Lavagem & Afins

Responsabilização penal da figura do 'laranja' pelo delito de lavagem (parte 1)

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28 de outubro de 2024, 8h00

Uma figura bastante presente nas imputações pela prática da lavagem de dinheiro é a do “laranja”.

O termo não tem significado legal ou doutrinário. Trata-se, na realidade, de termo popular que foi internalizado pelo mundo jurídico para designar a pessoa que permite que contas bancárias; empresas; bens; ativos em geral, sejam registrados em seu nome, mesmo não sendo o real beneficiário desses ativos.

O “laranja” aparece no cenário das imputações de lavagem de dinheiro na medida em que os ativos que circulam nas contas bancárias ou nas empresas ou que são, de alguma maneira, formalmente registrados em seu nome, sejam provenientes de infração penal. Nesses casos, como o “laranja” empresta o nome para que fique formalmente vinculado ao ativo, “esconde-se” quem seria o seu real beneficiário.

Na missão de compreender se e, em caso positivo, a que título o “laranja” deve ser penalizado pela prática da lavagem de dinheiro, pretendemos responder à seguinte pergunta: o comportamento do “laranja” de emprestar o nome para ficar formalmente vinculado ao ativo é típico do delito de lavagem de dinheiro, nos termos do artigo 1º, caput, da Lei nº 9.613/98?

É importante esclarecer ao leitor que não será realizada a análise sobre o tipo subjetivo, que envolveria a discussão sobre o grau de conhecimento que o “laranja” deve ter a respeito da proveniência ilícita dos ativos em geral para que seja possível lhe atribuir responsabilidade dolosa [1].

Objeto da conduta: existe “propriedade” de ativos provenientes de infração penal?

O objeto da conduta [2] da figura do caput do artigo 1º da Lei n. 9.613/98 é composto de três elementos: (1) ao menos uma das seguintes qualidades: natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade [3]; (2) de um bem, direito ou valor e (3) que seja proveniente, direta ou indiretamente, de infração penal.

Partindo da premissa de que existem ativos provenientes de infração penal, o ponto de maior relevância para o presente estudo é a definição de qual a característica que se coloca em questão quando há a atuação de um “laranja”.

Naturalmente, a característica mais relevante é a da “propriedade” [4] do ativo proveniente de infração penal. Assim, é preciso definir, a partir da interpretação [5], o significado do termo “propriedade” disposto no tipo penal, ou seja, definir quem é “proprietário” de um ativo ilícito sob a ótica do Direito Penal.

Sendo o princípio da legalidade estrita reitor do Direito penal, o primeiro argumento interpretativo é o semântico, ou seja, o que define o significado a partir do conceito literal do termo e, na medida em que há um conceito jurídico extrapenal (técnico), deve-se partir dele [6].

Nos termos do artigo 1.228 do Código Civil, proprietário é aquele que “tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Em princípio, poder-se-ia afirmar que o termo propriedade disposto no tipo penal nada mais é do que a qualidade daquele que é proprietário nos termos do Código Civil [7].

Porém, o mencionado dispositivo não pode ser utilizado para definir tal conceito (o chamado sentido literal possível [8]), pois, tratando-se de bem proveniente de infração penal, o beneficiário não tem direito de reaver esse ativo. Pelo contrário, no plano jurídico, a consequência aplicada ao bem proveniente de infração penal (e de seus proveitos) é o perdimento, nos termos do artigo 4º da Lei nº 9.613/1998, não existindo para o beneficiário o direito de reavê-lo. Em suma, o conceito jurídico-civil de “propriedade” é incompatível com o texto expresso do caput, que exige que alguém detenha a propriedade de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal.

Assim, considerando o argumento semântico não jurídico, mas sim coloquial, para o qual o proprietário é quem exerce controle sobre o ativo; o argumento sistemático, para o qual o beneficiário de um ativo ilícito não tem pretensão jurídica sobre ele; e o teleológico, para o qual o injusto captado pelo delito de lavagem de dinheiro está, em alguma medida, na fruição dos ativos ilícitos, o termo propriedade previsto caput do artigo 1º da Lei nº 9.613/1998 deve ser compreendido em sua acepção fática, como a condição material de exercício dos poderes típicos de um proprietário em relação a um bem, isto é, o poder fático de usar, gozar e dispor do ativo ilícito – sem que represente ofensa à legalidade.

Quando a propriedade do ativo proveniente de infração penal é ocultada ou dissimulada, é ocultada ou dissimulada a identificação do sujeito que detém o poder fático de usar, gozar e dispor do ativo proveniente de infração penal. Essa ocultação ou dissimulação da propriedade pode ser feita de várias formas, sendo que, neste artigo, o que nos perguntamos é se a conduta do “laranja” pode ser uma dessas formas.

Conduta: o “laranja” oculta ou dissimula a propriedade do ativo ilícito?

É muito comum que, na prática, a simples existência do “laranja” que se relaciona com o ativo proveniente de infração penal já leve à conclusão de que há conduta típica de lavagem de dinheiro, seja do próprio “laranja”, seja daquele que solicitou seu auxílio [9].

Porém, o fato de existir um “laranja” se relacionando com bem proveniente de infração penal não torna, automaticamente, qualquer conduta do beneficiário desses ativos típica de lavagem de dinheiro, e nem significa que a conduta do “laranja” será objetivamente típica. Afinal, o tipo penal em questão não incrimina a conduta de usar terceiros em seu nome para registrar ativos.

É preciso, portanto, afastar a carga negativa trazida pelo termo e ater-se à conduta incriminada pelo tipo penal, que exige a ocultação ou dissimulação do objeto da conduta acima delimitado. Deve-se analisar se o “laranja”, ao emprestar o nome para que o bem, direito ou valor proveniente de infração penal fique formalmente vinculado a ele quando, na realidade, o beneficiário é que detém o poder fático de usar, gozar e dispor, pratica conduta objetivamente típica de ocultar ou dissimular a propriedade de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal (caput do artigo 1º da Lei nº 9.613/98).

Os termos ocultar e dissimular são classificados dogmaticamente como verbos “causativos” [10], ou seja, aqueles que designam não só um resultado, mas também o comportamento causador [11]. Portanto, ocultar não designa só o resultado de estar oculto e dissimular não designa só o resultado de estar dissimulado, mas também a conduta que seja idônea para tornar oculto e a conduta que seja idônea para tornar dissimulado o objeto da conduta [12].

Majoritariamente, a conduta idônea para ocultar é aquela que irá esconder de terceiros determinada característica do ativo ilícito. Já a conduta idônea para dissimular envolve uma espécie de fraude, sendo aquela que irá apresentar a terceiros uma característica diversa da realidade, que está em efetivo descompasso com a realidade [13].

A conduta acima descrita do “laranja” não se resume a esconder o poder fático do beneficiário de usar, gozar e dispor do ativo ilícito, afastando-se assim a figura da ocultação. Trata-se de verdadeira conduta idônea para apresentar a terceiros propriedade formalmente falsa, o que se amolda ao conceito de dissimulação.

No entanto, para a análise da subsunção da conduta do “laranja” ao conceito de dissimulação, é decisiva a compreensão sobre como o ordenamento jurídico formaliza a posição de proprietário de determinado bem, pois é mediante o cumprimento dessa formalidade que a dissimulação é possível pelo “laranja”.

Repare que o conceito de propriedade do Direito Civil não pode ser literalmente transportado para a definição do termo no tipo penal de lavagem. No entanto, as formas como o Direito privado define a aquisição da propriedade de ativos é relevante para que se possa verificar se a conduta do “laranja” é ou não típica do crime de lavagem de dinheiro.

Conforme varia a natureza do ativo proveniente de infração penal, variam (1) as exigências para a formalização da sua titularidade, (2) a maneira do beneficiário exercer, de modo concreto, as faculdades da propriedade – usar, gozar e dispor – e (3) como o “laranja” proporciona ao beneficiário o exercício dessas faculdades, alterando o que seria necessário para a efetiva dissimulação da propriedade desse ativo.

Assim, é preciso identificar como é feita a formalização da propriedade do ativo pelas regras de Direito privado e identificar se o ato praticado pelo “laranja” efetivamente o coloca nessa posição formal de proprietário do bem.

Na sequência, deve-se constatar se a conduta do “laranja” de se colocar na posição formal de proprietário é idônea para dissimular a identificação do sujeito que detém o poder fático de usar, gozar e dispor do ativo proveniente de infração penal. A conduta de dissimulação do poder fático de usar, gozar e dispor do ativo proveniente de infração penal estará presente quando implicar no descompasso entre quem está ocupando a posição formal de proprietário nos moldes do Direito privado (o “laranja”) e quem efetivamente detém esse poder (o beneficiário).

Vale dizer, é idônea para tornar a propriedade dissimulada a conduta do “laranja” que, ao colocá-lo na posição formal de proprietário, cria o descompasso entre quem está materialmente acessando o ativo e quem simplesmente aparece formalmente para terceiros como o proprietário dele.

Estabelecidas as premissas teóricas para definir a tipicidade objetiva da conduta do “laranja” por lavagem de dinheiro, na parte 2 apresentar-se-á a aplicabilidade de tais premissas para a resolução de casos hipotéticos.

 


[1] Sobre o elemento subjetivo no crime de lavagem de dinheiro: BADARÓ, Jennifer Falk. O dolo no crime de lavagem de dinheiro. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.

[2] Sobre o conceito de objeto da conduta, cf. ROXIN, Claus. GRECO, Luís. Direito penal: parte geral. Tomo 1. Fundamentos: a estrutura da teoria do crime. São Paulo: Marcial Pons, 2024, p. 135.

[3] Destacando que o objeto da conduta da figura do caput do art. 1º da Lei n. 9.613/1998 são as características do ativo e não o ativo em si, cf. QUINTÃO E SILVA FILHO, Sérgio. Ocultar ou dissimular de quem? Por uma interpretação restritiva dos verbos nucleares da lavagem de dinheiro. Revista do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, p. 153-169, 2020, p. 159-163 e COSTA, Jorge Gustavo. ASSUNÇÃO, João Victor. A lei de lavagem de capitais segundo a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 24.

[4] Seria possível elencar também a disposição como característica a ser discutida, porém não iremos considerá-la por dois motivos: o primeiro motivo é que existem posições divergentes sobre o seu significado, podendo designar tanto quem possui o poder de dispor do ativo quanto a forma como ele está organizado no tempo e espaço. Pela primeira posição: MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: (lavagem de ativos provenientes de crime): anotações às disposições criminais da lei n. 9.613/98. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 65; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes Federais. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1091; pela segunda posição: BARROS, Marco Antônio. Lavagem de capitais: crimes, investigação, procedimento penal e medidas preventivas. 5. ed. Curitiba: Juruá, 2017, p. 76-77; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal econômico. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 461.; o segundo motivo é que o primeiro significado, que levantaria alguma questão com a atuação do “laranja”, é alcançado pela noção de propriedade de fato que utilizaremos no texto, não demandando nenhum tratamento específico sobre esse atributo.

[5] Sobre o conceito de interpretação, cf. ÁVILA, Humberto.  Constituição, liberdade e interpretação. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2022, p. 33-37 e ROXIN, Claus. GRECO, Luís. Direito penal… op. cit., p. 310-311.

[6] ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 19, n. 19, 2017, p. 162.

[7] Adotando o conceito do Direito civil, mas sem enfrentar o dilema da impossibilidade do beneficiário de reaver juridicamente o ativo, cf. DE CARLI, Carla Veríssimo. Dos Crimes: aspectos objetivos. In: DE CARLI, Carla Veríssimo; MENDONÇA, Andrey Borges de (org.). Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, p. 233 e BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes Federaisop. cit., p. 1091.

[8] Sobre o sentido literal possível, cf. ROXIN, Claus. GRECO, Luís. Direito penal… op. cit., p. 311.

[9] A jurisprudência segue nesse sentido: “que a investigação revelou que J. estava envolvido em complexas operações de lavagem de dinheiro, pois ele supostamente usava suas empresas e propriedades para ocultar os lucros obtidos com o tráfico de drogas, […] que o recorrente utilizava nomes de outras pessoas (laranjas) para registrar bens e empresas, como uma maneira de ocultar sua participação direta e os verdadeiros proprietários dos ativos” (AgRg no RHC n. 196.227/DF, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 2/9/2024) e “Na hipótese …, tem-se haver investigação de suposta organização criminosa voltada à prática de fraude cibernética, por intermédio de negociações envolvendo ‘criptomoedas’, em conhecido esquema de “pirâmide financeira”, da qual os investigados seriam integrantes e atuariam como “laranjas” (falsos proprietários controladores)” (AgRg no RHC n. 180.209/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 14/8/2023).

[10] Sobre o conceito, cf. FELDENS, Luciano. TEIXEIRA, Adriano. O crime de obstrução de justiça: alcance e limites do art. 2º, §1º, da Lei 12.850/2013. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 30 – nota de rodapé n. 11.

[11] BADARÓ, Gustavo. BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem de dinheiro: Aspectos penais e processuais penais. Comentários à Lei 9.613/1998, 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 68.

[12] Tratando especificamente da lavagem de dinheiro, cf.: SILVA FILHO, Sérgio Quintão e. Ocultação e dissimulação próprias da lavagem de dinheiro: conteúdo, limites objetivos e razões da incriminação. 2023. Dissertação – Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023, p. 111.

[13] Ibid., p. 205.

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