Opinião

Veto, logo existo: a inviabilização da universidade pública argentina

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21 de outubro de 2024, 10h16

O Congresso Nacional da Argentina aprovou, em 12 de setembro, a Lei 27.757, que tem por objetivo garantir a proteção e o sustento das universidades públicas nacionais em todo o território da República Argentina durante o ano de 2024.

Raúl Gustavo Ferreyra, catedrático da Universidade de Buenos Aires

Um instrumento criado por uma maioria coesa de congressistas que obriga o Poder Executivo Nacional (PEN): (i) a atualizar o montante fixado em 1º de janeiro de 2024 para as despesas de custeio, valendo-se, para tanto, da variação anual do Índice de Preços ao Consumidor de 2023; (ii) a realizar atualizações bimestrais, pelo mesmo índice, até o final do exercício financeiro de 2024.

Determinou-se, inclusive, que o PEN providenciasse a recomposição dos salários das carreiras docentes e não docentes do sistema universitário nacional, a partir de novembro de 2023 até a sanção da lei, pela variação acumulada da inflação e, a partir desta última data, até 31/12/2024, pelo mesmo índice. Tudo sob o controle e fiscalização da Auditoría General de la Nación.

Paliativo

Evidentemente, essa lei consiste em mero paliativo (exclusivamente para o ano de 2024) para uma política feroz do PEN, que desde 10/12/2023 está direcionada à queda do patrimônio das universidades nacionais, à ruína dos salários e à deterioração da pesquisa, intercâmbio e divulgação científicas.

Recorde-se que o artigo 75, inciso 19, da Constituição (desde a redação estabelecida a partir da reforma constitucional de 1994) estabelece uma responsabilidade irrenunciável do Estado, a de garantir tanto os princípios gratuidade e equidade da educação pública quanto a autonomia e autogoverno das universidades nacionais. Desde a promulgação da Constituição Federal, em 1853, nada nem ninguém pode, ou deve, ser considerado a ela superior em dignidade e hierarquia jurídica. Ela é a regra suprema da ordem para a liberdade que inaugura, protege e fomenta.

Em plena fidelidade ao seu plano de aniquilar os cursos públicos universitários, o presidente emitiu o Decreto 879, por meio do qual vetou integralmente o Projeto de Lei [1]. Esse episódio doloroso foi publicado no Diário Oficial de 3 de outubro; sob o disfarce de “equilíbrio fiscal”, persegue, na verdade, o desmonte da educação universitária gratuita, aberta, laica, solidária, plural e de excelência.

A divisão das tarefas do governo de um Estado foi introduzida por John Locke, David Hume e Montesquieu. Seus vários postulados teóricos foram inscritos — não sem severa adaptação — na Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, a mais antiga em vigor. A ideia contemporânea de dividir o poder em várias instâncias é absolutamente oposta, e avessa, à concentração do poder público [2].

Há 171 anos a Constituição Federal da Argentina tem instaurado diversos “processos públicos”; um deles — talvez o mais significativo — é o processo governamental, baseado na separação de poderes e decorrente da dignidade humana, dada a irracionalidade que é respaldar a concentração, o absolutismo ou qualquer outra forma de autocracia.

Todas as competências dos magistrados, dos congressistas e do presidente são assinaladas por regras escritas, fixas, determinadas e submetidas a um único protocolo de modificação. Assim, não há competências sem regras. Uma competência sem regra não é uma atribuição facultada pela Constituição, motivo pelo qual se tratará de conduta puramente arbitrária do agente público; em outras palavras, uma ofensa extrema e inescusável à Escritura Fundamental.

Veto

O veto é uma competência do presidente que pode ser excepcionalmente exercida, desde que em consonância com “todas as peças da Constituição”. Não é uma dádiva divina, porque se encontra submetido a várias regras constitucionais: a racionalidade de seu exercício; o respeito e o acatamento da moral pública e a obrigação de sancionar as leis de organização e bases da educação (voltadas à consolidação da unidade nacional).

O veto, a propósito, foi idealizado por Juan Bautista Alberdi, a partir de seu projeto de 1852 [3], e de lá prosperou para a Constituição histórica, uma construção que tem se mantido sem vincos ou fissuras. Seu uso como ferramenta de controle suscita muitíssimas dúvidas, afinal o poder de um só, o presidente, resultaria superior ao poder colegiado dos congressistas. Para prevenir parcialmente esses efeitos autocráticos e qualquer espécie de concentração (suma) do poder público — porque seus traços antidemocráticos são inegáveis —, inscreve-se o artigo 83 da Constituição:

“Rejeitado, total ou parcialmente, um projeto pelo Poder Executivo, ele retorna, com as razões do veto (objeciones), à Câmara iniciadora, que novamente o discutirá e, se confirmado por uma maioria de dois terços de votos, segue outra vez à Câmara revisora. Se ambas as Câmaras deliberam pela mesma maioria, o projeto vira lei e segue para o Poder Executivo para promulgação. As votações de ambas as Câmaras serão, nesse caso, nominais, pelo “sim” ou “não”; tanto os nomes e fundamentos dos que votaram quanto as razões do veto do Poder Executivo serão imediatamente publicados pela imprensa. Se as Câmaras divergem quanto às razões, o projeto não pode ser repetido nas sessões daquele ano.”

O veto presidencial contra a Lei 27.757 é um abuso de direito, isto é, um exercício indevido de competência, em virtude de desvirtuar o desenvolvimento dos princípios constitucionais precitados. O processo governamental deve ser objeto de bom desempenho, como tal fundado numa responsável inteligência das regras constitucionais.

No caso presente, todavia, o presidente atua sem nexo com qualquer competência normativa. Por isso, seu comportamento pode, e deve, ser tido por inconstitucional, porquanto seu horizonte de projeção é a devastação da universidade pública, da justiça social e da igualdade de oportunidades, todas regras capitais da Constituição argentina.

O melhor dos mundos possível é aquele com regras constitucionais escritas e que positivamente repartam o exercício do poder; não a “suma do poder público”, a mais abjeta das hegemonias. Assim, era adequado nutrir a esperança de que o Congresso atuasse com urgência democrática e responsabilidade republicana, e insistisse na sua deliberação legislativa original, nos termos do artigo 83 da Constituição argentina.

Diferentemente, os deputados, na sessão do dia 9 de outubro, não reuniram uma maioria de dois terços constitucionalmente requerida; numa votação apertada, os deputados governistas presentes à sessão mantiveram a medida presidencial. Agora, as universidades públicas deverão dirigir suas expectativas ao orçamento público de 2025, que, a propósito, traria montantes condizentes com a devastação da economia e finanças universitárias [não fosse o veto].

Inviabilização

A universidade pública é um bem coletivo para nós e para nossa posteridade; não pode existir invocação sobrenatural que desminta a língua da razão, a Constituição. A atual posição do presidente, qual seja “eu veto sem razões, logo existo”, apoiada por um terço dos deputados presentes na sessão, inclina o pêndulo para a inviabilidade da universidade pública, em escárnio aos mandamentos da Constituição.

Ou seja: uma provável obstaculização e/ou frustração colossal de importantes tarefas de ensino, de pesquisa, de ciência e de discussão. Outra vez sob o cenário jurídico: o Direito é a pura vontade ou deve ser a razão para crer e defender uma democracia? Com certeza, o triunfo da razão é o triunfo daqueles que raciocinam; hoje, entretanto, sua língua foi posta em xeque por um monopresidente e seus aliados que o apoiaram no Congresso.

 

*tradução de Gilmar Mendes (ministro do Supremo Tribunal Federal, doutor em Direito pela Universidade de Münster, doutor honoris causa da Universidade de Buenos Aires), que agradece a Carolina Cyrillo e ao Paulo Sávio N. Peixoto Maia pela revisão atenta. Originalmente publicado no periódico argentino Palabras del Derecho, em 13 de outubro de 2024.

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[1] N. T.: Na Argentina, o decreto é utilizado para formalizar o veto presidencial e sua comunicação ao Congresso.

[2] N.T.: No original, “suma del poder público”. Trata-se de um jogo com o conteúdo do artigo 29 da Constituição Argentina, vigente desde 1853, que dispõe: “El Congreso no puede conceder al Ejecutivo nacional, ni las Legislaturas provinciales a los gobernadores de provincia, facultades extraordinarias, ni la suma del poder público, ni otorgarles sumisiones o supremacías por las que la vida, el honor o las fortunas de los argentinos queden a merced de gobiernos o persona alguna (…)”. A cláusula proibitiva da concessão da “suma del poder público” tem uma história e ela me foi relatada por Raúl Gustavo Ferreyra: em 7 de março de 1835, a Sala de Representantes de Buenos Aires nomeou Juan Manuel Rosas como capitão-geral e governador da Província; delegou a ele, outrossim, a “suma del poder público” durante todo o tempo em que o governo eleito julgue necessário. O artigo 29 da Constituição Argentina conscientemente articula com esse passado e, ao fazê-lo, acabou por fornecer uma das mais felizes sínteses, em linguagem articulada, da doutrina da supremacia constitucional. É certo que a cláusula proibitiva da concessão da “suma del poder público” não encontra correspondente perfeito no constitucionalismo brasileiro, daí a opção pela perífrase para vertê-la ao português; por outro lado, é inquestionável que a ideia não se mostra estranha ao direito constitucional brasileiro, cuja noção de rigidez constitucional exige e pressupõe competências indisponíveis e improrrogáveis.

[3] N. T.: Refere-se às Bases y puntos de partida para la organización política de la República de Argentina (1852), de Juan Bautista Alberdi, considerado o autor intelectual da Constituição Argentina de 1853.

Autores

  • é titular catedrático de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires e membro do Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional (IDP).

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