Opinião

A trajetória do ministro Dias Toffoli e seus 15 anos de STF

Autor

  • Antônio Augusto de Queiroz

    é jornalista analista e consultor político mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV ex-diretor de documentação do Diap autor dos livros Por Dentro do Governo: como Funciona a Máquina Pública e RIG em Três Dimensões: Trabalho Parlamentar Defesa de Interesse perante os Poderes Públicos e Análise Política e de Conjuntura e sócio-diretor das empresas Consillium Soluções Institucionais e Governamentais e Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas.

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23 de outubro de 2024, 9h19

Neste outubro de 2024, o ministro José Antônio Dias Toffoli celebra 15 anos de atuação no Supremo Tribunal Federal, uma década e meia de dedicação à defesa do Estado democrático de Direito, das instituições republicanas e das garantias fundamentais, em suas variadas dimensões. Este artigo presta homenagem à trajetória desse grande homem público, destacando seus principais feitos e contribuições ao país, antes e depois de sua posse como ministro do STF.

Spacca

Na condição de observador da cena política em Brasília há 40 anos, e de seu amigo, fui convidado a dar um testemunho sobre a contribuição e o papel estratégico exercido por Dias Toffoli na função de ministro da Suprema Corte de nosso país nesses 15 anos. Não poderia me negar a fazê-lo e o faço contextualizando o processo de ascensão profissional do homenageado e os predicados que são exigidos de um ministro da Suprema Corte, que não se limitam à idade mínima de 35 anos, notável saber jurídico e reputação ilibada.

Devem incluir visão sistêmica dos três setores do sistema social: o Estado, o mercado e a sociedade civil, assim como do sistema de freios e contrapesos próprio da divisão das funções dos Poderes — um moderando ou controlando os excessos dos outros — além de equilíbrio emocional e sensibilidade política e social na prática da jurisdição constitucional.

Começo lembrando que na divisão clássica dos Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – cabe ao Judiciário julgar e resolver conflitos, competindo ao Supremo Tribunal Federal dar a palavra final nas contendas constitucionais entre instituições ou pessoas. Juiz de Suprema Corte, com tamanha responsabilidade, precisa ter visão sistêmica das três dimensões do Estado (a institucional, a forma como se organiza o sistema de poder; a processual, o modo como as instituições decidem, negociam e resolvem os conflitos; e a causal, o efeito da política pública sobre o sistema político), conhecimento jurídico, bom senso, capacidade e coragem para decidir à luz da Constituição. E Toffoli, apesar de jovem, chegou ao STF com habilidade no manejo dessas ferramentas cruciais para sua missão como ministro da Corte Constitucional.

Trajetória e personalidade

Nesse aspecto, poucos ministros do STF chegaram à corte após terem sido testados em cargos de relevo nos Poderes Legislativo e Executivo como José Antônio Dias Toffoli, além de experiência como militante de movimentos sociais, advogado e professor universitário. No Legislativo, foi assessor de gabinete parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo e na Câmara dos Deputados, tendo sido coordenador jurídico da bancada do PT na Câmara Federal, responsável por instruir a orientação do partido nas deliberações. No Executivo, além de assessor na prefeitura de São Paulo, foi subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República e Advogado-Geral da União. Como militante, atuou no movimento estudantil e de moradia de São Paulo e, como advogado, no Tribunal Superior Eleitoral em duas eleições presidenciais vitoriosas.

Em todos os cargos que exerceu ou postos que ocupou, colocou em prática suas principais características (estudioso, aplicado, criativo, pacificador, audacioso nas propostas e bem-humorado), seu estilo de gestão (conciliador e resolutivo, daqueles que nunca levam problemas para o chefe desacompanhado de solução) e sua marca registrada (formador de equipes multidisciplinares e de elevada capacidade técnica).  A humildade para ouvir e cultivar relações é outra dimensão de seu perfil, marcado pela busca de pacificação.

Porém, o exercício de dois cargos, em particular, por sua interface com o Supremo Tribunal Federal (o de subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República [1] e o de Advogado-Geral da União), mais do que dar ao então advogado José Antônio Dias Toffoli a exata dimensão estratégica do Supremo Tribunal Federal para a paz social, o credenciou a ocupar uma das 11 vagas do STF. Assim, ao assumir a cadeira de ministro da Suprema Corte, tinha clareza plena do papel do Estado, tanto nas dimensões de regulador, provedor de bens e serviços públicos, quanto na defesa da soberania nacional, do povo e do território brasileiro.

Habilidade

A título de ilustração do equilíbrio e da visão estratégica nesses cargos, trazemos dois pequenos registos de atuação de Toffoli. O primeiro foi quando estava na Casa Civil, em 2004, por ocasião da edição da medida provisória que deu status de ministro ao então presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Havia forte resistência à mudança que deu foro privilegiado a Meirelles [2], e Toffoli convenceu o governo a promover a mudança como forma de evitar uma crise especulativa no mercado e um pedido de demissão do presidente do BC depois ter sido alvo de denúncias sobre suposta sonegação de patrimônio. Habilidoso, Toffoli ajudou o governo a resolver muitos problemas.

O outro refere-se à Advocacia-Geral da União, quando promoveu transformações significativas no órgão, com destaque para a resolução consensual de conflitos, com fortalecimento da conciliação e a mediação, incluindo a criação da Câmara de Conciliação e Arbitragem; a redução do volume de processos judiciais, a partir da edição de súmulas pacificando a orientação da administração pública no contencioso; as parcerias com o Judiciário e outros órgãos; a edição dos pareceres sobre aquisição de terras por estrangeiros e sobre anistia aos servidores e empregados públicos, além de valorização das carreiras da AGU, tanto do ponto de vista remuneratório quanto de treinamento e capacitação, transformando-a em carreira de Estado, com forte atuação no consultivo e no contencioso.

Aprendizado e presidência

A experiência acumulada por Toffoli no mundo político, tanto na dimensão de militante social e estudantil, que pressupõe engajamento, quanto no convívio com detentores de mandatos no Legislativo e no Executivo, que requer capacidade de formulação e gestão, foi outro diferencial em sua trajetória. Esse aprendizado permitiu ao ministro manter-se atualizado por meio dos bons contatos que arregimentou nesse período em diversas áreas, desde políticos, militares, acadêmicos, jornalistas, empresários, lideranças dos movimentos sociais e sindicais, gestores governamentais e organismos internacionais. Isso fez diferença, por exemplo, em sua passagem pela Presidência do Tribunal Superior Eleitoral, quando presidiu as eleições gerais de 2014, e pela Presidência do Supremo Tribunal Federal, cujo legado também será resumido neste pequeno testemunho.

Quanto ao desempenho do gabinete na prestação jurisdicional, as estatísticas não deixam dúvida: alta produtividade, elevada qualidade dos votos e a grande aceitação/aprovação de suas relatorias e divergências. Portanto, a qualidade técnica ou fundamento de seus votos, a produtividade e o índice de aproveitamento — ou a capacidade de formar maioria em torno de suas manifestações nos autos – estão acima da média da corte, conforme atestam as estatísticas do gabinete, do tribunal e dos portais eletrônicos especializados no acompanhamento do STF.

Interações

Uma das críticas que fazem ao ministro é de que ele seria muito aberto ao contato político e que integrantes do Poder Judiciário, que não se submetem ao escrutínio do voto e cujos membros são vitalícios, não deveriam ter contatos no mundo político. Não pode ser partidário, mas acompanhar o que acontece nos outros Poderes e na sociedade é condição indispensável para bem exercer sua missão e tomar as melhores decisões à luz da Constituição e do contexto histórico. Se algum membro da Suprema Corte ficar insulado, mergulhado apenas nos processos, poderá perder o contato com o mundo real e ficar desconectado da realidade, desconsiderando em suas decisões as tendências de futuro (dever-ser) sinalizadas nos enunciados da própria Constituição.

Portanto, se o relacionamento ajuda a ampliar a perspectiva de um juiz da Suprema Corte como indivíduo, quando esse juiz é encarregado da responsabilidade de representação, isso faz toda a diferença. É que na função representativa de chefe do Poder, de presidente do CNJ, do TSE ou do STF, o juiz da Suprema Corte necessariamente terá que interagir com a sociedade, com o Poder Executivo e com o Parlamento.

E sem esse convívio, por exemplo, dificilmente o ministro Toffoli teria percebido e tomado as providências necessárias para impedir o desgaste do TSE nas eleições polarizadas de 2014, logo após as jornadas e manifestações populares iniciadas em junho de 2013, quando o candidato presidencial derrotado em segundo turno questionou o resultado da eleição. Sua pronta defesa da lisura do processo eleitoral evitou que o protesto do perdedor ganhasse dimensão maior, preservando a imagem do tribunal.

Spacca

No Brasil, a judicialização da política é enorme e compete aos tribunais superiores, especialmente ao Supremo, decidir sobre temas constitucionais complexos e polêmicos, que provocam reações nos outros Poderes e na sociedade. Além disso, há no país uma enorme polarização e fragmentação na sociedade, com a opinião pública sendo construída sem qualquer controle ou mediação, muitas vezes influenciada por algoritmos, levando à formação de maiorias efêmeras ou transitórias, cujas ações e reações podem colocar em risco a paz social, como o quebra-quebra havido em janeiro de 2023. Isso, por si só, já justificaria a necessidade de uma rede de relacionamento dos magistrados da Suprema Corte, sob pena de ficarem alheios ao que ocorre em sua volta.

Apogeu: pacto entre Poderes e combate aos excessos da ‘lava jato’

A sensibilidade política e o equilíbrio emocional são fundamentais, especialmente em decisões que mudam dramaticamente a conjuntura, como a vedação de contribuições eleitorais de pessoas jurídicas e a fidelidade partidária. A calibragem em pautar temas dessa magnitude requer senso de oportunidade e responsabilidade. Entretanto, o tribunal também precisa exercer seu papel contramajoritário, quando o momento o exigir, como ocorreu nos casos das pesquisas sobre células-tronco, aborto/anencefalia, relações homoafetivas, demarcação de terras indígenas, prisão após o trânsito em julgado, combate aos excessos persecutórios de instituições estatais, dentre outros. E decisões dessa magnitude, que o Supremo é chamado a tomar, requerem articulação e mediações, além de leitura acurada da conjuntura.

O apogeu da trajetória de Dias Toffoli se deu no período em que presidiu a Corte Suprema — mas não apenas nesse período — quando teve a clarividência de enxergar os riscos que corria a democracia brasileira e tomou as iniciativas fundamentais para manter a estabilidade institucional, ameaçada por uma onda antissistema, liderada pela extrema direita nacional e internacional, a partir de discurso de ódio e uso de fake news para desmoralizar o sistema político e justificar atitudes de força.

Dentre as iniciativas e medidas lideradas por Dias Toffoli, três delas adotadas durante sua presidência no STF foram cruciais para a continuidade da democracia no país: a ideia do pacto entre os Poderes [3], o combate aos excessos da “lava-jato” e a abertura do inquérito no STF sobre fake news.

A primeira delas, a costura de um pacto entre os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, dentro da lógica de harmonia e do respeito mútuo entre os Poderes da República, teve a função de evitar a implosão do sistema político, que teria acontecido diante do insulamento do então presidente da República em torno do núcleo autoritário que o cercava. Esse núcleo, em sua maioria, era adepto de medidas de força para constranger as instituições que supostamente dificultavam a implementação do projeto de poder do então presidente, na visão desse núcleo: o STF, o Congresso e os governos estaduais.

As conversas em torno do pacto [4], que envolveram os presidentes da República, do Supremo Tribunal Federal e das duas Casas do Congresso — Câmara dos Deputados e Senado — foram providenciais para ganhar tempo até a entrada dos partidos do Centrão para a base de sustentação do governo, fato político que passou a dificultar as ações isoladas de caráter autoritário por parte do entorno do presidente da República, já que teria que envolver a nova coalizão de apoio, naturalmente contrária a qualquer ato que significasse agressão ao Estado de Direito.

A segunda iniciativa, que envolveu vários julgamentos, estava associada ao combate aos excessos e desvirtuamentos da operação “lava-jato”, que eram praticados a partir de um conluio entre alguns juízes e procuradores do Ministério Público — por meio de lavagem de notícia e de delações forçadas — para produzir provas artificiais contra inimigos políticos. O uso político da operação, que criou as condições para a eleição do chefe do Poder Executivo e de seu grupo político em 2018, tinha por finalidade desqualificar pessoas e instituições públicas consideradas indesejadas por esses grupos, associando-as à prática de corrupção, independentemente de culpa ou não, viciando o processo judicial.

O combate aos excessos e desvirtuamentos da “lava jato” — embora tenha levado à anulação de decisões corretas, mas adotadas com bases em provas fraudadas — restaurou o devido processo legal, pondo fim a uma prática condenável ética e moralmente, que consistia em utilizar o aparato do Estado para interferir na disputa eleitoral, suspender direitos políticos e prender adversários políticos, como ocorreu com o então ex-presidente Lula [5], cujos processos foram posteriormente anulados por decisão do STF, com a plena reparação da injustiça praticada.

Liderança contra fake news e milícias digitais

A terceira medida, outra iniciativa providencial do ministro Dias Toffoli, foi a instauração do inquérito das fake news, destinado a resguardar a instituição Supremo Tribunal Federal, mediante a investigação de ameaças e ofensas a membros da corte e seus familiares. Inicialmente o procedimento foi muito contestado, por supostamente ser uma atribuição exclusiva do Ministério Público e por ele haver designado, sem sorteio, o ministro Alexandre de Moraes para conduzi-lo. Posteriormente houve ratificação de sua legalidade e legitimidade pelo colegiado do STF, bem como o reconhecimento e o apoio do próprio Ministério Público.

Registre-se que as apurações no âmbito do inquérito revelaram não apenas intimidação ao STF, seus membros e familiares, como também a agressão ao sistema democrático e suas instituições, a partir de milícias digitais que espalhavam fake news e ódio sobre instituições, autoridades e a ciência, constituindo-se em verdadeira ameaça ao Estado Democrático de Direito. Constatou-se, ainda, que a baderna de 12 de dezembro de 2022 e a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 — com a destruição dos palácios do Planalto, do Congresso e do Supremo — organizadas a partir de um “acampamento” em frente ao quartel-general do Exército, foram alimentadas por um sistema de fake news e financiadas por apoiadores do então presidente para impedir a eleição, a posse e o exercício do mandato do presidente Lula. Essas informações do inquérito estão sendo fundamentais para a identificação, o julgamento e a prisão dos financiadores, dos responsáveis e executores das ações de ataque ao patrimônio público.

Olhar de estadista

A outra iniciativa, um gesto de cidadania consciente e independente do STF, foi o conselho dado ao então presidente [6] para que não permanecesse em Brasília durante a posse do presidente eleito, diante da decisão dele de não fazer a transmissão da faixa presidencial. A presença dele poderia incitar seus aliados a cometerem atos de violência ou selvageria. Esse conselho mostrou-se extremamente prudente, pois, mesmo o então presidente fora do país, oito dias após a posse, houve uma tentativa de golpe. Felizmente, o novo governo já estava empossado — com o apoio das instituições, inclusive do Supremo — conseguiu debelar a tentativa de golpe sem qualquer vítima fatal.

Em regimes democráticos, mesmo que os magistrados ajam com calibragem e prudência na resolução da contenda, sempre existirá críticas e incompreensões, por isso os juízes nunca devem julgar influenciados por protestos ou pressão, seja de que natureza for. Devem analisar os processos à luz da justiça, do Direito e da Constituição.

Assim, embora não tenha procuração para defender o legado do ministro Dias Toffoli, fiz questão de prestar esse testemunho como um registro histórico, de um lado para reduzir a assimetria de informações sobre os fatos desse período, e, de outro, para fazer justiça a esse brasileiro que, com visão de estadista, contribuiu enormemente e continua contribuindo para evitar retrocessos democráticos e civilizatórios no país.

Por tudo isso, acredito e testemunho que o cidadão José Antônio Dias Toffoli, ao longo de seus 56 anos de idade e 15 anos no STF, já deu uma grande contribuição para a consolidação da democracia brasileira. No entanto, registro que foi durante sua presidência no Supremo que ele deixou seu maior legado político e histórico: uniu a corte, acelerou os julgamentos, evitou um golpe de Estado e criou as condições para reparar as injustiças, ilegalidades e excessos da operação “lava jato”, incluindo a libertação e a recuperação dos direitos políticos de Lula. Sua contribuição para a jurisdição constitucional e para a democracia brasileira nesses 15 anos no Supremo, portanto, parece inquestionável.

 


[1] Atual Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República

[2] Ver reportagem “Da fazenda de café para o coração da República https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45470409

[3] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/28/politica/1559000662_221947.html

[4] https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/o-papel-de-toffoli-maia-e-alcolumbre-na-preservacao-da-democracia/

[5] Em decisão posterior, o ministro considerou a prisão do então ex-presidente Lula em 2018 “um dos maiores erros judiciários da história do país”.

[6] https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/as-crises-de-choro-de-bolsonaro-no-jantar-com-toffoli-e-fabio-faria

 

Autores

  • é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV, sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, ex-diretor de Documentação do Diap, membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República – o Conselhão.

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