(Ir)relevância do 'erro de fato' e 'de direito' para revisão do lançamento tributário (parte 2)
23 de outubro de 2024, 20h36
O primeiro texto da série que foi publicado (“A revisão do lançamento tributário: o que é e o que não é (parte 1)”) tratou do conceito de revisão do lançamento tributário, definindo-o como o poder que tem a autoridade fiscal para corrigir o lançamento, por meio da sua retificação ou substituição.
No entanto, a controvérsia em relação ao instituto não se esgota no sentido que deve lhe ser dado. Há um outro problema que diz respeito à falta de convergência, na experiência tributária, em relação às hipóteses de cabimento da revisão do lançamento estabelecidas no CTN.
Pelo menos três fatores contribuem para esse entrave: (1) a disciplina concomitante do artigo 149 do CTN em relação ao lançamento de ofício e à sua revisão; (2) a falta de uma solução definitiva sobre o cabimento da revisão do lançamento nos chamados “erro de fato” e “erro de direito”; e (3) a falta de padrão normativo por parte das legislações tributárias que preveem a revisão do lançamento.
Neste segundo texto da série, será analisado especificamente o item “(2)” aludido acima, i.e., a importância da distinção entre “erro de fato” e “erro de direito”, para a revisão do lançamento tributário.
No Direito Tributário, o “erro de fato” consistiria na inadequação do fato jurídico e/ou da relação tributária em relação às provas que dão suporte ao lançamento. Um exemplo seria, em um lançamento para cobrança de IPTU, apurar a base de cálculo utilizando o valor e características do imóvel vizinho, e não do bem que deveria ser objeto da cobrança.
Já o “erro de direito” seria um vício de interpretação jurídica, resultando na aplicação indevida de uma norma jurídica ao caso concreto. Constituiria em uma desarmonia entre o lançamento e a norma geral e abstrata que regula a sua produção. Um exemplo seria um lançamento de ofício, para cobrança de tributos aduaneiros, com base em uma classificação fiscal incorreta; ou um lançamento de ofício, para cobrança de ISS, com base em um item da lista de serviço no qual não se enquadrada a atividade desempenhada.
Histórico
A repercussão dos chamados “erro de fato” e “erro de direito” na revisão do lançamento é uma discussão que se arrasta há muitas décadas e já era alvo de divergência no âmbito do Supremo Tribunal Federal [1] em meados do século passado. Em 1958, em acórdão proferido no RE 37.141, ao abordar a possibilidade de o Fisco rever o lançamento, decidiu-se que a existência de erro de fato viabilizaria a sua alteração, vedando-a na hipótese de erro de direito. Por sua vez, a mesma Suprema Corte, quando do julgamento do RE 38.164, em 1959, firmou convicção no sentido de que ambos, o erro de fato e o erro de direito, autorizariam a revisão do lançamento tributário.
A questão, com passar do tempo, não foi pacificada, rendendo, ainda, intensos debates. Uma corrente da doutrina [2] defende a tese de que, quando eivado de erro de fato, o lançamento seria passível de revisão, ao passo que, quando maculado de erro de direito, não sendo suscetível a ato revisional. Outra parcela [3], contudo, sustenta que, presente um ou outro, o ato de lançamento deve ser revisado.
Análise das normas
Apresentado o cenário nebuloso que envolve a matéria, é necessário dar um passo atrás e investigar o que deve ser a resposta da controvérsia: o ordenamento jurídico. Os problemas apresentados no sistema do Direito devem examinados e solucionados com base em critérios e preceitos estritamente jurídicos.
Nesse contexto, é importante verificar o que o Direito diz e qual o regramento ele dá à categoria examinada, mesmo que se trate de um objeto histórico. O respeito à tradição não pode se transformar em temor científico, inibindo a investigação de categorias jurídicas clássicas.
Desse modo, é crucial verificar, no nosso sistema, se o “erro de fato” e o “erro de direito” constituem uma categoria jurídico-positiva, isto é, se, de fato, são elementos previstos na ordem tributária e, caso existentes, se interferem no exercício da revisão do lançamento.
Analisando o CTN, nenhum enunciado contempla a distinção entre “erro de fato” e “erro de direito”, tampouco possibilita a revisão do lançamento quando verificado um ou outro.
Havia, no artigo 111, inciso IX, do Projeto do CTN [4], uma previsão de revisão de lançamento, “quando o lançamento anterior estivesse viciado por erro na apreciação dos fatos ou na aplicação da lei”. No entanto, a disposição não chegou a ser inserida no sistema jurídico, não tendo sido introduzida no CTN, ficando relegada ao plano pré-jurídico.
Verifica-se que, examinando o CTN, tal como foi positivado, e as alterações que sobrevieram, não há previsão de revisão de lançamento, seja na hipótese de “erro de fato”, seja na hipótese de “erro de direito”.
Os efeitos jurídicos que devem apresentar o lançamento em face de uma ou outra circunstância dependem do regramento traçado pelo CTN. Não se pode inferir diferentes consequências jurídicas quando o direito assim não as previu. É ele quem define os contornos e dá a medida de atuação de uma categoria jurídica.
Souto Maior Borges dizia que “o Código Tributário Nacional, em nenhum dos seus dispositivos, acolhe a suposta distinção entre erro de direito e erro de fato. Por isso, só merece os devidos encômios. Esquivou-se de uma incorreção de técnica legislativa” [5].
Na verdade, o que o inciso VIII do artigo 149 do referido Código autoriza é a revisão, quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior.
Como o CTN impôs um limite à revisibilidade, exigindo que a existência de fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior, “não parece que seja correto enveredar sobre uma querela sempre recorrente na doutrina entre “erro de fato” e “erro de direito”” [6].
A vinculação da revisão de lançamento à qualificação do erro não tem suporte no Código Tributário Nacional, que é o diploma que tem a incumbência constitucional de dispor sobre normas gerais de lançamento (artigo 146, inciso III, do CTN).
Assim, não há diferença essencial, em matéria de revisão, entre lançamento com erro porque (1) está em desacordo com o acontecimento ocorrido e com as provas que o lastreiam; (2) foi praticado com ignorância da existência de alguma norma vigente; (3) foi efetuado com desconhecimento de um critério de interpretação do direito; (4) recaiu sobre uma situação de fato que não devia ter sido regulada ou deveria ter sido disciplinada diversamente; (5) aplicou uma norma jurídica revogada [7].
Conclusão
Dessa maneira, não parece juridicamente adequado utilizar os chamados “erro de fato” e “erro de direito” para qualificar os defeitos contidos nos lançamentos e, assim, determinar se tais atos são passíveis ou não de revisão, como, equivocamente, tem feito inclusive a jurisprudência no país.
O que é relevante, para fins de revisão de lançamento, é verificar se houve fato não conhecido ou que não foi possível provar no lançamento anterior. É isso que se passará a enfrentar no terceiro e último texto da série sobre revisão do lançamento tributário.
[1] Cf. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 37141, Relator(a): Min. Ribeiro da Costa, Segunda Turma, julgado em 26/08/1958.
Cf. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 38164, Relator(a): Min. Henrique D’avilla, Primeira Turma, julgado em 14/05/1959.
[2] Cf. SOUSA, Rubens Gomes de. Estudos de direito tributário. São Paulo: Saraiva. 1950, p. 235; CANTO, Gilberto Ulhôa. Temas de direito tributário. Rio de Janeiro: Alba. 1964, Vol. I, p. 176; CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 397 e 398; DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tributário brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 811.
Cf. SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 266 e 267; FIGUEIREDO, Marina Vieira de. Lançamento tributário: revisão e seus efeitos. São Paulo: Noeses, 2014, p. 184; MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 124.
[4] Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional, Rio de Janeiro, Ministério da Fazenda, 1954, p. 51.
[5] BORGES, José Souto Maior. Lançamento tributário. 2ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 1999, p. 281.
[6] TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: RT, 2011, p. 229/230.
[7] Cf. BORGES, José Souto Maior. Lançamento tributário. 2ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 1999, p. 280.
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