Direito Civil Atual

A teoria da confiança no Direito Civil brasileiro

Autores

  • é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Membro da RDCC (Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo). Associado ao IDiP (Instituto de Direito Privado). Advogado em São Paulo no Junqueira Gomide Advogados.

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  • é procurador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutor em Direito pela Universidade de Lisboa.

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28 de outubro de 2024, 13h43

No Brasil, a teoria da confiança, tutela da confiança ou a confiança como instituto jurídico, apresenta-se multifacetada [1]. Os diferentes grupos de casos em que a confiança é mencionada, muitas vezes retoricamente, denotam que a jurisprudência, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, utiliza a confiança como suporte argumentativo para decidir casos muito distintos. Exemplificando, ao inserir as expressões “confiança” e “legítima expectativa” na busca de jurisprudência do STJ, encontram-se 109 acórdãos e 8.391 decisões monocráticas.

Nos primeiros resultados, encontram-se processos versando: (1) responsabilidade civil pré-contratual em compra e venda de energia elétrica no ambiente de livre contratação [2]; (2) contrato de seguro [3]; (3) pensão por morte [4]; (4) plano de saúde coletivo decorrente de relação de trabalho, mencionando o instituto parcelar da boa-fé da suppressio [5]; (5) ação civil pública por descumprimento de normas e prazos da Anvisa para suspender medicamento [6]; (6) confiança em ato administrativo do poder público [7]; (7) outro caso de suppressio, mas versando cláusula contratual [8], dentre tantos outros.

Tais dados denotam influência linguística, eventualmente ornamental, da confiança nas decisões judiciais, mas, noutro lado, podem revelar que a teoria da confiança não alçou autonomia ou densificação dogmática suficiente para que sua aplicação ocorra de modo uniforme. No mesmo sentido, o próprio princípio da boa-fé objetiva é utilizado recorrentemente mesmo em casos que outros institutos jurídicos solveriam adequadamente os problemas postos, mesmo quando não deveria ser usado como varinha de condão para resolver todos os males [9].

E mesmo em doutrina, não há uniformidade se a teoria da confiança é um instituto autônomo ou é outra figura parcelar da boa-fé objetiva. Antonio Pinto Monteiro defende que o princípio da confiança é princípio ético-jurídico [10], expressão da boa-fé, o qual acolhe soluções justas pela proteção de quem confia na conduta de outrem [11]. Mesmo assim, o eminente autor português argumenta que várias soluções legislativas que apelam à boa-fé objetiva se inspiram na necessidade de tutelar a confiança.

Por sua vez, Manuel Carneiro da Frada, na mais extensa obra em língua portuguesa sobre o tema, advoga uma teoria “pura” da confiança, como uma terceira via da responsabilidade civil [12]. Afirma o autor que o “cerne da regra de conduta de boa-fé é ético-jurídico”, estando em causa um “padrão de comportamento individual, a necessidade de uma conduta proba, honesta ou leal[13]. A confiança, diferentemente, será uma realidade autônoma, destrinçada da boa-fé, na medida em que a confiança constitua o “vero fundamento da imputação de determinados danos[14]. Dito de outro modo, a confiança para ser dotada de autonomia teria que ser o próprio fundamento da responsabilidade e não a intenção normativa de uma disposição, que poderia vir a acarretar a responsabilização, como no caso da violação de uma legítima expectativa no curso de um contrato.

Em posição singular, António Menezes Cordeiro, em extenso trabalho sobre a boa-fé, sustenta a posição que a confiança exprime na situação em que uma pessoa adere em termos de atividade ou crença, a certas representações que tenha por efetivas [15] e, assim, “constituiu, por excelência, uma ponte entre as boas fés objectiva e subjectiva, devendo assentar em ambas[16].

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Em terras tupiniquins, o tema é tratado em poucos trabalhos monográficos dedicados ao princípio da boa-fé objetiva [17] e artigos científicos de matizes diversas [18]. Nota-se, entretanto, recente tese de doutorado versando o tema [19]. Todos esses apontamentos demonstram que o tema da confiança não é simples e demanda maiores estudos na doutrina nacional.

Atualidade do tema

A busca pela compreensão da confiança não é fácil, sendo motivo de dissenso e de intensos debates. Contudo, é inegável a sua importância e a sua atualidade numa sociedade cada vez mais complexa. A confiança é elemento decisivo nas sociedades contemporâneas e em todas as formas de interações humanas, tornando-se um dos principais componentes do capital social, necessária à integração social, eficiência econômica e estabilidade democrática [20]. Nessa linha, a confiança é um componente básico do capital social [21], a qual sustenta o dinamismo econômico e promove a cooperação. Ela funciona como um verdadeiro instrumento de redução da complexidade social.

No campo do Direito, no entanto, é preciso cautela em sua aplicação. A afirmação da proteção da confiança traz sérios questionamentos, uma vez que ela protege a aparência, em detrimento da confiança na própria posição jurídica. Explica-se: o titular de uma posição jurídica pode ver o seu direito postergado a favor de quem tenha uma simples aparência, o que poderia levar ao descrédito da legitimidade do próprio direito positivo – o que, de fato, não ocorre [22]. Assim, é preciso dar contornos dogmáticos à tutela da confiança, buscando critérios para caracterizar o que o confiante poderia legitimamente ter acreditado nas expectativas que lhe haviam sido acenadas a partir das representações colocadas em sua realidade social [23], afastando-se de uma análise subjetiva, quase leviana. Aqui busca-se a fides qualificada, que efetivamente cria uma situação de confiança juridicamente tutelada se distinguindo de uma mera, ou qualquer, expectativa, pois naquela existem parâmetros objetivos que legitimam a confiança despertada.

A tutela da confiança, portanto, poderá promover o próprio interesse do confiante ou, ao menos, uma indenização pelos prejuízos decorrentes na crença despertada. Trata-se da importante distinção entre a proteção positiva e a proteção negativa da confiança. Nesta resta caracterizado o dever jurídico de ressarcir um prejuízo decorrente da confiança alheia, o que se pode denominar de ‘responsabilidade pela confiança’. A proteção positiva, distintivamente, reside na preocupação da ordem jurídica em assegurar ao sujeito a sua expectativa, de modo a fazer valer a situação de confiança criada [24].

Não há dúvidas, à vista do acima exposto, que a confiança é aspecto fundamental das relações sociais no Direito brasileiro. Do ponto de vista sociológico e do Direito, a confiança se apresenta como alicerce do dinamismo social e das relações econômicas, sendo vetor de segurança do tráfego jurídico de massas. A problemática estará em buscar contornos dogmáticos mais precisos para que seu uso não ocorra retoricamente de modo a afastar respostas próprias do direito positivo e, ao mesmo tempo, sem desprezar esse importante elemento dos usos e do tráfico.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).


[1] Isso está longe de ser exclusivo do Direito brasileiro, como destaca Carneiro da Frada (FRADA, Manuel António de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2015, p. 17).

[2] AREsp n. 2.168.556/RS, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 17/9/2024.

[3] REsp n. 2.150.776/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/9/2024, DJe de 13/9/2024.

[4] AgInt nos EDcl no REsp n. 2.074.066/SC, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 29/4/2024, DJe de 6/5/2024.

[5] AgInt no REsp n. 1.751.973/RS, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 18/3/2024, DJe de 21/3/2024.

[6] REsp n. 2.040.311/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/12/2023, DJe de 15/12/2023.

[7] AREsp n. 1.804.277/ES, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 24/10/2023.

[8] REsp n. 2.088.764/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 9/10/2023.

[9] O que foi notado anteriormente por Jan Peter Schmidt, cf. RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Boa-fé não pode ser uma varinha de condão nas lições de Jan Peter Schmidt. Consultor Jurídico, São Paulo, 10 dez. 2014. Coluna Direito Comparado. Disponível em: https://novoconjur.com.br/colunas/direito-comparado-boa-fe-objetiva-nao-varinha-condao-licoes-jan-peter-schmidt/?cn-reloaded=1&cn-reloaded=1. Acesso em: 18 out. 2024.

[10] Expressão cunhada por Canaris, como afirma Carneiro da Frada: “A expressão, cunhada por Canaris (Vertrauenshaftung kraft rechtsethischer Notwendigkeit), revela como quid distintivo a intervenção directa e imediata, na justificação da tutela, do princípio da confiança enquanto princípio ético-jurídico fundamental, vinculado às condições essenciais de uma justa composição dos interesses e posições dos sujeitos. A ordem jurídica não pode deixar de conferir relevância às expectativas mesmo para além daqueloutras situações a que corresponde um regime, preciso e objetivo, susceptível de acautelar e promover o tráfico jurídico” (FRADA, Manuel António de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil…, cit., p. 62).

[11] PINTO MONTEIRO, Antônio. A tutela da confiança. Revista brasileira de Direito Civil – RBDCivil, v. 32, n. 2, p. 163-177, abr./jun. 2023, p. 164.

[12] FRADA, Manuel António de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil…, cit., p. 901-905.

[13] FRADA, Manuel António de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil…, cit., p. 447.

[14] FRADA, Manuel António de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil…, cit., p. 351.

[15] MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001, p. 1.234.

[16] MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil…, cit., p. 1.238.

[17] Por todos, cf. MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: Critérios para a sua aplicação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2024.

[18] Dentre outros, cf. BRANCO, Gerson Luiz Carlos. A proteção das expectativas legítimas derivadas das situações de confiança: elementos formadores do princípio da confiança e seus efeitos. Revista de Direito Privado, v. 12, p. 169-225, out.-dez. 2002; MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Proteção da confiança nas relações médicas. Revista de Direito Privado, v. 44, p. 298-315, out.-dez. 2010; SANTOS, Paula Ferraresi. Responsabilidade civil e teoria da confiança: análise da responsabilidade pré-contratual e o dever de informar. Revista de Direito Privado, v. 49, p. 209-224, jan.-mar. 2012; SOARES, Leonardo Oliveira. Ainda o princípio da confiança nos pronunciamentos jurisdicionais. Revista de Processo, v. 218, p. 183-194, abr. 2013; FERREIRA, Patrícia Cândido Alves. O princípio da confiança: proteção e tópica jurisprudencial dos contratos de saúde suplementar. Revista de Direito Civil contemporâneo, v. 2, p. 83-107, jan.-mar. 2015; CEREZOLI, José A. Registro empresarial e o princípio da proteção à confiança. Revista de Direito Empresarial, v. 17, p. 23-41, ago. 2016; MIRAGEM, Bruno. A proteção da confiança no direito privado: notas sobre a contribuição de Claudia Lima Marques para a construção do conceito no direito brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, v. 114, p. 397-407, nov.-dez. 2017.

[19] FERREIRA, Patrícia Cândido Alves. A teoria da confiança no direito civil brasileiro: conceito, autonomia, limites e aplicação no âmbito contratual. São Paulo: Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2020. Tese de Doutorado em Direito Civil, a qual, contudo, ainda não está disponível para consulta no site da Faculdade de Direito da USP.

[20] NEWTON, Kenneth. Trust, social capital, civil society, and democracy. International political science review, v. 22, n. 2, 2001, p. 202.

[21] PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 5. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 180.

[22] Diferentemente do que se poderia cogitar, a confiança é verdadeiro instrumento para garantir a segurança jurídica, fazendo valer as situações jurídicas que concretamente existem e se afastando de um formalismo jurídico. Como lembra Menezes Cordeiro: “A opção de preterir a confiança de uma pessoa a favor da de outra, numa escolha que ao legislador, em princípio compete, equivale, no fundo, a premiar a circulação dos bens em detrimento de sua conservação estática” (MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil…, cit., p. 1.247).

[23] MARTINS-COSTA, Judith. A Boa Fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, p. 253.

[24] FRADA, Manuel António de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil…, cit., p. 42. Exemplo prático de um caso de tutela negativa (ou meramente ressarcitória) pode ser demonstrado nos casos de responsabilidade pré-contratual em que a parte que acreditou que o contrato viria a ser celebrado poderá cobrar os interesses negativos pela não contratação. Por outro lado, o STJ já reconheceu a tutela positiva da confiança nas hipóteses de suppressio, em que, por exemplo, aplicou o referido instituto ao caso de uma empresa, locadora de imóvel para uma loja, que pretendia exigir os valores correspondentes a reajustes que ela não cobrou durante cinco anos de aluguel (AREsp n. 1.803.278/PR, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas, Terceira Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 09/10/2023).

Autores

  • é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (RDCC), associado ao (Instituto de Direito Privado (Idip) e advogado em São Paulo no Junqueira Gomide Advogados.

  • é doutor em Ciências Jurídico-Civil pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito pela Uerj, professor adjunto da Uerj e professor do Ibmec-RJ.

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