Interpretação do STF no Tema 725 e ADPF 324 e inconstitucionalidade do art. 2 e 3 da CLT
23 de outubro de 2024, 18h27
Há pelo menos dois anos vem sendo travada uma verdadeira guerra fria entre o Supremo Tribunal Federal e a Justiça do Trabalho em relação ao entendimento consolidado no Tema 725 e na ADPF 324, especialmente, no que se refere à contratação de pessoas jurídicas ou à existência de contrato de prestação de serviços entre pessoas jurídicas.
Uma breve leitura dos acórdãos que concluíram o julgamento do Tema 725 e da ADPF 324, inclusive na discussão travada entre os ministros, não se constata, de maneira alguma, análise do tema “contratação de pessoa jurídica e contratação entre pessoas jurídicas”, a conhecida “pejotização”. A questão central objeto da ação e recursos direcionados ao STF consistiu na possibilidade da terceirização da atividade-fim e da responsabilidade solidária/subsidiária do tomador de serviços (Súmula 331 do TST).
O equívoco da situação já se inicia quando se denomina contratação de pessoas jurídicas pelo termo “pejotização”, o qual, na verdade, em sua real acepção, consiste na contratação de profissionais por meio de pessoas jurídicas com o único subterfúgio: a fraude para mascarar relação de emprego.
São verdadeiros empregados que, na aparência, e no início da relação ostentam a figura de um PJ, de um empresário, mas que na realidade, ao contrário, são obrigados a exercer todas as funções de um empregado, nos moldes dos artigos 2º e 3º da CLT. E a diferença primordial que norteia um verdadeiro “profissional PJ” de um empregado é a forma como a subordinação jurídica se dá na relação e a autonomia.
Em segundo lugar, admitir o tratamento igualitário dessas situações jurídicas significa contrariar o que o legislador optou por definir: a criação da figura do empregado e empregador dos artigos 2º e 3º da CLT.
Oportuno salientar desde já que a Justiça do Trabalho, e a boa e abalizada doutrina jamais proibiu a contratação de profissionais por meio de pessoa jurídica. A questão da proibição e quanto a isso ousamos concordar consiste na existência de contratações que visam a burlar a legislação vigente. Não se pode negar que a contratação de profissionais por meio de pessoa jurídica possa parecer sob o ponto de vista do empregador mais viável, mais econômico. Essa modalidade de contratação, contudo, deve obedecer, em primeiro lugar, a autonomia que a permeia.
Mercado dita as regras de contratação
Na maioria dos casos, o mercado dita as regras de como se dará contratação, e o profissional não tem outra opção senão aderir à forma imposta, sob pena de ficar à mercê de trabalho. Essa situação é muitas vezes confundida com “opção” do trabalhador pelo regime de contratação via pessoa jurídica, o que não é o caso.
E ainda que fosse opção de ambas as partes a contratação por essa modalidade, grande parte dos profissionais assina documentos prontos por quem detém maior poder de barganha (contratos de adesão) e, acreditando que a relação de trabalho será permeada pela autonomia, no curso da relação verifica que a situação não é a que se apresentava no momento da contratação, pois o tratamento dado é como o de um empregado celetista, nos moldes dos artigos 2º e 3º da CLT, porém, sem receber o que lhe é de direito.
Essas são as situações de fraude, que não podem ser ignoradas pelo Judiciário, mormente em um país como o Brasil, onde os direitos trabalhistas foram obtidos com tanto sacrifício e, infelizmente, até hoje há notícias de trabalho escravo.
Contudo, na contramão dos direitos dos trabalhadores, o STF vem proferindo decisões contrárias ao que os artigos 2º e 3º da CLT dispõem, o que preocupa a todos os operadores do Direito do Trabalho, incluindo, o Ministério Público do Trabalho.
Embora louvável o entendimento assentado pela Suprema Corte acerca da licitude da “terceirização de atividade-fim e meio” e da denominada terceirização por “pejotização”, uma espécie de presunção lógica e absoluta sobre a legalidade de “qualquer divisão do trabalho entre pessoas jurídicas” tem sido disseminada no STF, o que, de certa forma, esvazia a competência da Justiça Laboral.
STF tem anulado decisões de vínculo trabalhista
O STF tem revisado e anulado decisões proferidas pela Justiça do Trabalho, em sede de reclamação constitucional, que reconhecem o vínculo de emprego entre trabalhadores e empresas, cuja relação inicial aparente seria de terceirização ou terceirização por “pejotização”.
Como se não bastasse, e essas decisões vêm sendo adotadas, mesmo havendo nos processos um vasto acervo probatório da subordinação jurídica e demais requisitos do vínculo de emprego, tais como (existência de controle de ponto, impossibilidade de substituição, existência de poder punitivo — advertência ou demissão etc.).
Acirra-se ainda mais esta crise institucional, pois vem se instrumentalizando a reclamação constitucional — não obstante se tratar de uma via estreita processual — para desconstituir estas decisões colegiadas da Justiça do Trabalho, sob a justificativa falha de violação à competência do STF.
Reitera-se. São decisões trabalhistas, proferidas pela primeira instância e confirmadas pelos tribunais regionais, que, ao contrário do aduzido nas decisões monocráticas proferidas pelo STF, não discutem a legalidade da “terceirização” ou “pejotização”, e sim, amparada em robusta matéria probatória, atestam a existência de fraude trabalhista.
A realização deste “distinguishing” em relação aos precedentes vinculantes fora, inclusive, aconselhada nos votos condutores dos julgamentos do Tema 725 e ADPF 324.
ADPF 324:
Nota-se, portanto, com base nas considerações acima, que o que precariza a relação de emprego não é a terceirização, mas seu exercício abusivo. (…) Afirmar a licitude da terceirização como estratégia negocial, tanto no que respeita à atividade-meio, quanto no que respeita à atividade-fim, não implica, contudo, afirmar que a terceirização pode ser praticada sem quaisquer limites. A prática tem demonstrado – e a situação está muito bem retratada nos arrazoados dos amici curiae que se opõem à procedência desta ação – que algumas empresas contratadas deixam efetivamente de cumprir obrigações trabalhistas e previdenciárias e que, quando acionadas, constata-se que tais empresas não dispõem de patrimônio para honrar as obrigações descumpridas. (…). Como já observado, a atuação desvirtuada de algumas terceirizadas não deve ensejar o banimento do instituto da terceirização. Entretanto, a tentativa de utilizá-lo abusivamente, como mecanismo de burla de direitos assegurados aos trabalhadores, tem de ser coibida. Essa é a condição e o limite para que se possa efetivar qualquer contratação terceirizada. Os ganhos de eficiência proporcionados pela terceirização não podem decorrer do descumprimento de direitos ou da violação à dignidade do trabalhador.”Tema 725:
“Em segundo lugar, porque a denominada “intermediação de mão de obra” ilícita, como salientado pelo Ministério Público do Trabalho e no próprio parecer da Procuradoria-Geral da República, consiste em mecanismo fraudulento que visa burlar a efetividade dos direitos sociais e previdenciários dos trabalhadores; desvalorizar o primado do trabalho, por meio de abuso e exploração do trabalhador e ocultar os verdadeiros responsáveis pelas contratações, para impedir sua plena responsabilidade; o que, não raras vezes, acaba tipificando hipóteses de trabalho escravo.”
Competência da Justiça do Trabalho afastada
Tamanha a dimensão alcançada por esta problemática que a Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), lançou um estudo no dia 2 de maio de 2024, o qual, por meio da análise de 1.039 decisões desta Suprema Corte, entre monocráticas e colegiadas, no período de 1º de julho de 2023 e 16 de fevereiro de 2024, destacou que, embora a jurisprudência do STF exija a existência de aderência estrita entre a decisão reclamada e o paradigma indicado, em muitas das reclamações analisadas o requisito foi flexibilizado para afastar a competência da Justiça do Trabalho.
Tratando-se de uma via processual estreita, destaca-se que não apenas a aderência estrita está sendo ignorada, como também a verificação da utilização deste instrumento como sucedâneo recursal e até mesmo o trânsito em julgado da lide na seara trabalhista, em clara afronta à Súmula nº 734/STF.
Contudo, o que mais chama a atenção é a naturalidade que os ministros, em notória afronta à Súmula nº 279/STF, vêm adentrando — e desprezando — a instrução probatória analisada pela Justiça do Trabalho e rechaçando, monocraticamente, a existência de relação empregatícia sem sequer requisitar informações à autoridade prolatora da decisão ou ouvir a parte beneficiária (empregado).
Ressalta-se que a requisição de informações e citação da parte beneficiária são obrigações processuais — e não faculdades — estabelecidas pelo artigo 989, II e III, CPC, as quais, no entanto, têm sido descumpridas pelo Supremo Tribunal Federal, sob a justificativa da celeridade processual.
Sobre este ponto, reproduz-se trecho de voto proferido pela ministra Carmen Lúcia, na RCL nº 71.162/SP, que defende o retorno dos autos para rejulgamento da reclamação trabalhista à luz dos precedentes vinculantes:
“Não se pode, a pretexto de obter-se celeridade processual, confundir o instituto jurídico reclamação constitucional com a reclamação trabalhista em tramitação na origem. A causa de pedir e o pedido deduzido nessas ações não se confundem. Na reclamação constitucional, busca-se resguardar a competência deste Supremo Tribunal ou restabelecer a autoridade de seus pronunciamentos dotados de efeito vinculante e eficácia erga omnes.
Ao se permitir o julgamento imediato da causa no Supremo Tribunal Federal, seriam indevidamente suprimidas as instâncias judiciais previstas no ordenamento jurídico vigente, transformando-se este Supremo Tribunal em instância única de jurisdição, o que não se pode admitir. Essa medida debilitaria o processo de construção do debate e o amadurecimento de teses jurídicas, além de frustrar o caráter corretivo e pedagógico que a cassação da decisão reclamada é capaz de promover nas instâncias ordinárias, a partir da determinação de que se julgue novamente a matéria, dessa vez tomando como parâmetro inafastável o paradigma cujo descumprimento se indicou.”
O próprio RISTF, em seus artigos 157, 159 e 160, também contempla esse diálogo contínuo, tanto com a autoridade prolatora, como com a própria Procuradoria-Geral da República, antes do proferimento da decisão.
Inclusive, esta última, em 22 de setembro de 2023, nos autos da RCL 60.620/SP, diante deste cenário que pouco contribui com o fortalecimento dos precedentes, requereu, nos termos do artigo 947, CPC/15, a instauração de Incidente de Assunção de Competência para que fosse afetada aquela reclamação ao Plenário do STF e fosse formado entendimento sobre o tema “limites das teses fixadas na ADPF 324/DF, no RE 958.252/MG (Tema 725 da Repercussão Geral), nas ADIs 5.625/DF e 3.961/DF e na ADC 48/DF para fins de cabimento da reclamação junto ao STF nas hipóteses da declaração de existência de fraude à caracterização do vínculo de emprego”.
Procuradoria à favor da Justiça do Trabalho
Para a Procuradoria-Geral, à época capitaneada por Augusto Aras, a análise sobre a existência do vínculo empregatício é tida como uma das mais importantes funções desempenhadas pela Justiça do Trabalho e um dos principais temas de litígio em matéria trabalhista, ressaltando uma infinidade de decisões contraditórias em casos idênticos, destacando o entendimento pela inviabilidade de reclamações como, por exemplo, na Rcl 55.806-AgR (relator ministro Nunes Marques), na Rcl 55.164-AgR (relator ministro Ricardo Lewandowski) e na Rcl 56.098-AgR (relator ministro Luiz Fux).
Ocorre que, como aquela reclamação teve seu seguimento negado pelo ministro Edson Fachin, o pedido perdeu seu objeto e nunca mais foi suscitada esta tentativa de uniformização do posicionamento.
É necessário se atentar que não se trata de uma decisão monocrática isolada; a pejotização, atualmente, é a realidade.
Logo, um instituto que poderia ser benéfico e adequado ao mercado de trabalho moderno, se utilizado da forma abusiva que está sendo feita, sem qualquer contrapeso, além de incompatível com o Estado democrático de direito, também será bastante prejudicial para as gerações futuras.
Neste sentido, importante citar o voto do ministro Flávio Dino na RCL nº 68.787/MG e RCL nº 66.155/ES:
“Realço que, no sistema constitucional pátrio, a relação de emprego é a regra, conforme deflui do artigo 7º da Constituição, e as demais formas de trabalho são válidas apenas quando efetivamente se diferenciam daquela.
(…)
A pejotização desenfreada é incompatível com a proteção e promoção do regime constitucional dos direitos sociais, inclusive quanto ao financiamento da seguridade social. Se não houver obediência das novas formas de trabalho a um regime de direito e deveres que preserve a seguridade social irá se constituir uma autêntica “bomba fiscal” para as atuais e futuras gerações. Como explicam os professores Nelson Marconi e Marco Capraro Bancher, da Fundação Getúlio Vargas:
“(…) ressaltamos que a perda de receita decorrente da pejotização causa impacto relevante nas contas públicas. É um importante aspecto a considerar quando são analisados os efeitos da flexibilização ampla pretendida para o mercado de trabalho na direção de possibilitar situações de violação à legislação trabalhista. Nesse cenário, a própria discussão sobre desoneração da folha de pagamento, cujo alcance a União vem tentando restringir, se torna inócua, pois tanto o conjunto de impostos, como a base de tributação que incidiria sobre o trabalho se reduziria consideravelmente. Destaque-se que a eliminação de direitos trabalhistas decorrentes da pejotização, como décimo terceiro, horas extras, adicionais de insalubridade ou periculosidade, também diminuirá a base de cálculo dos impostos. Adicionalmente, é importante ressaltar que o poder de fiscalização e controle por parte da Receita Federal também seria enfraquecido, pois é mais difícil fiscalizar muitas empresas com somente um funcionário que poucas empresas com muitos funcionários, cujo recolhimento se dá diretamente na fonte e de forma concentrada. Com este estudo, buscamos demonstrar que a eventual substituição do regime celetista, de forma fraudulenta, através da aqui intitulada ‘pejotização’, ao longo do tempo, provocará efeitos deletérios sobre a receita fiscal, prejudicando tanto o financiamento do regime previdenciário como a própria capacidade do Estado para realizar políticas públicas”.
Acrescento que ocorrerão também efeitos deletérios com a sobrecarga do SUS, por exemplo nos casos de acidente de trabalho, bem como do Sistema de Assistência Social – com a ampliação dos benefícios assistenciais da LOAS, nos casos de perda total de renda na idade avançada sem a cobertura previdenciária.”
Como já dito, não se trata de uma mera conformação do Supremo Tribunal Federal em relação à utilização desregrada da reclamação constitucional para esvaziar a competência da Justiça do Trabalho.
O buraco vem se mostrando muito mais embaixo, no entanto, tanto o Supremo Tribunal Federal, como a própria Justiça do Trabalho, como instituição, omitem-se em sua resolução e, com isso, por meio de uma interpretação distorcida do Tema 725 e ADPF 324, extirpa-se do ordenamento jurídico o artigo 2º e 3º da CLT e quem sofre é o trabalhador.
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