeleiro Maluco diz sobre o tempo: “Por que um corvo é como uma escrivaninha?” O comentário é desnecessário, não faz sentido e gera um tom jocoso pelo absurdo. Assim foram algumas exigências aos advogados, como a carga horária dos bancários, o local onde fica a maior favela do Brasil e a mineração e o processamento de dados via Crisp-DM (Cross-Industry Standard Process for Data Mining).

Cabe ao advogado do BNDES representá-lo em litígios e arbitragens, analisar contratos e outros documentos legais para garantir que eles estejam em conformidade com as leis, fornecer orientação jurídica para outras áreas do banco, como as de crédito, investimentos, fusões e aquisições, negociar acordos com outras instituições financeiras, empresas e governos.

Considerar que o advogado, para passar no concurso, é obrigado a saber mais do que isso, o que já é demais – o Direito tem mais de 15 ramos jurídicos, e outros sub-ramos – é exigência desproporcional. Concorrer exige, dos disputantes, qualificação técnica para o exercício eficiente e competente de uma função, e da banca examinadora, razoabilidade.

Sintonia com a Constituição

Não obstante, há motivo de comemoração: a prova reflete os valores e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil descritos na Constituição Federal, nos últimos tempos esquecidos, o que ratifica o compromisso do BNDES não apenas com o desenvolvimento econômico, mas com o avanço social do país.

Entre 2016 e 2018, o BNDES priorizou a redução dos financiamentos subsidiados, conhecidos como Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), amplamente utilizados para estimular projetos sociais e de infraestrutura com impacto no desenvolvimento regional e social. O fim do Programa de Sustentação do Investimento (PSI), que oferecia crédito barato para empresas e setores estratégicos, foi uma das medidas mais simbólicas dessa mudança. Embora o PSI tenha sido alvo de críticas pela falta de retorno econômico, ele tinha um papel importante na promoção de setores que geravam empregos e investimentos de longo prazo.

Nos anos subsequentes, do mesmo modo, o banco se afastou do compromisso com o desenvolvimento social, haja vista a priorização: a) do retorno de recursos do BNDES ao Tesouro Nacional para reduzir a dívida pública, o que limitou a capacidade do banco de financiar grandes projetos de desenvolvimento social e de infraestrutura crítica, como saneamento básico e programas de inclusão social, e b) das privatizações e concessões de infraestrutura, como rodovias e aeroportos, ao invés de investimentos diretos em programas com impacto social imediato, como habitação popular ou saúde.

A prova, ao contrário do que refletiram essas fases do banco, próprias de governos mais liberais, ou com enfoque em ajustes fiscais, renova o desiderato da instituição de promover o desenvolvimento econômico junto com o social, objetivos da própria Constituição da República, a qual deve ser respeitada, independentemente das prioridades políticas de cada governo. A Constituição não é mera folha de papel: é uma lei vinculativa dotada de efetividade e aplicabilidade que exige a consonância de todos os atos dos poderes públicos com as regras e princípios nela inseridos.

Visão de mundo

Foi dada especial atenção ao meio ambiente, ao perfil brasileiro de emissões, abordando a responsabilidade social das empresas nesse contexto, à luz dos preceitos da Agenda 2030 da ONU e das demandas globais por práticas de ESG (Environmental, Social, and Governance). A Reserva da Biosfera, que é um modelo, adotado internacionalmente, de gestão integrada, participativa e sustentável dos recursos naturais também foi exigida.

Temas como diversidade, a necessidade de transformação na cultura organizacional de cada empresa para promover uma governança corporativa baseada na equidade, na transparência e na inclusão das práticas decisórias em todos os níveis também foram objeto de perguntas. Nesse contexto, sobreleva o conhecimento exigido a respeito da taxa de desemprego e da disparidade entre o salário dos homens e das mulheres.

Os ciclos das políticas públicas também foi tema abordado, como potencial de transformar a sociedade.

A importância dos programas sociais de transferência de renda não deixou de ser afirmada.  O consumo como vontade de pertencer a um nicho social diferente, “não bastando ser, sendo preciso ter e, se possível, mostrar que tem”. O porquê de os consumidores das gerações Y e Z considerarem passivo o conceito de “sustentabilidade”, optando por comprar de empresas regenerativas que incorporam e praticam as três qualidades nobres presentes em todos os sistemas vivos: renovação, restauração e crescimento. É clara a preocupação do BNDES com a mudança climática como consequência de um modo de vida baseado na quantidade, no aumento de lucros e no volume de trocas.

Assim a prova foi tecendo o seu fio, reproduzindo o que a Constituição Federal quis para o Brasil e afirmando, criticamente, que a responsabilidade pela realização dela, embora seja do Estado, também é da sociedade, em uma perspectiva de controle social e participação ativa. O Brasil é um Estado Democrático de Direito fundamentado na dignidade da pessoa humana, na cidadania, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, que busca erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação, defender o meio ambiente, inclusive mediante o tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.

Spacca

Esse modelo de bem-estar e de solidariedade é desenhado desde o disposto nos artigos 1º e 3º, passando pelos artigos 170, 219 e tantos outros que não podem ser ignorados.  Programas de governo devem se adaptar à Constituição, e não o inverso, como se pretendeu anos atrás.

O modelo capitalista clássico, atuando sob a égide de um “princípio sem princípios” [1] – o do livre mercado – sintetizado na rude afirmação de Adam Smith, segundo a qual o verdadeiro fim do governo é “defender os ricos contra os pobres” não encontra amparo na ordem econômica constitucional em vigor.

O concurso público para advogado do BNDES revela que o Banco, sem se descuidar do desenvolvimento econômico, volta a enfatizar uma visão de mundo que impacta diretamente a vida da população, baseada na sustentabilidade, no combate às desigualdades, às mudanças climáticas, no financiamento de programas sociais e na inclusão social.

A despeito dos deslizes, o candidato que estiver atento a isso e conhecer a Constituição logrará êxito. Mais do que isso, só sendo Jesus Cristo que, como dizia Fernando Pessoa, “não sabia nada de finanças nem consta que tivesse biblioteca…”

 


[1] Marshall Berman, Tudo que é Sólido desmancha no ar, trad. de Carlos Felipe Moisés a Ana Maria L. Ioriatti, Companhia das Letras, São Paulo, 1986, p.109.

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