Direto do Carf

Falácia do espantalho e responsabilidade do grupo econômico: Súmula Carf 210

Autor

  • Ludmila Mara Monteiro de Oliveira

    é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

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23 de outubro de 2024, 8h00

O mês passado trouxe muitas novidades ao Carf: 1) publicada a Portaria Carf/MF nº 1.500, de 20 de setembro, “estabelece[ndo] medidas mais benéficas para as conselheiras representantes dos contribuintes durante períodos de gestação, amamentação, adoção e guarda judicial” (aqui); 2) lançado o livro “Estudos Tributários e Aduaneiros do IX Seminário Carf” (e-book aqui); 3) sucedidos intensos e profícuos debates na décima edição de sua anual conferência (aqui); e, 4) aprovadas 16 novas súmulas (aqui). Como nem tudo são flores, críticas foram proferidas contra verbetes que colidiram com os anseios do empresariado.

Quórum para a aprovação das súmulas

Houve quem se viu surpreso com o fato de súmulas desfavoráveis às empresas terem sido aprovadas por conselheiros representantes dos contribuintes. Por depender da concordância de “no mínimo, três quintos da totalidade dos conselheiros do respectivo colegiado, com participação obrigatória do Presidente e d[a] Vice- Presidente do Carf” [1] é óbvio que, sendo o órgão paritário, súmulas somente serão aprovadas com votos tanto de representantes da Fazenda Nacional quanto dos representantes dos contribuintes.

Incumbe a cada uma das turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) “aprovar enunciado de súmula que trate de matéria concernente à sua competência”. Sendo cada colegiado composto por um total de dez conselheiros e conselheiras – cinco advindos dos quadros da Receita Federal do Brasil (RFB) e outros cinco indicados por confederações patronais e centrais sindicais –, necessário o voto favorável de, no mínimo, sete para que o verbete seja aprovado e se torne de observância obrigatória, sob pena de perda de mandato no Carf [2].

Imparcialidade no exercício atípico da função judicante

Há de ser pontuado ainda que a perplexidade com o apoio dos representantes dos contribuintes para a aprovação de súmulas contrárias ao interesse de corporações reacende um alerta [3].

Embora até mesmo o Ricarf tenha eleito as expressões “representantes dos contribuintes” e “representantes da Fazenda Nacional” certo exercerem os conselheiros e conselheiras atípica função judicante. Ao ingressarem no Carf agem como julgadores, e não como mandatários ou procuradores, como sugere o termo representante inadvertidamente utilizado.

Obviamente, não se nega que o detentor do assento junto ao Carf – a RFB, as centrais sindicais e as confederações patronais – buscarão indicar aqueles que reúnam as condições técnicas necessárias para preencher os requisitos de ingresso no órgão, além de, por suas respectivas formações técnicas e acadêmicas, melhor encamparem os interesses da categoria. Isso, contudo, não significa estarem os “conselheiros fazendários” compelidos a sempre manterem a autuação fiscal enquanto, noutra banda, obrigados os “conselheiros dos contribuintes” a todo custo afastá-la ou deixar de aprovar súmula que pretende, no âmbito do contencioso administrativo, pacificar controvérsias e uniformizar posições para todos os administrados.

Noutra oportunidade (aqui), muitíssimo bem acompanhada da também conselheira Sonia Accioly, pontuamos que

“[p]or estar a imparcialidade umbilicalmente atrelada à atuação independente dos julgadores, sem se olvidar das limitações impostas pela própria natureza do contencioso administrativo fiscal, é preciso aprimorar o delineamento da atual estrutura, voltados ao fortalecimento de garantias concedidas às conselheiras e aos conselheiros integrantes do CARF.”

A beleza maior do julgamento administrativo de composição paritária – com a distribuição de assentos entre diversas perspectivas, dentre as quais destacamos a do trabalhador, a da indústria, a do agronegócio, a da fiscalização, etc. – repousa na existência de uma série de vieses que, justamente por não serem acriticamente aceito por todos, fomentam a deliberação, aprimorando a prestação jurisdicional exercida de forma atípica [4]. Atuação de modo técnico e imparcial, sem negligenciar dos limites do contencioso administrativo fiscal, é o que se espera dos conselheiros e conselheiras do Carf.

As críticas à Súmula Carf nº 210

Feitos esses importantes registros, analisemos o verbete sumular que, no âmbito da 2ª Seção, recebeu da iniciativa privada as mais pesadas oposições: a Súmula Carf nº 210, que exibe a seguinte redação:

“As empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem solidariamente pelo cumprimento das obrigações previstas na legislação previdenciária, nos termos do art. 30, inciso IX, da Lei nº 8.212/1991, c/c o art. 124, inciso II, do CTN, sem necessidade de o fisco demonstrar o interesse comum a que alude o art. 124, inciso I, do CTN.

Os argumentos declinados, se compilados, perpassam três aspectos principais:

O primeiro diz respeito à suposta afronta à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “no sentido de que o fato de haver pessoas jurídicas que pertençam ao mesmo grupo econômico, por si só, não enseja a responsabilidade solidária, na forma prevista no art. 124 do CTN” [5].

O segundo está ligado à indigitada inobservância do Tema de nº 13 do Supremo Tribunal Federal, no qual firmada a tese de que “é inconstitucional o artigo 13 da Lei nº 8.620/1993, na parte em que estabelece que os sócios de empresas por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, por débitos junto à Seguridade Social”.

Spacca

O terceiro aborda um aparente silêncio de dois dos paradigmas que deram ensejo à súmula quanto à malfadada responsabilidade objetiva do grupo econômico.

A falácia do espantalho

Dentre as inúmeras falácias lógicas existentes a do espantalho é, quiçá, uma das mais conhecidas e utilizadas (consciente ou inconscientemente). Ela ocorre quando “a posição ou o argumento de uma pessoa é substituído por uma versão distorcida, exagerada ou deturpada” [6]. Luta-se, no final das contas, com o espantalho criado, e não com aquilo que é real.

Antes de iniciada a votação do verbete sumular de nº 210 o conselheiro Maurício Righetti pediu a palavra para apresentar os motivos pelos quais favorável à aprovação do enunciado. Na oportunidade (aqui) [7], ressaltado que

“[a] inscrição é no sentido de encaminhar pela aprovação do enunciado, mas antes de abordar a sua aplicação queria deixar claro ao que ela não se aplica.

Este enunciado não se presta a definir quais os requisitos deve estar presentes no caso concreto para que esteja, ou não, configurado o Grupo Econômico de qualquer natureza, de fato ou de direito, permanecendo, assim sendo, sob a análise dos Colegiados Ordinários a comprovação de sua existência. Entretanto, uma vez que o Colegiado Ordinário entenda pela configuração do grupo econômico, haverá o necessário reconhecimento da vigência do art. 30, inciso IX, da Lei nº 8.212, que combinado com o art. 124, II, do CTN, impõe a responsabilidade solidária das empresas que compõem dito grupo pelas obrigações decorrentes daquele diploma legal (Lei nº 8.212).”

Embora todas as críticas formuladas visem atacar uma suposta responsabilidade objetiva de todo e qualquer grupo econômico, aclarado que a aferição está condicionada ao caso concreto. E mais do que isso: no exercício do controle de legalidade perpetrado no âmbito administrativo não é facultado ao conselheiro ou à conselheira afastar a aplicação da lei, cuja validade não tenha sido extirpada pelo Poder Judiciário. Calha transcrever o que dispõe os dois dispositivos referenciados na Súmula Carf nº 210:

CTN

Art. 124. São solidàriamente obrigadas:

(…)

II – as pessoas expressamente designadas por lei.

Lei nº 8.212/1991

Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas:

(…)

IX – as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações decorrentes desta Lei.”

Para demonstrar a colisão da súmula com a jurisprudência dos tribunais superiores os opositores da edição do verbete sumular trouxeram à baila a Instrução Normativa RFB nº 971, de 13 de novembro de 2009, que assim dispunha:

“Art. 152. São responsáveis solidários pelo cumprimento da obrigação previdenciária principal:

I – as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza, entre si,

(...)

Art. 494. Caracteriza-se grupo econômico quando 2 (duas) ou mais empresas estiverem sob a direção, o controle ou a administração de uma delas, compondo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica.

Art. 495. Quando do lançamento de crédito previdenciário de responsabilidade de empresa integrante de grupo econômico, as demais empresas do grupo, responsáveis solidárias entre si pelo cumprimento das obrigações previdenciárias na forma do inciso IX do art. 30 da Lei nº 8.212, de 1991, serão cientificadas da ocorrência.”

Entretanto, com as modificações introduzidas pela Lei nº 13.467/2017 (reforma trabalhista), veio a ser a Instrução Normativa RFB nº 971/2009 revogada, estando atualmente em vigor a Instrução Normativa RFB nº 2.110, de 17 de outubro de 2022, que assim determina:

“Art. 136. São responsáveis solidários pelo cumprimento da obrigação previdenciária principal:

I – as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza, entre si;

(…)

Art. 275. No momento do lançamento de crédito previdenciário de responsabilidade de empresa integrante de grupo econômico, as demais empresas do grupo, responsáveis solidárias entre si pelo cumprimento das obrigações previdenciárias na forma do inciso I do caput do art. 136 serão cientificadas da ocorrência. (Lei nº 8.212, de 1991, art. 30, caput, inciso IX; e Regulamento da Previdência Social, de 1999, art. 222)

§1º. Caracteriza-se grupo econômico quando uma ou mais empresas estiverem sob a direção, o controle ou a administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica. (CLT, art. 2º, § 2º)

§2º. Não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes. (CLT, art. 2º, § 3º)”

Todo o alvoroço, com a devida vênia, não se sustenta.

A uma, porque a súmula não se presta a definir grupo econômico. Para a aplicação do verbete imprescindível que a caracterização do grupo econômico tenha sido previamente ultimada.

A duas, pois, no exercício do controle de legalidade, o enunciado apenas replica o disposto no inciso IX da Lei nº 8.212/91, que atribui responsabilidade ao grupo econômico – quando a situação fática já tiver apontado a comprovação de sua existência, repise-se.

A três, porque a própria Instrução Normativa RFB nº 2.110/2022 espanca quaisquer dúvidas acerca da impossibilidade de a mera identidade de sócios fazer caracterizar o grupo econômico, afastando o receio de afronta – reflexa, frise-se – da tese firmada no Tema de nº 13 do STF. É dizer: em momento algum sustenta a súmula que a “mera identidade de sócios” seria apta para a caracterização do grupo econômico, com a consequente imputação de responsabilidade solidária.

A quatro, porque novamente a Instrução Normativa RFB nº 2.110/2022 deixa clara a premência de que, para fins de caracterização do grupo econômico, haja a demonstração do interesse integrado, da efetiva comunhão de interesses e da atuação conjunta das empresas dele integrante, na esteira da jurisprudência dos tribunais superiores.

A aventada inaptidão dos precedentes (Acórdãos 9202-007.682, 9202-010.131 e 9202-010.178), que escoraram a edição da Súmula Carf nº 210 também não merece prosperar. Isso porque, a tese sumarizada no verbete sumular sob escrutínio está em consonância com a legislação previdenciária de regência e ainda com a jurisprudência dos tribunais pátrios. Ainda que alguns entendam pairar dúvidas quanto ao acerto da caracterização do grupo econômico, tal fato é alheio ao objeto da súmula. Assentada a existência do conglomerado, por aplicação da norma cogente insculpida no inciso IX do artigo 30 da Lei nº 8.212/91 c/c inciso II do artigo 124 do CTN, há de ser reconhecida a responsabilidade solidária.

O que temos – e o que queremos

Inegável serem as súmulas importante ferramenta para que a tão-sonhada segurança jurídica, previsibilidade e celeridade sejam alcançadas. Para tanto, imprescindível a consideração do não só do contexto de promulgação da súmula, mas como ainda das decisões que motivaram a sua criação. Tudo isso, claro, sem que que as conselheiras e os conselheiros se olvidem dos limites da atuação em âmbito administrativo. O verbete sumular de nº 210 do Carf nada mais faz do que aclarar a responsabilidade solidária do grupo econômico prevista na legislação previdenciária. Nada mais. Nada menos. Já a (não) caracterização do conglomerado há de ser apreciada a partir dos elementos do caso concreto. É sobre este ponto que deverão se debruçar os imparciais julgadores que integram o Carf [8].

 


[1] Ex vi do §2º do art. 124 do Regimento Interno do Carf (Ricarf).

[2] Art. 85 do Ricarf. Perderá o mandato o conselheiro que: (…) VI – deixar de observar enunciado de súmula do Carf ou de resolução do Pleno da Câmara Superior de Recursos Fiscais, bem como o disposto nos art. 98 a 100.

[3] Segundo a OCDE, “[a] natureza de curto prazo dessas nomeações, a remuneração comparativamente baixa e o fato de que, tanto antes quanto depois dessa nomeação, esses juízes podem trabalhar para o setor privado e podem obter benefícios diretos ou indiretos devido às posições que assumem em seu papel de juiz no CARF poderiam, em alguns casos, criar também um potencial risco de conflito de interesses, o que pode ser muito difícil de mitigar.” A carta enviada ao Min. da Fazenda pela Diretora da OCDE, Grace Perez-Navarro pode ser lida na versão original, em inglês, ou na versão traduzida para o português. Disponível em: <https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/abril/carta-enviada-pela-ocde-ao-ministro-da-fazenda-aponta-oportunidade-de-melhoria-nas-regras-do-carf>.

[4] É dentro desta perspectiva que pretende a ex-conselheira Junia Roberta Gouveia Sampaio desenvolver a pesquisa “A representação paritária nos tribunais encarregados dos julgamentos dos processos administrativos fiscais.”

[5] STJ. EREsp nº 834.044/RS, julgado em 08/09/2010. Em igual sentido: AgInt no REsp nº 1860479/PR, julgado em 28/09/2020; AgRg no AREsp nº 89.618/PE, rel. Ministro Gurgel de Faria, julgado em 23/06/2016; AgInt no REsp nº 1.911.919/SP, julgado em 09/11/2022.

[6] “ Substituting a person’s actual position or argument with a distorted, exaggerated, or misrepresented version of the position of the argument.” BENNETT, Bo. Logically Fallacious: The Ultimate Collection of Over 300 Logical Fallacies. Sudbury: eBookIt, 2012 [e-book].

[7] A fala transcrita pode ser ouvida a partir de 46:36.

[8] A colunista agradece aos caríssimos Sheila Aires Cartaxo Gomes e Leonam Rocha de Medeiros pelas pertinentes observações que muito agregaram à versão final deste texto.

Autores

  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período de investigação na McGill University; pós-doutora e mestra pela UFMG; vice-presidente da 2ª Seção do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); conselheira da 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf); professora.

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