Opinião

Relevância e fiabilidade: os controles epistêmicos no processo penal dos EUA

Autores

  • Gustavo Eloi Razera

    é promotor de justiça do Ministério Público do Paraná atua na Comarca de Capanema graduado em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2009) especialista em Compliance Público-Privado Integridade Corporativa e Repressão à Corrupção pelo Complexo Educacional Renato Saraiva (2020) e mestre em Processo Penal e Garantismo pela Universidade de Girona/Espanha e pela Universidade de Gênova/Itália (2024).

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  • Juliano Fontanella da Silva

    é advogado graduado em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2017) especialista em Direito Constitucional pela Faculdade IBMEC São Paulo (2019) especialista em Direito do Trabalho e em Direito Previdenciário pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2020) especialista em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (2021) e mestre em Processo Penal e Garantismo pela Universidade de Girona/Espanha e pela Universidade de Gênova/Itália (2024).

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27 de outubro de 2024, 13h23

Do ponto de vista epistêmico, é um tanto quanto óbvio afirmar que, quando se busca acertar a verdade de um enunciado fático, deve poder-se utilizar todas as informações úteis para tal finalidade [1].

Suprema Corte dos EUA

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no entanto, tem gradualmente desafiado essa premissa, implementando controles mais rígidos de admissibilidade de provas. Esse posicionamento da Corte se baseia na premissa de que a seleção criteriosa das provas, considerando suas qualidades epistêmicas, contribuirá para a redução de erros judiciais. Exemplos atuais incluem o reconhecimento de pessoas (HC 598.886/SC), o hearsay — em sua versão mal adaptada [2] — (HC 397.485/RJ), a cadeia de custódia (HC 133.430/PE) e, mais recentemente, as confissões extrajudiciais (2.123.334/MG).

Essa abordagem de controle de fiabilidade — e até mesmo a nomenclatura utilizada em certos institutos — tem origem no direito norte-americano. Portanto, um estudo comparativo se faz necessário para verificar se as premissas que justificam esses controles no processo penal norte-americano estão também presentes e fundamentadas em nosso ordenamento jurídico. Ao examinar os mecanismos de relevância e fiabilidade no processo penal dos Estados Unidos, podemos entender melhor como esses controles epistêmicos funcionam e se são aplicáveis de maneira similar no contexto brasileiro.

Relevância e fiabilidade, controles epistêmicos

Ao tratar de provas no campo jurídico (ou em qualquer análise sobre eventos humanos), é útil entender dois conceitos centrais: fiabilidade e relevância probatória.

Fiabilidade se refere à confiança que podemos ter de que uma prova, seja ela material ou testemunhal, reflete a verdade ou, pelo menos, algo plausível. Ou seja, uma prova é considerada fiável quando temos boas razões para acreditar que o que ela diz é verdade.

Relevância está relacionada à importância de uma prova em relação ao que se discute no caso. A relevância se mede pela capacidade que a prova tem de influenciar a avaliação de uma hipótese, tornando-a mais ou menos provável do que era antes da prova ser considerada.

Spacca

Em termos simples, para que uma prova seja relevante, ela deve alterar o grau de confiança que temos sobre uma hipótese. Se a prova não mudar em nada nossa confiança na hipótese — mesmo que a prova seja crível —, ela será considerada irrelevante no processo.

No contexto penal, o julgamento gira em torno de duas hipóteses principais: (a) se um crime foi realmente cometido e (b) se o acusado é o responsável por esse crime.

Qualquer prova que não ajude a tornar essas hipóteses mais ou menos prováveis (ou seja, que não contribua para confirmar ou refutar uma delas) será irrelevante, ainda que pareça confiável.

Relevância e fiabilidade operam como filtros epistemológicos para garantir que apenas provas que possuem estas “credenciais epistêmicas” sejam admitidas no processo e, ao final, consideradas (e valoradas) na tomada de decisão.

Controles epistemológicos no processo penal dos EUA

No sistema norte-americano, como regra, a análise da fiabilidade da prova deve ser relegada aos jurados, cabendo ao magistrado realizar um juízo de admissão em termos hipotéticos, isto é, deve perguntar-se: “se esta prova fosse fiável, é de alguma pertinência para o caso?” Ou seja, faz-se um controle de relevância e, para esse efeito, a fiabilidade se presume [3].

Apesar disso, em muitos casos, essa regra dá lugar a exceções, como no juízo de admissão da prova pericial.

O tema da admissão do testemunho experto, nos últimos anos, trouxe grande interesse acadêmico, em virtude do impacto da decisão da Suprema Corte dos EUA no famoso caso Daubert (1993 [4]). Em Daubert, a Scotus estabeleceu quatro critérios de qualidade da prova pericial a serem escrutinados como condição para a sua admissão (“Critérios Daubert”):

a) é indispensável que a técnica seja testável, de acordo com os padrões científicos vigentes;
b) que já tenha sido publicada em revistas científicas, com submissão à revisão por pares;
c) o conhecimento das taxas de erro e a existência de standards que controlam a investigação sobre a qual se baseia a teoria;
d) a aceitação pela comunidade científica.

Para além desses critérios específicos, chama a atenção o próprio fato de serem estabelecidos critérios de fiabilidade mínima da prova ainda na etapa de admissão, e uma das razões para tanto, afirma Carmen Vázquez, é o argumento de proteção do jurado leigo de suas más decisões a respeito do conhecimento científico. Em outros termos, pressupõe-se que os jurados são incapazes de valorar adequadamente o conhecimento experto, por isso convém evitar que seja contaminado com informação de baixa qualidade [5].

Portanto, nos EUA, o juiz togado, e não o júri, tem a responsabilidade de determinar se um testemunho pericial ou prova científica é fiável (ou melhor, apresenta credenciais de cientificidade) o suficiente para ser admitido e apresentado no julgamento.

Antes mesmo de Daubert, já havia um critério de cientificidade para admissão da prova pericial, estabelecido pelo caso Frye (1923 [6]), consistente na aceitação geral, pela comunidade científica, da técnica empregada pelo perito (teste de aceitação geral), no entanto, a partir de Daubert e sua repercussão intensificaram-se movimentos pela aplicação de filtros de fiabilidade mínima também em países de cultura civil law (como percebemos hoje acontecendo no Brasil) e, inclusive, com o transporte dos fundamentos da tese para outras espécies de prova [7].

Outra hipótese sempre lembrada como limite epistemológico à admissibilidade é a hearsay rule [8], que veda a utilização de declarações feitas fora do tribunal, pois seu valor probatório pode ser incerto e não é passível de verificação por meio do exame cruzado da fonte de prova originária. Pode-se dizer que a função primordial da hearsay rule é evitar que o jurado cometa erro ao avaliar a veracidade dessas informações, de modo que se pretende com a não admissão permitir ou propiciar que se alcance a verdade [9].

Ainda nessa linha, depois de definir o chamado teste de relevância (rule 401) e prever a regra geral de admissão das provas relevantes (rule 402), o Federal Rules Of Evidence estabelece importantes exceções às provas que podem gerar julgamentos equivocados (rule 403 [10]).

Nos termos da rule 403, o tribunal pode excluir provas relevantes se o seu valor probatório for substancialmente superado pelo perigo de gerar preconceito injusto, confusão sobre os fatos em litígio, indução do júri em erro, atraso indevido, perda de tempo ou apresentação desnecessária de provas redundantes. O dispositivo tem por objetivo prevenir erros e mal-entendidos que podem ocorrer quando o jurado estabelece o valor probatório da evidência.

O que explica o controle de fiabilidade nos EUA?

Diversas regras de exclusão anglo-americanas explicam-se por essa mesma razão: evitar que o julgador dos fatos atribua ao elemento probatório maior ou menor valor do que efetivamente merece.

O grande problema, já denunciava Taruffo [11], é resolver o paradoxo de normas que parecem endereçadas a realizar uma finalidade epistêmica, mas, em realidade, são contra-epistêmicas, pois impedem que elementos probatórios relevantes sejam admitidos ao processo.

Damaška defende a tese de que a ausência de necessária motivação no julgamento sobre os fatos nos sistemas de common law explica a proliferação, nesse âmbito, de regras jurídicas que excluem provas consideradas como fornecedoras de informações pouco fiáveis [12]. Em certo sentido, essas regras buscam garantir, ex ante, uma maior racionalidade geral nas decisões sobre os fatos, mesmo que isso signifique excluir elementos de julgamento que, apesar de terem valor relativamente baixo, poderiam fornecer informações relevantes [13].

Acrescenta Ferrer Beltrán que essa não é a única razão que explica a proliferação tradicional de regras de exclusão de provas nos sistemas de common law, mas também a presença da instituição do júri composto exclusivamente por leigos como órgão responsável pela decisão sobre os fatos [14].

Logo, além de não ser controlável, a decisão dos jurados tem a sua racionalidade questionada e por isso ele deve ser protegido de informações de baixa fiabilidade, que podem gerar crenças equivocadas. Com isso, transfere-se ao juiz a função de gatekeeper da qualidade epistêmica da prova, a partir da qual deve impedir que elementos pouco fiáveis sejam aportados ao processo (existe, evidentemente, uma relação paternalista entre o juiz técnico e o jurado, entendendo-se que, por ser o jurado leigo, se justificaria protegê-lo de suas crenças equivocadas).

As mesmas condições estão presentes no sistema brasileiro?

Para a adoção de um controle de fiabilidade, tão próprio dos sistemas do common law, necessita-se uma reflexão prévia: essas mesmas características que o fundamentam estão presentes no ordenamento brasileiro?

A resposta, obviamente, é negativa. À exceção do julgamento dos crimes dolosos contra a vida (artigo 5º, XXXVIII, da CF), as decisões são tomadas por juízes profissionais e não por jurados.

Nos ordenamentos de cultura civil law, ou de tradição europeu-continental, os fundamentos para a aplicação de um filtro de fiabilidade não se replicam, pois, salvo raras exceções, as decisões são tomadas por juízes profissionais e motivadas. Portanto, o controle de racionalidade se realiza ex post, por meio do controle da motivação [15].

Assim, por exemplo, diante de uma prova ou de um tipo de prova de fiabilidade muito baixa, o controle de racionalidade pode funcionar a posteriori sempre que se exigir daquele que decide sobre os fatos provados que justifique o porquê de ter declarado provados esses fatos e o apoio empírico em que baseou sua decisão. Poder-se-á comprovar, então, se quem decide outorgou um peso excessivo a uma prova cuja confiabilidade é questionada.

Desse modo, não se justifica no sistema processual brasileiro a adoção de uma atitude paternalista para proteger o julgador (paternalismo epistêmico). Afinal, será ele próprio quem decide sobre a admissibilidade das provas, ou então, com a recente adoção do “juiz das garantias”, haveria um juiz técnico protegendo outro [16].

O ponto central é que, se começássemos a duvidar da capacidade de todos os juízes em lidar com provas de baixa fiabilidade, seria necessária uma mudança radical no desenho do processo penal, com a criação de momentos propícios para a avaliação in itinere de fiabilidade probatória e produção de metaprovas (de modo a permitir a avaliação não apenas da fiabilidade intrínseca, mas o apoio epistêmico que outras provas aportam à fonte de prova questionada).

Solução mais prática e eficiente seria: (i) aprimorar a formação dos atores processuais em temas relacionados ao raciocínio probatório, e (ii) exigir que os juízes, ao motivar suas decisões, explicitem a valoração individual de cada prova, em vez de se limitarem a uma análise holística do conjunto probatório. A primeira medida garantiria maior precisão na avaliação das provas, enquanto a segunda permitiria um efetivo controle sobre essa valoração, sem a necessidade de introduzir filtros que empobreçam o acervo probatório e comprometam a busca pela verdade.

 


[1] BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal [livro eletrônico]. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.

[2] O conceito de “hearsay”, proveniente do sistema jurídico anglo-saxão, tem sido frequentemente utilizado no Brasil como sinônimo de boato ou especulação, especialmente para contestar a admissibilidade de testemunhos baseados em informações de terceiros. Entretanto, essa comparação simplista ignora as complexidades do “hearsay” no direito americano, onde ele representa um instituto processual bem mais sofisticado (CASTRO, Ana Lara Camargo de. Hearsay tropicalizado: a dita prova por ouvir dizer. Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região n. 6).

[3] LAUDAN, Larry. Verdad, error y proceso penal. Trad. Carmen Vázquez y Edgar Aguilera, Madrid/Barcelona/Buenos Aires/Sao Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 45.

[4] Daubert vs. Merrel Dow Pharmaceuticals, 509 U.S. 579, 113 S. Ct. 2786.

[5] (…) esta línea argumental, como se ha dicho, supone que efectivamente hay alguien a quien proteger de sus malas decisiones y, por ello, se le ha llamado “paternalismo epistémico”, en analogía al paternalismo tradicional (VÁZQUEZ, Carmen; LÓPEZ, Mercedes Fernandéz. La conformación del  conjunto de elementos de juicio: admisión de pruebas. In: FERRER-BELTRÁN, Jordi. Manual de Razonamiento Probatorio. 1. ed. Ciudad de México: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2023. p. 139-212).

[6] Caso Frye v. United States, 1923.

[7] A esse respeito, ver: VERA SÁNCHEZ, Juan Sebastián. Exclusión de la prueba pericial científica (de baja calidad epistémica) en fase de admisibilidad en procesos penales de tradición románica-continental: Diálogo entre dos culturas jurídicas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 7, n. 1, p. 375-408, jan./abr. 2021.

[8] Segundo a Rule 801 (c) das Federal Rules of Evidence, um testemunho indireto é “uma declaração, diversa daquela prestada pelo depoente no curso do processo, que se oferece como elemento de prova para demonstrar a verdade daquilo que se afirmou”.

[9] TARUFFO, Michele. A prova. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 41.

[10] Rule 403. Excluding Relevant Evidence for Prejudice, Confusion, Waste of Time, or Other Reasons: The court may exclude relevant evidence if its probative value is substantially outweighed by a danger of one or more of the following: unfair prejudice, confusing the issues, misleading the jury, undue delay, wasting time, or needlessly presenting cumulative evidence.

[11] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016. p. 169-180.

[12] DAMAŠKA, Mirjan R. Evidence Law Adrift. New Haven: Yale University Press, 2013. p. 41-46.

[13] FERRER-BELTRÁN, Jordi. Valoração Racional da Prova. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: JusPodivm, 2023. p. 65-66.

[14] Ibidem, p. 65-66.

[15] FERRER-BELTRÁN, op. cit., p. 66.

[16] Carmen Vázquez, em sua obra sobre prova pericial, ao comentar os critérios Daubert, menciona que a adoção de medidas paternalistas deve estar baseada em evidências empíricas que demonstrem uma tendência ao erro por parte dos juízes, e não apenas a ocorrência de erros ocasionais. Além disso, ressalta a importância de considerar as diferenças entre julgadores profissionais e jurados leigos ao avaliar essas deficiências. (VÁZQUEZ, Carmen. Prova Pericial: Da prova científica à prova pericial. São Paulo: JusPodivm, 2021. p. 486).

Autores

  • é mestre em Processo Penal e Garantismo pela Universidade de Girona (Espanha) e pela Universidade de Gênova (Itália) e promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná.

  • é advogado, mestre em Processo Penal e Garantismo pela Universidade de Girona (Espanha) e pela Universidade de Gênova (Itália), graduado em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina, especialista em Direito Constitucional pela Faculdade IBMEC São Paulo, especialista em Direito do Trabalho e em Direito Previdenciário pela Universidade do Oeste de Santa Catarina, e especialista em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.

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