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Comissão no Senado discute Lei do Processo Estrutural com atenção a funções do juiz e mediação

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25 de outubro de 2024, 8h52

Mesmo sem previsão legal, o processo estrutural já é aplicado no Brasil para resolver conflitos complexos e coletivos por meio de medidas mais organizadas e consensuais, como a criação de planos a longo prazo. E uma comissão de juristas instalada no Senado em junho tem a missão de colocar as regras desse mecanismo no papel — ou seja, elaborar, até dezembro, um anteprojeto de lei sobre o tema.

Especialistas debatem durante audiência pública promovida em agosto de 2024 pela Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de Lei do Processo Estrutural no Brasil

Comissão de juristas promoveu audiência pública no Senado sobre processo estrutural no último mês de agosto

Formalizar uma regulamentação sobre o processo estrutural é uma medida vista como necessária e até natural para o país. A proposta atual, que ainda será amplamente debatida, contempla o essencial, embora, para alguns, levante dúvidas quanto às funções do juiz, ao uso da mediação e à possibilidade de ajustes nos planos após sua definição.

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, o processo estrutural é uma forma de lidar com disputas que afetam diversos interesses e grupos sociais, cujas soluções precisam ser graduais e duradouras. Muitas vezes, isso envolve a reestruturação de políticas públicas ou privadas.

Ainda não há uma legislação específica e detalhada sobre o tema, mas juízes e tribunais brasileiros já vêm adaptando o processo tradicional e atuando de maneira estrutural há anos.

O desembargador Edilson Vitorelli, do Tribunal Regional Federal da 6ª Região, aponta que essas experiências inspiram a elaboração de uma Lei do Processo Estrutural: “Vivemos em um país de legislação, então é natural que aquilo que começa a ser realizado desperte o interesse de regulamentação”.

Segundo o advogado e procurador de Justiça aposentado Édis Milaré, um dos maiores nomes do Direito Ambiental brasileiro e grande entusiasta do tema, o processo estrutural é aplicado no país “de maneira ainda dispersa e informal”. E o objetivo da comissão no Senado é padronizar as regras para isso. “Ainda que esses processos estejam em prática, a ausência de uma normatização específica para o processo estrutural deixa algumas lacunas”, diz Milaré.

Sem uma lei, não existe uma definição precisa sobre o papel do juiz e das partes nesses processos, os limites da atuação judicial, os mecanismos de execução, o acompanhamento das decisões etc.

Na visão do advogado, a regulamentação formal do processo estrutural permitirá “maior controle e previsibilidade no uso desse mecanismo, além de proporcionar segurança jurídica e transparência nas decisões que demandam uma participação ativa do Poder Judiciário na reestruturação de políticas e instituições”.

Parâmetros

Desde o início, os responsáveis pelo anteprojeto no Senado trabalham com a ideia de estabelecer regras gerais por meio de uma lei pequena — “mais principiológica do que detalhada”, nas palavras de Sergio Cruz Arenhart, procurador regional da República e membro da comissão.

De acordo com ele, em linhas gerais, o grupo tem como objetivo estabelecer o que é possível em um processo estrutural, quando ele ocorre, onde deve tramitar, os mecanismos de atuação do juiz e as maneiras de execução das decisões, entre outros detalhes.

O relator da comissão é o desembargador Vitorelli. Ele apresentou, em setembro, um relatório preliminar — uma proposta inicial de texto para o anteprojeto —, que deve receber emendas dos demais membros e ser votado ao final deste mês de outubro.

A comissão é presidida por Augusto Aras, ex-procurador-geral da República e hoje subprocurador-geral da República. O vice-presidente é o ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça.

Outros dois ministros do STJ também integram a comissão: Nancy Andrighi e Gurgel de Faria. O desembargador Aluísio Mendes, do TRF-2, também representa a magistratura no grupo.

A lista de membros é completada por professores universitários e dois advogados indicados pela OAB: Nabor Bulhões e Marcus Vinicius Furtado Coêlho, este último ex-presidente do Conselho Federal da entidade.

De acordo com Vitorelli, a proposta do relatório preliminar não é produzir um código: “Ele usa as regras do Código de Processo Civil e da Lei da Ação Civil Pública (ACP). Faz apenas alguns ajustes naquilo que o processo estrutural tem de peculiar”.

O magistrado explica que o texto contém um conceito de processo estrutural, seus valores fundamentais, regras de competência, modo de análise da petição inicial, forma de condução de acordos, diretrizes sobre a participação mais ampla de grupos sociais afetados pelo conflito, detalhes para a elaboração do plano de intervenção a longo prazo e a maneira como ele será acompanhado.

Previsões

O relatório de Vitorelli define o processo estrutural como “aquele que tem como objeto um conflito coletivo de significativa abrangência social, cuja resolução adequada depende de providências prospectivas, graduais e duradouras”.

Entre as normas fundamentais do processo estrutural apontadas no documento estão: “prevenção e resolução consensual e integral dos litígios estruturais, judicial ou extrajudicialmente”; “respeito às capacidades institucionais dos poderes e dos agentes tomadores de decisão”; “consideração dos regramentos e dos impactos orçamentários e financeiros decorrentes das medidas estruturais”; “efetivo diálogo entre o juiz, as partes e os demais sujeitos”; “participação dos grupos impactados”; e “ênfase em medidas prospectivas, mediante elaboração de planos com objeto, metas, indicadores e cronogramas bem definidos, com implementação em prazo razoável”.

Para reconhecer que um litígio tem “caráter estrutural”, o juiz deve levar em conta “a abrangência social do conflito, a natureza dos direitos envolvidos, as informações técnicas disponíveis, a potencial efetividade e os limites e dificuldades da solução estrutural, assim como todos os fundamentos e argumentos apresentados pelas partes”.

O acordo ou a decisão judicial “que atribui caráter estrutural ao processo” precisará especificar “o objeto da atuação estrutural sobre a qual recairá a atividade processual”.

A proposta também diz que o magistrado deve — com a participação e, se possível, o consenso entre as partes — “verificar a pertinência” da aplicação de diferentes técnicas para conduzir o processo.

Entre elas estão a promoção de reuniões, consultas técnicas ou comunitárias e audiências públicas; a designação de peritos, consultores ou entidades que possam contribuir para esclarecer questões técnicas, científicas ou financeiras envolvidas; a intimação de pessoas “que tenham contribuições técnicas ou poder decisório sobre as questões controvertidas”; e a decisão de pontos urgentes ou aspectos específicos, sobre os quais não haja consenso e que possam “otimizar a pauta de atuação estrutural”.

O texto prevê que o plano de atuação estrutural (o resultado final do processo) deve conter: um diagnóstico do litígio; “metas específicas e aferíveis, descritas de forma clara”; “indicadores quantitativos e qualitativos de alcance das metas”; um cronograma de implementação das medidas; prazos, parâmetros ou indicadores para determinar o encerramento do processo; definição dos responsáveis pela implementação das medidas; “metodologia e periodicidade de supervisão da implementação e de revisão das medidas”; indicação do envolvimento ou não de recursos do orçamento público e do modo como serão alocados.

Uma definição importante do relatório é a competência para a tramitação do processo estrutural. Vitorelli propôs “o foro do local da ação, omissão, dano ou ilícito”. Mas se os fatos atingirem a área da capital do estado, ela terá essa competência. Caso o impacto seja interestadual, qualquer capital entre os estados atingidos será competente, “observada a prevenção”.

Segundo Arenhart, a comissão se preocupou em estabelecer as regras de competência para evitar que processos de grande porte tramitem em locais não tão adequados ou preparados para atender às demandas.

Outra possibilidade estabelecida pelo relatório é que o magistrado solicite ao tribunal a nomeação de mais dois juízes para conduzir e julgar o processo de forma colegiada, ainda que em primeira instância.

Função diferenciada

O procurador destaca que a atuação diferenciada do juiz no processo estrutural é um ponto de atenção da comissão. Ele explica que a função do magistrado ganha contornos diferentes nesse método de solução de conflitos. Na lógica tradicional, ele apenas diz “quem tem razão”. No processo estrutural, ele “passa a ter uma função muito mais presente” e se torna “quase um mediador”.

De acordo com Milaré, o juiz, no processo estrutural, “pode assumir um papel que vai além do mero árbitro imparcial, adotando uma postura ativa e colaborativa, semelhante à de um mediador”.

Isso porque o magistrado coordena “diversos interesses e interações complexas entre as partes”, fica responsável por facilitar o diálogo entre elas e “intervém de forma minimalista”, ou seja, não age como um protagonista do processo.

O papel do juiz, portanto, não é apenas julgar, mas também articular soluções entre os envolvidos. Vitorelli afirma que seu relatório preliminar prevê a atuação do magistrado “como uma espécie de facilitador dos acordos”.

Por outro lado, o processo estrutural “também trabalha com uma dinâmica em que o juiz delega funções, tanto decisórias quanto executivas, para outras entidades”, explica Arenhart.

Ele exemplifica: em um caso de infração ambiental, o juiz pode pedir que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) oriente a elaboração de um plano para corrigir o problema.

Da mesma forma, o julgador pode criar um órgão ou comitê para acompanhar o cumprimento do plano. Foi o que o Tribunal de Justiça de São Paulo fez em 2013, ao determinar que a prefeitura da capital paulista apresentasse um plano de expansão das vagas em creches. Mais tarde, foi costurado um acordo no processo, homologado em 2017.

Tudo isso é permitido no processo estrutural porque o juiz nem sempre tem o conhecimento técnico ou mesmo condições de assumir todas as funções necessárias.

Na ACP do Carvão (Processo 93.8000533-4), de 1993 — em que a Justiça Federal adotou medidas estruturais para minimizar os impactos ambientais provocados pela extração de carvão no sul de Santa Catarina —, também foi criado um grupo técnico de assessoramento à execução da sentença.

Segundo Arenhart, existem exemplos bons e ruins. No caso das indenizações relativas ao rompimento da barragem de rejeitos de mineração de Mariana (MG), houve a criação da Fundação Renova, responsável por colocar em prática as ações de reparação dos danos a longo prazo. A entidade, porém, é acusada de não desempenhar bem tal função.

Mediação

Dentro da delegação de funções no processo estrutural, existe a possibilidade de se encaminhar o caso para a mediação propriamente dita, ou seja, designar mediadores para conduzir as negociações de forma técnica.

Isso está previsto no relatório preliminar de Vitorelli. O texto diz que o juiz, “além de atuar pessoalmente, pode remeter as partes à mediação ou a outras formas de autocomposição”.

Para Milaré, a presença de um “mediador formal” pode “fortalecer ainda mais o caráter cooperativo” do processo estrutural e permitir que o juiz se concentre nas decisões ou no acompanhamento das medidas.

“A inclusão de mediadores é vista como uma forma de garantir a efetividade e eficiência do processo, promovendo a autocomposição e evitando a imposição de decisões judiciais que podem ser percebidas como externas ou impostas pelas partes envolvidas”, diz o advogado.

O uso da mediação também pode reduzir o “risco de confrontos” e aumentar a “aceitação das soluções por parte dos envolvidos”.

Segundo a advogada Gláucia Coelho, doutora em Direito Processual Civil e sócia do escritório Machado Meyer Advogados, para que as partes consigam uma composição, elas precisam expor suas fragilidades e, muitas vezes, “lavar roupa suja”. Isso pode causar receio nos envolvidos caso o responsável por mediar as negociações também tenha a atribuição de decidir o conflito: “Você não quer fazer isso na frente do juiz”.

Para ela, as pessoas agem de modo diferente quando estão de frente com o magistrado, que tem o “poder da caneta”. As partes mantêm um “dever de reverência” e uma “polidez” maior com o juiz. Assim, por vezes, “a preocupação com essa figura de poder faz com que não se consiga chegar ao âmago das questões”.

Caso o magistrado faça algum apontamento, as partes e seus advogados tendem a pensar que o ponto levantado será importante em uma decisão no futuro. Com um mediador, isso não acontece, pois ele não terá tal poder.

“Um ‘veja bem’ de um juiz é diferente de um ‘veja bem’ de um mediador”, diz Gláucia. Quando um mediador faz algum apontamento, as partes tendem a receber “de uma maneira mais aberta”.

Para que a mediação aconteça de forma mais transparente e atinja resultados melhores, ela considera que o ideal é, em um primeiro momento, tentar o acordo sem o juiz. Caso não dê certo, o magistrado pode atuar da forma que melhor entender.

A advogada defende a presença de um mediador “formado para isso”, pois a mediação possui uma técnica que precisa ser estudada. Assim, se o relatório preliminar da comissão diz que o juiz “pode” enviar o caso à mediação, Gláucia propõe que isso seja obrigatório: “É um ponto que poderia ser aprimorado”.

Vitorelli, por outro lado, concorda que o mediador profissional é importante, mas acredita que isso “depende muito do perfil do caso”.

“Acho que há uma certa idealização da mediação em alguns casos”, afirma ele. Segundo o desembargador, o juiz pode conseguir uma “autocomposição mais propositiva, que flui melhor”.

Ele diz que a atuação de um magistrado na mediação foi essencial para o acordo de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Brumadinho (MG) — assinado em 2021. Vitorelli atuou no caso como negociador, pelo Ministério Público Federal, antes de se tornar desembargador.

Coisa julgada

Gláucia Coelho aponta que, em um processo estrutural, o plano proposto pode se provar ineficiente. Da mesma forma, as situações para as quais ele foi pensado podem mudar. Nesses casos, é preciso algum mecanismo para rever suas previsões.

E o relatório de Vitorelli contempla isso. O texto diz que “as metas e indicadores da atuação estrutural podem ser alterados pelas partes, de comum acordo, ou por decisão judicial, com base em fatos supervenientes, em alterações da realidade do conflito ou em novas informações ou diagnósticos que se tornem conhecidos no curso do processo”.

Além disso, “as decisões judiciais e os acordos, no processo estrutural, são passíveis de revisão ou ajustes, mediante provocação de qualquer interessado, em razão de fatos supervenientes, bem como de novas avaliações acerca dos efeitos da implementação do plano, inclusive em fase de cumprimento ou execução”.

Mas, ao mesmo tempo em que defende essa abertura, a advogada também ressalta a importância de um limite. Segundo ela, o plano de atuação estrutural demanda planejamento, investimentos e alocação de recursos. Por isso, não pode ser alterado por mero “arrependimento” ou “oportunismo” de alguma parte.

Na sua visão, a possibilidade de modificação posterior do plano sem limites gera insegurança: “Permitir essa oxigenação, quando ela é necessária, porque os fatos mudaram, é o ponto difícil”.

Para a advogada, esse pode ser um ponto de atenção nas discussões da comissão: a definição do que pode e do que não pode ser revisitado no processo estrutural após o estabelecimento de um plano.

Quanto ao restante do texto, ela se mostra satisfeita. “É uma regulamentação que precisa ser mais ampla mesmo, e trabalhar mais com conceitos jurídicos indeterminados, que o juiz vai preencher no dia a dia.”

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