Opinião

A fantasia do sistema penal e o pacote antifeminicídio

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22 de outubro de 2024, 6h04

Entrou em vigor no dia 9 de outubro a Lei 14.994/24, intitulada “pacote antifeminicídio”, que altera o Código Penal, a Lei das Contravenções Penais, a Lei da Execução Penal, a Lei dos Crimes Hediondos, a Lei Maria da Penha e o Código de Processo Penal. Dentre as inúmeras alterações chama atenção a que, além de considerar o crime de feminicídio como autônomo e hediondo, eleva a pena mínima de 12 para 20 anos e a máxima de 30 para 40 anos, podendo chegar até 60 anos dependendo do caso, pena essa de um nítido eufemismo da inconstitucional prisão perpétua.

Uma vez mais se repete a fracassada fórmula populista, simplista e ilusória de aumento de penas para contenção da criminalidade.

Não é demais lembrar que, em 1990, sob clima de grande comoção social, entrava em vigor a famigerada Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), que elevou consideravelmente a pena dos crimes classificados como hediondos, impondo, também, maior rigor na execução das mesmas. Apesar de toda rigidez, os dados demonstram que em nada, absolutamente em nada, houve a pretensa redução da criminalidade.

Passado mais de três décadas da vigência da Lei dos Crimes Hediondos, outras tantas entraram em vigor, além de inúmeros projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, vendendo a ilusão de que o recrudescimento penal gera maior segurança coletiva e redução da criminalidade.

Somente na legislatura 2019-2022, informa Maria Azevedo Couto Vidal [1], o Código Penal passou por 11 alterações sob a influência do populismo penal legislativo.

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A publicidade do sistema penal, como bem destaca Maria Lúcia Karam, trabalha com a falsa ideia — explorando o medo e criando um clima de pânico — de que através de mais repressão, de maior ação policial e de leis penais mais rígidas com elevação das penas, a violência e a criminalidade seriam contidas. [2]

Sensacionalismo e populismo

Ao recorrerem aos discursos sensacionalistas que, certamente, atendem ao clamor popular, os políticos buscam medidas populistas e soluções aparentemente fáceis para o complexo problema da violência e da criminalidade. Medidas de caráter penal e processual penal que recrudescem o punitivismo penal, tais como: criação de novos tipos penais; aumento das penas de prisão; redução da imputabilidade (maioridade) penal; criminalização do uso e do porte de drogas; redução dos direitos do preso; mitigação de direitos e garantias do acusado; prisão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória; aumento das possibilidades de decretação da prisão preventiva entre outras.

Para Mauricio Martinez:

O novo caramelo que se oferece nas campanhas eleitorais é um veneno que pode matar, mas que é aceito por uma população presa do pânico porque é apresentado como um remédio para aniquilar monstros de um zoológico (…) e, por isso o populismo punitivo se caracteriza pelo oferecimento de penas altas e pela mudança da utopia ressocializadora pela inocuização da maldade através de penas degradantes…. [3]

No que diz respeito a violência contra a mulher – ao invés da fantasiosa solução penal – é imprescindível que seja definitivamente superada os resquícios da ideologia patriarcal que insiste em persistir no trabalho (com desigualdades salariais e de oportunidades) e no campo da participação política, entre outros.

A Lei 11340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, de acordo com Maria Lúcia Karam:

Pretendeu criar mecanismos para coibir essa violência doméstica e familiar contra mulheres, a fim de garantir seus específicos direitos fundamentais, assegurados em diplomas internacionais e na Constituição Federal brasileira.  No entanto, a orientação central de tal lei, com decisivo apoio e, mais do que isso, pressão de ativistas e movimentos feministas, inclinou-se para uma opção criminalizadora, privilegiando a sempre enganosa, danosa e dolorosa intervenção do sistema penal como suposto instrumento de realização daqueles direitos fundamentais, como suposto instrumento de proteção das mulheres contra a discriminação e a opressão resultantes de relações de dominação expressadas na desigualdade de gêneros. [4]

É indubitável que a violência de gênero, notadamente contra a mulher, é uma abominável realidade que precisa ser enfrentada — somente no primeiro semestre de 2024, o Brasil registrou 905 feminicídios consumados e 1.102 tentados —, não com o ilusório recrudescimento penal, mas, principalmente, com políticas de prevenção, proteção e de acolhimento das vítimas de violência doméstica e familiar.

 


[1] Vidal, Mariana Azevedo Couto. Populismo penal legislativo no Brasil: uma produção do discurso punitivo. São Paulo: Editora Dialética, 2024, p. 155.

[2] Karam, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói, RJ: Luam Ed., 1991, p. 198.

[3] MARTINEZ, Mauricio. In Depois do grande encarceramento, seminário/organização Pedro Vieira Abramovay, Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 313-327.

[4] https://blogdaboitempo.com.br/2015/08/17/os-paradoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-movimentos-feministas/

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