Território Aduaneiro

Anteprojeto da Lei Geral de Comex: comentários (parte 1)

Autor

  • é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados mestre em Direito pela UFMG pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa professor de Direito Aduaneiro e Tributário Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG multiplicador do Programa OEA da Receita Federal membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

    Ver todos os posts

22 de outubro de 2024, 8h00

Tramita no Senado Federal, desde 29/2/2024, o Projeto de Lei no 508. O texto proposto originalmente provocou reações negativas diante da sua pretensão de consolidar a legislação federal vigente sobre o comércio exterior. Consolidar a legislação, nos termos do artigo 14, §1º, da LC 95/98, seria promover a “integração de todas as leis pertinentes a determinada matéria num único diploma legal (…) sem modificação do alcance nem interrupção da força normativa dos dispositivos consolidados”. A ideia de consolidar a legislação vigente causou repúdio da comunidade aduaneira porque a necessidade latente era, como é, de sua modernização [1].

A proposta de consolidação de 29/2/2024, de autoria do senador Renan Calheiros, teve grande mérito no ponto em que trouxe o assunto para a pauta e mobilizou a Receita Federal e a Secretaria de Comércio Exterior em torno do tema, assim como, em igual medida, especialistas do setor privado, por suas associações e entidades de classe, entre outras, a Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, a Associação das Empresas Usuárias de Recof (A.E.R.), OEA e a Confederação Nacional das Indústrias (CNI).

De lá até a presente data, o projeto seguiu, em 9/4/24, para a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE), ficando sob a relatoria do senador Espiridião Amim [2]. Nesse ínterim, especialistas da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) e da Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (SE-Camex), ambas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), e da Consultoria Legislativa do Senado Federal, junto à CRE e aos gabinetes dos senadores Renan Calheiros e Espiridião Amin trabalharam em um anteprojeto de lei geral sobre o comércio exterior de mercadorias. Esse foi concluído e enviado para entidades de classe, em 10/9/24, abrindo-se prazo, muito necessário e esperado, ainda que exíguo, para que pudessem oferecer suas contribuições visando aprimoramento do texto. Várias sugestões foram enviadas por diversas entidades e estão sendo analisadas pelos autores do anteprojeto.

Ele possui 168 artigos distribuídos em três livros com a seguinte estrutura:

LIVRO TÍTULO ARTIGOS
 

 

I – Das Disposições Gerais

 

 

I – Do Objeto, das Definições e das Diretrizes 1º ao 4º
II – Do Território Aduaneiro 5º e 6º
III – Das Áreas Alfandegadas 7º e 8º
IV – Dos Sujeitos do Comex 9º ao 24
V – Da Facilitação Comercial 25 ao 35
 

II – Do Controle Aduaneiro e da Fiscalização do Comércio Exterior

I – Da Gestão de Riscos 36 e 37
II – Do Controle Aduaneiro 38 a 71
III – Da Fiscalização Aduaneira 72 a 77
IV – Do Controle Administrativo 78 a 89
III – Dos Regimes Aduaneiros I – Das Disposições Gerais 90
II – Do Regime Aduaneiro Comum 91
III – Dos Regimes Aduaneiros Especiais 92 ao 149
IV – Dos Regimes Aduaneiros Aplicados em Áreas Especiais 150 a 162
Livro Complementar 163 a 168

Prós e contras do anteprojeto

Alguns méritos, desde já, merecem ser destacados

  • mobilização e participação de entidades representantes das empresas em torno do tema, nessa fase de proposição legislativa;
  • reunião de normas aduaneiras em um único diploma;
  • texto com disposições eminentemente aduaneiras, relacionadas ao controle do fluxo de importação e exportação de mercadorias;
  • sintonia, de grande parte das propostas normativas, com as normas previstas na CQR/OMA e no AFC/OMC;
  • objetivo presente em diversos dispositivos de promover um controle aduaneiro inteligente e eficiente, com atenção aos custos decorrentes da demora e da imprevisibilidade;

Alguns pontos, em uma análise inicial, merecem reflexões e críticas:

  • dificuldade para discussão e participação no processo de construção do texto e, quando aberto o prazo, bastante limitado;
  • ausência de título específico dedicado às infrações e penalidades aduaneiras;
  • ausência de disposições sobre o imposto de importação e de exportação, ainda que não fossem abordados os demais tributos, tendo em conta a tramitação da reforma tributária sobre o consumo;
  • perda de oportunidade de avançar em temas que são muito discutidos, como a liberação de mercadorias em casos de exigências no curso do despacho e que sejam impugnadas, maior celeridade para concessão de LPCO e de Soluções Antecipadas, entre outros.

Alinhamento com as práticas internacionais

Indiscutivelmente, de um início muito preocupante, quanto ao texto proposto para a consolidação da legislação aduaneira, a proposta de Anteprojeto de Lei Geral do Comércio Exterior (LGComex), com seus 168 artigos, apresenta grandes avanços [3]. Não é o tão desejado Código Aduaneiro, que os países vizinhos e membros do Mercosul já possuem, mas, se aprovado, terá muitos méritos.

Spacca

Coroará, com muitas de suas disposições, as transformações pelas quais vem passando a aduana brasileira na última década, inclusive, destacadamente, na sua relação com as empresas. Em novembro de 2011, em São Paulo, foi realizado evento promovido pela OMA, RFB e Associação dos Agentes, Despachantes e Corretores Aduaneiros da América Latina (Asapra), visando divulgar a Convenção de Quioto Revisada para a aduana brasileira e dos demais países da América do Sul [4]. Esse tratado internacional, hoje amplamente discutido e que se vê nitidamente presente em várias das disposições da LGComex, naquela época, não existia entre nós, tampouco na legislação aduaneira dos países da América do Sul. A divulgação da norma visava exatamente a sua internalização pelos países ali representados, promovendo harmonização e simplificação dos regimes aduaneiros e a adoção do uso massivo da tecnologia da informação, do gerenciamento de riscos aduaneiros, do controle prévio e a posteriori, do programa OEA e do duplo grau de jurisdição em matéria aduaneira.

O evento realizado com a participação de experts da OMA, do setor privado e da academia abordando apenas a CQR não tinha um fim em si mesmo. É que a adoção de padrões globais de controle aduaneiro, presentes no chamado Código Aduaneiro Mundial, permitiria maior harmonização das normas aduaneiras, estabelecendo-se um ambiente mais favorável para atração de investimentos de empresas multinacionais e a redução de tempos e custos para as operações já realizadas. Isso em razão e na medida em que as aduanas de tais países teriam um selo de qualidade — blue label aduaneiro — em termos de suas práticas, permitindo às empresas visualizaram maior previsibilidade, segurança jurídica, agilidade e a adoção de padrões aduaneiros internacionais nas operações que promovessem.

Posteriormente, no âmbito da OMC, desenvolveu-se e aprovou-se o AFC, que, em grande medida, refletiu as normas e determinações aduaneiras da CQR/OMA. O Brasil, em 2020, pelo Decreto no 10.276, e em 2018, pelo Decreto no 9.326, incorporou ambos os tratados. Mais do que isso, antes mesmo da internalização dos tratados, marcou a quebra do paradigma da desconfiança e do afastamento do setor privado, com o lançamento do programa OEA, através da IN RFB no 1521/2014. Inaugurou-se aí um novo período de relação da aduana com as empresas, em que passaram a estar presentes programas que reconhecem a boa-fé e estimulam a conformidade.

Não obstante, reconhecer e partir da premissa da boa-fé devesse ser a regra nas relações aduana-empresas, até então, nenhuma norma aduaneira indicava tal direcionamento, sendo certo que na prática, naqueles tempos, as relações, em sua maioria, pautavam-se por certa desconfiança de ambas as partes. As normas vigentes e preponderantes, em sua grande maioria, sustentadas no Decreto-Lei no 37/66 [5], traduziam o direito aduaneiro do inimigo, de viés repressor, sendo estranho, e até causando desconforto, falar-se em facilitação comercial [6] Com a quebra desse paradigma, notadamente marcada pelo lançamento do programa OEA, inaugura-se uma nova etapa, de onde derivam, anos depois, o Programa Nacional da Malha Aduaneira (PNMA) [7], o Remessa-Conforme [8], os Programas Confia e Sintonia[9], e, mais recentemente, o Receita Soluciona e o Receita Consenso [10].

Nesse contexto, o anteprojeto de LGComex reúne disposições que reforçam os princípios e objetivos desses dois tratados – a CQR e o AFC – que procuram responder à desafiadora e ínsita equação do comércio transfronteiriço, qual seja: controle aduaneiro versus facilitação comercial. Tal complexidade foi sendo expressivamente afetada e exacerbada por eventos globais como os atentados terroristas, a epidemia da Covid-19 e preocupações concernentes a temas como meio ambiente, saúde, tráfico de pessoas, armas, drogas, falsificações, lavagem de dinheiro, aumento do comércio eletrônico e o subfaturamento. A tudo isso, as respostas globais têm sido a informatização massiva das aduanas, a gestão dos riscos aduaneiros, inclusive com uso de inteligência artificial, inspeções não invasivas, a implementação dos programas de janela única e de operadores econômicos autorizados, com seus acordos de reconhecimento mútuo, a adoção de medidas que permitam acesso prévio às informações das operações, visando ampliar o controle aduaneiro antecipado, o aumento das auditorias pós liberação, objetivando-se com essa gama de medidas reduzir os tempos médios de despacho, pretendendo-se assegurar agilidade na transposição das fronteiras, redução de seus custos,  e maior previsibilidade, sempre resguardando o controle aduaneiro.

Atentos aos textos da CQR, do AFC, e ao SAFE Framework of Standards to Secure and Facilitate Global Trade (SAFE Framework) da OMA, impõe-se reconhecer que o Anteprojeto de Lei Geral do Comércio Exterior alinha-se, na maior parte de suas disposições, com as práticas internacionais recomendadas. A sua normatização consolida compromisso da Aduana e dos Órgãos Intervenientes com maior celeridade e previsibilidade nos despachos aduaneiros de importação e exportação. Várias das normas propostas atestam esse objetivo e buscam por práticas que reduzam a burocracia, a ineficiência, tudo isso com foco nas demandas das pessoas intervenientes [11], especialmente, do importador e exportador [12]. Nesse sentido, são os seguintes dispositivos do anteprojeto: artigo 4o, V, VI, VII; artigo 24, I, II e III; artigos 25 e 26; artigo 28, §2º, II; artigo 31, caput, e §1º, artigo 33, §4º e artigo 35.

A proposta normativa merece destaque também pelo fato do conteúdo do seu texto ser genuinamente aduaneiro, na medida em que pouco, ou quase nada, trata de temas que não estejam diretamente relacionados ao controle e à facilitação do fluxo de entrada e saída de mercadorias, estabelecendo conceitos, princípios, diretrizes e objetivos (exemplo nos artigos 2º e 4º). Outro grande avanço trazido no anteprojeto é a legalização da autorregulação (artigo 74 e 75), nos termos da disposição expressa de que “a comunicação de inconsistências à pessoa interveniente por meio da malha aduaneira não configura início de procedimento fiscal aduaneiro” (artigo 75, §1º). Uma outra novidade, que se espera possa estar em sintonia com a possibilidade de autorregularização, é a “auditoria de conformidade aduaneira”, definida como “procedimento realizado em razão de seleção não relacionada a indícios de irregularidade previamente identificados, e orientado ao exame de sistemas, contratos, registros contábeis e financeiros, estoques físicos, entre outros elementos, que tem por objetivo mensurar e incrementar o nível de conformidade da pessoa interveniente fiscalizada” (artigo 76, IV).

O texto, infelizmente, não trouxe disposições sobre os tributos, processo administrativo aduaneiro e infrações e penalidades. Seria o ótimo se o fizesse, na medida em que estaríamos discutindo a publicação do acalentado projeto de Código Aduaneiro Brasileiro. É sabido que há razões para as ausências. Um delas é a própria complexidade de um processo legislativo com múltiplos interesses e atores envolvidos. Embora isso seja inteligível, não quer dizer que deva e seja aceito sem desconforto pelos intervenientes.

Especialmente no que tange às infrações e penalidades, dada a premência de sua modernização, se as pessoas intervenientes fossem amplamente questionadas, certamente, à unanimidade, as manifestações seriam de que gostariam de ver nosso sistema infracional aduaneiro sendo revisado e atualizado através da LGComex. Não obstante, é importante registrar que as vozes de vanguarda, conseguiram, por certo enfrentando resistências as mais variadas, inserir o inciso XIV, no artigo 4º: “previsão de sanções proporcionais às infrações cometidas, e tratamento ao erro escusável, a ser definido em legislação específica”. Não é o quanto necessário, ainda, mas é um avanço. De toda forma, espera-se que a semente cresça e dê os necessários frutos nesse tema em específico, como de resto, em todos aqueles que visem tornar o comércio exterior brasileiro menos burocrático e oneroso para aqueles que o promovem e realizam. Quem tem a ganhar, no final, é a sociedade brasileira.

 


[1] Sobre o tema vale a leitura do artigo de Leonardo Branco (link), e de Fernanda Kotzias, em coautoria com Renata Sucupira (link), publicados na coluna, respectivamente, em 19/3/24 e 02/04/24.

[2] Disponível em: link. Acesso em 18/10/24.

[3] Nesse sentido, os artigos publicados na coluna por Rosaldo Trevisan (link ), em 17/9/24, e escrito por Leonardo Branco e Thális Andrade (link), publicado na semana passada, ambos sob o título: “Lei Geral de Comércio Exterior: um alinhamento importante”.

[4] Disponível em: link. Acesso em 19/10/2024.

[5] Sobre o contexto de produção do Decreto-Lei no 37/66, recomenda-se o artigo: “Reforma Aduaneira no Brasil: Necessidade de Harmonização das Normas de Direito Aduaneiro Sancionador”, de autoria de Diogo Bianchi Fazolo e Maurício Dalri Timm do Valle. Disponível em: link. Acesso em 19/10/24.

[6] COELHO, Flávio José Passos. Facilitação Comercial: Desafio para uma Aduana Moderna. São Paulo: Aduaneiras, 2008.

[7] Portaria Coana no 76/2020. Disponível em link. Acesso em 19/10/24.

[8] Disponível em link . Acesso em 19/10/24.

[9] O Programa Confia da RFB visa promover a conformidade cooperativa fiscal em relação aos tributos internos (link). O Programa Confia, assim como o Sintonia e o OEA constam do Projeto de Lei no 15/2024 enviado pelo Governo Federal à Câmara dos Deputados. Disponível em: link .

[10] Disponível em: link. Acesso em 19/10/24.

[11] Nomenclatura proposta pelo art. 14 do anteprojeto, dos Sujeitos do Comércio Exterior, tem-se as pessoas intervenientes, como sendo “aquelas que tenham relação, direta ou indireta, com a operação de comércio exterior”.

[12] Com definição nos arts. 15 e 16 do anteprojeto.

Autores

  • é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário, Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!