Garantias do Consumo

Evolução necessária: o Brasil rumo à vanguarda do tratamento do superendividamento

Autor

  • Leonardo Garcia

    é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

    Ver todos os posts

23 de outubro de 2024, 8h00

O tratamento do superendividamento no Brasil, previsto na Lei 14.181/2021, ainda se encontra em fase inicial de implementação, o que gera uma sensação comum de que a lei não está sendo plenamente aplicada. Entretanto, essa percepção de lentidão é normal e pode ser considerada parte de um processo evolutivo, como ocorreu em outros países, notadamente na França e nos Estados Unidos, onde o tratamento jurídico para o superendividamento foi uma construção gradual e contínua ao longo de anos.

Tanto na França quanto nos Estados Unidos, o caminho para a efetiva aplicação da legislação sobre superendividamento envolveu a superação de preconceitos, o entendimento dos objetivos sociais da legislação e, principalmente, a aceitação de que tratar o superendividamento é essencial para a reintegração do devedor na sociedade.

A experiência francesa é um exemplo claro de como esse processo pode ser demorado, mas, ao final, frutífero. O modelo francês de tratamento do superendividamento surgiu na década de 1990, com o objetivo de fornecer uma resposta ao crescente endividamento dos consumidores. Inicialmente, havia resistência, tanto social quanto jurídica, à ideia de que o devedor poderia ser “perdoado” ou reabilitado financeiramente. Foi somente após anos de ajustes legislativos, debates sociais e experiências práticas das Comissões de Superendividamento que a aceitação do “direito de recomeçar” se consolidou.

Lições para o Brasil

Nos Estados Unidos, a implementação do “fresh start” através do sistema de falências também não ocorreu de forma imediata. O capítulo 7 da Lei de Falências, que permite o perdão total das dívidas, foi inicialmente visto com desconfiança, especialmente pelos setores mais conservadores, que viam no sistema um estímulo ao “moral hazard”, ou seja, à irresponsabilidade financeira por parte dos consumidores. No entanto, ao longo do tempo, a jurisprudência norte-americana e a própria sociedade passaram a enxergar o “fresh start” como uma ferramenta crucial não apenas para a economia, ao permitir que o devedor continue contribuindo como consumidor, mas também para a manutenção da dignidade humana, ao evitar a exclusão social decorrente de uma dívida impagável.

O Brasil se encontra agora em um ponto semelhante ao que França e Estados Unidos enfrentaram em fases anteriores. A Lei do Superendividamento traz mecanismos importantes, como a conciliação para renegociação de dívidas e a proteção ao mínimo existencial do devedor, mas esses mecanismos ainda não são amplamente conhecidos ou aceitos por toda a sociedade.

O processo de adaptação e aceitação de uma legislação como esta requer tempo e um esforço conjunto de educação, reeducação financeira e, sobretudo, a superação de preconceitos enraizados na cultura brasileira, que tendem a culpar o devedor por sua própria situação financeira.

A evolução do tratamento do superendividamento na França e nos Estados Unidos oferece lições importantes para o Brasil. O sistema francês e o americano não foram construídos da noite para o dia; pois passaram por décadas de ajustes, aprimoramentos e reformas legislativas, sempre com o objetivo de melhorar a proteção aos consumidores superendividados.

Primeiros passos

No Brasil, o mesmo processo de evolução é esperado. A Lei 14.181/2021 é um marco importante, mas a plena efetividade do sistema só será alcançada com o tempo, à medida que o Judiciário, a sociedade e os credores compreendam a necessidade de reabilitação financeira dos devedores e superem preconceitos históricos ligados ao endividamento.

Portanto, é necessário ter paciência. A legislação brasileira ainda está em seus primeiros passos rumo a um sistema mais inclusivo e eficaz de tratamento do superendividamento. Assim como ocorreu na França e nos Estados Unidos, é natural que ajustes sejam necessários e que o pleno potencial da lei só seja percebido após um processo de construção jurídica, social e cultural.

O que se espera no Brasil é que possamos aproveitar as lições aprendidas com as experiências da França e dos Estados Unidos, tanto suas conquistas quanto seus desafios, para que nossa evolução legislativa e cultural no tratamento do superendividamento não seja tão demorada quanto foi nesses países.

Ao absorvermos as melhores práticas e evitarmos os erros enfrentados por eles, podemos acelerar o desenvolvimento de um sistema mais eficaz, adaptado à realidade brasileira, mas inspirado nos avanços já realizados internacionalmente.

A sabedoria está em aproveitar essas experiências, tanto negativas quanto positivas, para resolvermos de forma mais ágil esse problema social tão relevante, colocando o Brasil em posição de destaque global no tratamento do superendividamento e na proteção dos direitos do consumidor.

Autores

  • é procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP, ex-assessor do relator no Senado dos projetos de lei de atualização do CDC, membro do GT do CNJ para acompanhamento da efetividade da Lei do Superendividamento, professor de Direito do Consumidor e autor de diversas obras jurídicas, incluindo a Lei do Superendividamento Comentada e Anotada (Ed. Jupodivm, 2024).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!