Opinião

Democratização e responsabilidade: o necessário combate à advocacia predatória

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26 de outubro de 2024, 13h27

Nos últimos anos, o Brasil tem vivenciado uma significativa democratização do exercício da advocacia, o que tem ampliado o acesso ao Poder Judiciário. O aumento expressivo no número de faculdades de Direito e a consequente elevação no número de advogados em atuação, com cerca de 1,3 milhões de advogados inscritos atualmente, de acordo com a OAB, refletiram diretamente na ampliação do acesso ao Judiciário, especialmente para as camadas mais vulneráveis da população. Anteriormente, o serviço jurídico era mais restrito e destinado, em grande medida, a uma parcela privilegiada da sociedade, devido ao número reduzido de profissionais.

Além disso, o avanço tecnológico e a virtualização dos processos judiciais romperam barreiras geográficas, permitindo que advogados atuem em qualquer parte do país sem sair de seus escritórios. O que antes era prerrogativa dos grandes escritórios, com filiais em diversas capitais, hoje também se tornou viável para pequenas bancas e advogados individuais. Esses fenômenos contribuíram, sem dúvida, para a democratização da advocacia, tornando o serviço mais acessível e permitindo que um número maior de pessoas busque a tutela de seus direitos.

No entanto, paradoxalmente, o crescimento no número de advogados e a facilidade de acesso ao Judiciário também incentivaram o aumento de uma prática que preocupa o sistema de justiça: a advocacia predatória. Esse fenômeno, caracterizado pelo abuso do direito de ação e pela captação indevida de clientela, representa um desafio significativo para os tribunais, instituições públicas e privadas, que têm discutido e buscado soluções para combatê-lo.

Repetitivo e infundado

A distinção entre advocacia predatória e litigância de massa é um dos principais pontos de tensão na discussão. Enquanto a litigância de massa pode ser legítima, quando reflete demandas justas e amplamente disseminadas na sociedade, a advocacia predatória caracteriza-se pela apresentação de ações repetitivas e infundadas, com o objetivo de sobrecarregar o Judiciário e a parte contrária, visando vantagens econômicas indevidas.

A OAB tem adotado uma postura crítica em relação às tentativas do Judiciário de combater essa prática, argumentando que muitos juízes estão criminalizando o exercício da advocacia, ao confundir litigância de massa com litigância predatória. Alguns representantes da OAB, inclusive, sustentam que o combate à litigância predatória confunde presa e predador, gerando uma ameaça ao direito constitucional de acesso à justiça (fonte: ConJur).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tema 1.198, que busca definir os limites do juiz no combate ao exercício da advocacia predatória, reflete essa discussão. A definição desses limites é essencial para evitar que medidas de combate à advocacia predatória acabem por cercear o direito fundamental de acesso ao Judiciário, garantido pelo artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição. É necessário, portanto, encontrar um equilíbrio entre o combate ao abuso e a preservação do direito de ação.

Enxurrada de ações

Apesar das discussões sobre a distinção entre litigância predatória e litigância de massa, pouco tem sido discutido sobre a responsabilidade civil do advogado predador e as possíveis formas de tutelas jurisdicionais que podem ser adotadas para coibir essa prática. A advocacia predatória configura um ato ilícito, mesmo que nem sempre gere danos imediatos em todos os casos. Trata-se de um comportamento abusivo, que viola o princípio da boa-fé processual e desvirtua o uso regular do direito de ação, comprometendo o equilíbrio processual e a integridade das relações jurídicas.

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Papéis, processos, pilha de documentos, contratos, acordos, lentidão da Justiça, morosidade

A prática pode ser comparada à pesca com bomba: o pescador não se preocupa com a qualidade dos peixes ou os danos causados ao ecossistema, matando indiscriminadamente toda a fauna marinha para obter um ganho rápido. De forma análoga, o advogado predador ajuíza uma enxurrada de ações sem preocupação com o mérito, buscando vantagens econômicas, mesmo que isso desequilibre o sistema e cause prejuízos ao “ambiente”, ou seja, ao Judiciário e aos direitos das partes envolvidas.

Caso Stone

A responsabilidade civil do advogado pode surgir não apenas quando há danos materiais ou morais comprovados, mas também quando o abuso do direito processual gera desequilíbrio nas relações processuais, forçando a parte contrária a alocar recursos desproporcionais para se defender. Nesse sentido, o Judiciário não só tem o poder, mas também o dever de adotar medidas para restaurar o equilíbrio e inibir práticas abusivas, como a concessão de tutelas inibitórias e a imposição de indenizações por danos causados.

Um exemplo recente que ilustra a atuação do Judiciário no combate à advocacia predatória é a decisão liminar proferida pela 30ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, em dezembro de 2023. Na ocasião, o magistrado determinou que um escritório de advocacia, com atuação na área trabalhista, se abstivesse de contatar funcionários antigos e atuais da empresa Stone, diante de indícios de captação irregular de clientes e violação à honra objetiva da empresa. A decisão reconheceu “indícios suficientes” de prática ilícita, justificando a adoção de medidas urgentes para prevenir o agravamento dos danos à reputação da empresa e ao sistema de justiça.

Essa decisão é emblemática porque evidencia a disposição do Judiciário em adotar medidas preventivas para impedir a continuidade do exercício abusivo da advocacia. Ao conceder a liminar, o magistrado não só protegeu os interesses da empresa, mas também sinalizou para a advocacia que a violação dos deveres éticos pode resultar em restrições à prática profissional. Não se trata, naturalmente, de proibir o exercício da advocacia, e sim de coibir o exercício ilícito por parte do advogado. Decisões como essa são fundamentais para desestimular práticas abusivas e promover uma advocacia ética e responsável.

Com efeito, a violação aos deveres éticos pode, sim, fundamentar a concessão de tutela inibitórias, visando combater a advocacia predatória. É preciso abandonar a ideia de que a violação ao Código de Ética profissional é matéria apenas circunscrita à OAB por meio do processo ético-disciplinar. Embora a OAB tenha um papel essencial na apuração de infrações éticas e aplicação de sanções disciplinares aos advogados, é essencial distinguir as esferas de atuação da entidade e do Poder Judiciário. A OAB é responsável por fiscalizar a conduta dos advogados e impor sanções conforme o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), enquanto cabe ao Judiciário adotar medidas jurisdicionais para impedir a perpetuação do ato ilícito e responsabilizar civilmente o advogado que pratica a advocacia predatória.

O fato de o réu estar sujeito a procedimentos disciplinares na OAB não impede que o Judiciário intervenha para garantir a integridade do sistema de justiça. Quando há indícios de abuso do direito de ação, o Judiciário tem o dever de adotar medidas para coibir a prática, seja através de tutelas inibitórias, seja mediante a imposição de condenações por danos morais, sempre com o objetivo de restaurar o equilíbrio processual.

Importância da jurisprudência e da formação ética

O exemplo da decisão liminar em São Paulo levanta questões importantes sobre a eficácia das medidas adotadas para combater a advocacia predatória. A concessão de tutelas inibitórias e a responsabilização civil dos advogados infratores são passos necessários, mas é igualmente importante desenvolver uma jurisprudência sólida que sirva de referência para futuras decisões. Além disso, a cooperação entre o Judiciário e a OAB deve ser fortalecida para garantir uma abordagem coordenada e eficaz no enfrentamento desse problema.

Spacca

A conscientização dos advogados quanto aos limites éticos e processuais de sua atuação é essencial para prevenir a prática da advocacia predatória. A OAB desempenha um papel central na orientação dos profissionais, sendo necessário reforçar a formação ética e técnica dos advogados, especialmente em um cenário em que o número de novos profissionais cresce de forma acelerada.

Conclusão

O aumento no número de advogados e a virtualização dos processos judiciais ampliaram o acesso ao Judiciário, contribuindo para democratizar a advocacia no Brasil. Contudo, esses mesmos fatores têm incentivado a prática da advocacia predatória, caracterizada pelo abuso do direito de ação e captação indevida de clientela. A responsabilidade pelo combate a essa prática não recai exclusivamente sobre a OAB, mas também sobre o Poder Judiciário, que deve adotar medidas para prevenir o abuso, restaurar o equilíbrio processual e responsabilizar os infratores.

O caminho para enfrentar a advocacia predatória passa pelo fortalecimento da jurisprudência, pela cooperação entre o Judiciário e a OAB, e pela conscientização dos advogados quanto aos limites éticos de sua prática. Só assim será possível proteger o sistema de justiça contra os impactos negativos dessa prática, preservando o papel do advogado como defensor dos direitos e promotor da Justiça.

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