Opinião

Investigações no STJ: um elogio, um desagravo e uma defesa desnecessários

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

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24 de outubro de 2024, 10h00

O grau de permissividade e até de leniência moral no ataque às reputações no país chegou a patamares tão elevados que parece haver-se normalizado e convertido em algo aceitável. As notícias, recentemente divulgadas, sobre supostos atos de corrupção no Poder Judiciário, disseminam-se com alta velocidade na mídia tradicional e nas redes sociais.

Spacca

No último dia 8 de outubro de 2024, promoveu-se um desagravo e expôs-se o apoio público a quatro ministros na sessão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a presidência do ministro Humberto Martins, que contou com a adesão dos demais pares do colegiado, do representante do Ministério Público e de advogados presentes ao ato. Gestos dessa natureza antes eram vistos como um exemplo de cortesia institucional e de crença nas instituições. Hoje, não há mais essa coesão de significado em razão do já mencionado nível de violência simbólica em ações que conspurcam a dignidade de autoridades públicas.

O efeito manada, a irracionalidade dos comportamentos anônimos em redes sociais e a difusão de fake news geraram um efeito corrosivo na forma como esses agentes públicos são reconhecidos e compreendidos socialmente. Todos esses aspectos levaram-me a escrever este texto que não tem função de defesa dos ministros do STJ, que dela não precisam, e não possui caráter de desagravo, pois eles não carecem de um gesto dessa natureza vindo de um simples professor universitário e advogado da União, licenciado de suas funções para interesse particular há poucos meses.

Este texto não é também  um elogio público, dado que os ministros são conhecidos por sua postura discreta e seu comportamento modesto na vida social. Se não é este artigo uma defesa, um desagravo ou um elogio público, para que ele serve?

Bem, já lá chegaremos

Fui assessor do STJ no começo da década de 2000, graças à confiança e à generosidade de uma das pessoas mais leais que já conheci, o ministro Humberto Martins. Vivenciei por dentro as estruturas do tribunal, as dificuldades gerenciais do órgão e o trabalho descomunal a que os ministros e seu staff de gabinete estão entregues. Nos últimos 20 anos, esse quadro só se tornou mais acentuado em termos de trabalho e de demandas da sociedade.

O tribunal ampliou sensivelmente o número de assessores em cada gabinete. Os processos (ainda) não diminuíram de volume, embora já sejam perceptíveis os efeitos das últimas reformas na Constituição e no Direito Processual em algumas turmas de Direito Público.

O isolamento social gerado pela pandemia gerou algumas externalidades, cuja bondade ou negatividade não me vou deter a respeito, ao exemplo da generalização do teletrabalho e da ampliação das audiências virtuais. Alguns ministros que eram radicalmente contrários ao trabalho remoto ou mesmo híbrido tiveram de ceder ante as demandas de servidores sob pena de não conseguirem conservar seus quadros funcionais.

As audiências virtuais majoraram o acesso aos gabinetes e o contato entre o corpo de servidores e o público externo, que era antes algo impensável. A nova rotina se converteu em algo natural dada a impossibilidade de o ministro estar em todos esses despachos.

Há, portanto, um novo modo de distribuição de Justiça e uma complexidade nunca vista no modo como os gabinetes funcionam e como a prestação jurisdicional é hoje oferecida aos cidadãos. Se os gabinetes eram estruturados em relações de confiança e de delegação controlada de atividades do ministro para o corpo técnico, com tantos câmbios, esse modelo tornou-se vulnerável quando há a ruptura unilateral desse pacto.

A quase totalidade — e não se pode mais dizer a totalidade em razão dos últimos acontecimentos — dos servidores e assessores é formada por pessoas abnegadas, dedicadas, sérias e responsáveis. Todos abdicam da vaidade de produzir textos próprios para emprestar seu ofício à construção da melhor decisão ou do melhor acórdão, entregando ao povo a justiça célere de que espera do “supremo tribunal do direito ordinário”, que é o STJ.

O problema, no caso das decisões judiciais — e lembre-se aqui que cada juiz brasileiro responde pela média de 2.000 julgados por ano (muito mais do que petições e reportagens) — é que, quando o equilíbrio nos tribunais é rompido, fica exposta a figura simbólica que lidera essa pequena indústria judicial que é um gabinete de ministro, apropriando-me das visões de Richard Posner, que afirmou ser necessário admitir que o magistrado não é mais o autor solitário de atos decisórios. O juiz converteu-se em um gestor eficiente de uma máquina de prestação de justiça, outro achado das investigações de Fernando Fontainha.

Essa compreensão da realidade demonstra o quão difícil é, na atualidade, para os ministros do Supremo e de tribunais superiores, desembargadores ou juízes de primeiro grau controlar de modo absoluto situações como as que foram divulgadas em relação ao STJ. A figura do ministro não tem a onisciência e a onipresença capazes de tudo ver e tudo acompanhar no cotidiano. Esse pacto de solidariedade institucional é falível.

No caso dos quatro ministros, e só deles cuidarei pois são aqueles cujos nomes estão nas manchetes, posso dar uma nota muito específica. Todos eles são pessoas honradas, sérias, competentes e dedicaram suas vidas a um sacerdócio silencioso, que merece respeito da sociedade, dos jurisdicionados e dos integrantes do sistema de justiça.

A ministra Nancy Andrighi, que conheci no final dos anos 1990, graças ao ministro Athos Gusmão Carneiro, é pessoa digna, séria e respeitável. Uma mulher corajosa, que fez de sua vida um exemplo de virtudes para qualquer magistrado ou magistrada.

A ministra Maria Isabel Gallotti, de tradicional família dedicada ao serviço público no Brasil há mais de século, fez uma carreira brilhante e é reconhecida pela qualidade técnica e pela rigidez de caráter.

O ministro Og Fernandes, um magistrado de carreira do Tribunal de Justiça de Pernambuco, é um homem de grande erudição e reservado, com uma folha de serviços prestados ao Poder Judiciário.

O santista Moura Ribeiro, egresso do grande Tribunal de Justiça de São Paulo, é um juiz dedicado, respeitoso e que construiu uma sólida carreira acadêmica no Direito Privado. Sobre todos poderia eu escrever muito mais para destacar suas virtudes, embora isso seja desnecessário pela própria notoriedade dessas características.

E, por favor, peço ao leitor e à leitora que não tomem o parágrafo antecedente como mais um exemplo de panegíricos tão comuns em orações dos meios jurídicos, muitas vezes, vazias de sinceridade e ricas em ouropéis de retórica. Trata-se de um testemunho de alguém que está na vida jurídica desde 1992 como aluno de Direito e já viu muitas ondas, algumas borrascas e poucos maremotos no setor.

Essas quatro pessoas são um símbolo do que há de melhor na justiça brasileira. Juízes que lembram a descrição do comparatista norte-americano John Henry Merryman sobre as virtudes tradicionais do modesto juiz de civil law, avesso a holofotes e discreto no exercício do poder constitucional que o povo lhes conferiu quando ingressaram em suas carreiras.

Se o leitor ou a leitora dignaram-se a chegar até aqui, creio que posso responder à pergunta: de que serve este texto?

Se não é um elogio, um desagravo ou uma defesa, para que escrevê-lo?

A resposta é simples

Serve para dizer que os quatro ministros não precisam desses três gestos, porque a vida deles já os defende, elogia e desagrava. Basta olhar para suas décadas de história no serviço público.

Infelizmente, em algumas ocasiões, é preciso que alguém se lembre do óbvio. E é para isso que serve este texto, na verdade.

Em tempos de insanidade, impiedade e incompreensão, até o óbvio pode-se tornar uma mercadoria valiosa. Ministras Nancy Andrighi e Isabel Gallotti, ministros Og Fernandes e Moura Ribeiro, perdoem-me por escrever o óbvio.

Tanto os ministros do STJ quanto o corpo de magistrados auxiliares, assessores e servidores do Superior Tribunal de Justiça merecem o respeito da sociedade brasileira. Sigam firmes no exercício de seus ofícios constitucionais.

Autores

  • é conselheiro do CNE (Conselho Nacional de Educação) e presidente da Câmara de Educação Superior, professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Licenciatura Lusobrasileira), doutor e livre-docente em Direito Civil (USP). Advogado e parecerista em Direito Privado (licenciado da Advocacia-Geral da União).

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