Lei anticorrupção dos EUA como arma de guerra jurídica e protecionismo
21 de outubro de 2024, 15h12
No início do mês, o conglomerado industrial sueco Saab foi notificado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos para prestar informações sobre o contrato de compra de 36 aviões Gripen assinado com o Brasil em 2014. O órgão apura denúncias de tráfico de influência surgidas no bojo da finada “operação lava jato”, arquivadas tanto aqui como na Suécia. O interesse repentino em um contrato assinado há dez anos causou perplexidade.
Ficou evidente o interesse econômico. O Gripen está prestes a desbancar os EUA em duas concorrências importantes na Ásia e há novos fornecedores competitivos entrando no mercado, o que tornará a vida difícil para os produtos made in USA. O mundo da aviação militar está mudando, e isso não é bom para a indústria norte-americana.
A notificação do Departamento de Justiça dos EUA tem como base o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA). A legislação federal, de combate à corrupção no exterior, é frequentemente utilizada para executar tarefas de política industrial dos EUA, como parece ser o caso. Processos anticorrupção podem ajudar a proteger empresas, defender mercados e “equalizar” condições de competitividade internacional. O problema é quando esses processos extrapolam a isonomia e partem para a perseguição de adversários, destruição da concorrência e protecionismo declarado.
FCPA e protecionismo
Os processos do FCPA são conduzidos por dois órgãos do Poder Executivo dos EUA: parte dos processos vêm da Securities Exchange Commission (SEC), de perfil mais técnico, e outra parte vem do Department of Justice (DoJ), equivalente ao nosso Ministério da Justiça. O Departamento de Justiça é um órgão político, supervisionado pelo Comitê Judiciário do Senado (Judiciary Commitee), a quem se atribui boa parte da interferência do poder econômico no DoJ.
Assim como para as empresas, para os políticos norte-americanos, acionar empresas estrangeiras pelo FCPA pode ser um ótimo negócio. Processos do FCPA rendem cobertura de mídia e boas manchetes. É um bom discurso para um senador dizer que protege empregos americanos e combate empresas estrangeiras corruptas. Do ponto de vista das empresas norte-americanas, a promoção de escândalos via FCPA constrange concorrentes e facilita negócios.
Setores estratégicos
Processos do FCPA são complicados e custosos, logo tendem a ser escolhidos a dedo para atingir empresas importantes e setores estratégicos para economia norte-americana. Por isso, quase um terço dos processos do FCPA trata de empresas do setor de óleo e gás, setor estratégico de primeira ordem, no qual os EUA têm grande presença internacional. Há muitos processos em setores da indústria de alta tecnologia, farmacêutica, bens básicos e insumos. O alvo são sempre grandes empresas concorrentes dos EUA em mercados relevantes.
Um dos primeiros grandes casos do FCPA foi na área de defesa, em 2010. O processo era contra a inglesa BAE Systems, herdeira do parque industrial militar inglês da Segunda Guerra. É a maior indústria bélica da Europa e um dos maiores fornecedores do Departamento de Segurança dos EUA. A empresa tomou uma multa de US$ 400 milhões por pagamentos considerados indevidos na Arábia Saudita, África do Sul, Tanzânia e Romênia, nos anos 1990.
Outra multa recorde foi contra a francesa Alstom. Frédéric Pierucci, ex-executivo da Alstom, diz do livro “A Armadilha Americana” que a empresa foi perseguida pelo DoJ com o objetivo de facilitar a venda da subsidiária de energia nos EUA para a General Eletric (GE). O processo no FCPA resultou em uma multa de U$S 772 milhões contra a Alstom, a maior na história do FCPA até então. Logo depois ocorreu a venda da divisão elétrica da Alstom para a GE, em 2015, por US$ 10,6 bilhões, bem menos do que a proposta inicial de US$ 17 bilhões feita anos antes.
No setor de óleo e gás um caso notório é da francesa Total, uma multinacional petrolífera com atuação em território norte-americano e vários outros mercados, inclusive no Brasil. Ela foi multada em US$ 400 milhões em 2013 por supostos pagamentos indevidos feitos no Irã. Analistas atribuem o processo da Total à pressão de um certo senador do Texas, onde estão as maiores empresas petrolíferas dos EUA, e onde era a sede da Total em solo americano.
Novo concorrente na praça
Se o acionamento do FCPA envolve em regra um contexto econômico e político estratégico, a notificação da Saab mostra que algo está acontecendo de importante no mercado de aviação militar. O ano de 2024 tem sido bom para a Saab: a sueca levou o contrato de renovação da força aérea da Tailândia, com 14 aviões, e é favorita para levar o fornecimento de 40 caças para as Filipinas, dentro de um contrato de compras de US$ 33 bilhões. O sudeste asiático é considerado um mercado militar estratégico para os EUA.
Há outros elementos que demonstram que a Saab pode se tornar uma pedra no sapato da indústria militar norte-americana. Em 2024, a Suécia entrou na Organização Tratado do Atlântico Norte (Otan), o que melhora seu acesso a alguns dos mais importantes mercados militares do planeta. A Força Aérea sueca decidiu este ano abandonar planos de parceria e fazer ela mesma o desenvolvimento de seu próprio jato de “sexta geração”, em concorrência direta com os caças de “quinta geração” fornecidos pelos EUA.
Mercado em transformação
Os EUA dominam confortavelmente o mercado mundial de aviação militar, responsável por quase 80% dos caças de combate do mundo, um mercado de US$ 50 bilhões ao ano, com perspectiva de crescimento em cenário internacional de conflito. Os celebrados jatos F-18 da Boeing e os F-16, F-22 e F-35 da texana Lockheed Martin, contudo, estão com o reinado ameaçado.
Artigo publicado pela revista Foreign Policy ano passado aposta na chegada de um mundo multipolar na aviação militar. A revista mostra que há uma nova onda de nacionalização na produção em várias forças aéreas e novos produtos saindo em países como Índia, Turquia e Coreia. Além disso, há a ameaça dos aviões chineses, adquiridos este ano pelo Egito.
O calcanhar de Aquiles dos EUA no mercado internacional de aviação militar são suas restrições à transferência de tecnologia. Criar regras rígidas de transferência de tecnologia deixa compradores ansiosos quanto à manutenção e desenvolvimento de seus aviões no futuro. Para melhorar sua competitividade, a indústria americana precisaria mudar sua política.
“No final da década de 2030, o mercado global de caças — e o mercado de defesa em geral — será muito mais fragmentado e menos dominado pelos EUA do que hoje. Os países não vão depender para sempre dos caças produzidos nos EUA, e se Washington não se adaptar, dando prioridade à venda dos sistemas e tecnologias que alimentam os jatos de outros países, os Estados Unidos ficarão para trás no mercado global de defesa”, avalia a Foreign Policy.
Exportação da anticorrupção
O FCPA foi criado em 1977, no governo de Jimmy Carter (1977-1981), para punir empresas americanas envolvidas em escândalos internacionais. Mais do que uma política de Estado, foi uma forma de dar uma resposta imediata à opinião pública. O legislativo aprovou o FCPA, mas não havia uma política pública sobre o assunto e a lei ficou inerte até meados dos anos 2000.
A partir dos anos 1990, com abertura dos países comunistas e a onda de privatizações mundo afora, os EUA começaram a sentir que ficavam para trás na conquista dos novos mercados, e alguns empresários culpavam o FCPA pelo prejuízo. Alegava-se que as limitações do FCPA davam vantagem a concorrentes locais mais bem relacionados e empresas europeias com regulação anticorrupção mais frouxa. A solução foi exportar a “luta contra a corrupção” para o mundo.
A missão foi levada a cabo por entidades como a Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização das Nações Unidas (ONU), Banco Mundial e Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ao longo dos anos 1990 e 2000 essas instituições fizeram campanha pela assinatura de convenções e normas anticorrupção.
A partir de meados dos anos 2000, em um mundo já dominado por regras e discursos anticorrupção, os EUA decidiram ressuscitar o FCPA. A média de processos do FCPA disparou: passou de quatro processos ao ano até os anos 2000 para 40 processos ao ano a partir de 2010. De início uma lei voltada a vigiar empresas norte-americanas no exterior, o FCPA se transformou gradualmente em uma ferramenta usada contra empresas estrangeiras, que superaram número de empresas americanas processadas a partir de 2016.
Quiprocó
A novidade da notificação da Saab pelo DoJ, portanto, não é sua finalidade econômica, mas usar bases jurídicas especialmente frágeis. A acusação desenterrada pelo DoJ é tênue, e já foi arquivada em duas instâncias estrangeiras. Seria como se o Brasil resolvesse processar uma rede de supermercados americana em decorrência de uma investigação por corrupção arquivada no México. Há graves problemas processuais, de soberania e jurisdição.
Outro problema é mobilizar a máquina administrativa do DoJ para processar um caso de “tráfico de influência”, o que pode extrapolar as atribuições do FCPA. Tráfico e influência e conflitos de interesse são variedades de relacionamento entre setor público e privado de caráter muito difuso, que tendem a ficar fora do que é considerado corrupção pelo FCPA.
O sistema jurídico americano, incluindo o FCPA, é muito preciso quando se define o que é e o que não é corrupção. O FCPA entende por corrupção apenas o suborno, conduta na qual existe um “quid pro quo”, ou seja, um “toma lá, dá cá”, um pagamento dado em troca de uma coisa tangível, um “ato oficial”. O que se tem é que a acusação de corrupção mobilizada pelo DoJ contra a Saab pode não ser nem mesmo corrupção.
Com motivos jurídicos tão fracos, as motivações econômicas e políticas do DoJ tendem a ser fortíssimas. De fato, os Estados Unidos possuem uma poderosa indústria bélica e a Suécia tem se mostrado um concorrente perigoso em mercados estratégicos. O processo no FCPA pode até não ter base jurídica sólida, mas seu acionamento pelo DoJ dá dor de cabeça, despesas e cria problemas de reputação para a Saab, o que já pode ser explorado por seus concorrentes.
Geoeconomia da corrupção
A notificação da Saab serve como um alerta para o Brasil. A experiência do uso da legislação anticorrupção como uma arma de guerra jurídica e econômica nos é conhecida. A “operação lava jato” foi um exemplo de colaboração de funcionários públicos brasileiros com representantes de interesses internacionais, trazendo resultados catastróficos para grandes empresas, setores estratégicos, para a soberania e a economia nacional.
Duas das maiores multas já aplicadas com base no FCPA em toda a história foram contra empresas brasileiras. Com a ajuda de integrantes da “lava jato”, o DoJ chegou a uma penalização histórica, de US$ 1,7 bilhão contra a Petrobras, e outra de US$ 3,5 bilhões contra a Odebrecht, até hoje a maior de todas as multas já aplicadas com base no FCPA.
O FCPA foi criado na década de 70 para evitar condutas antiéticas de empresas americanas no exterior, mas hoje serve para caçar concorrentes da indústria norte-americana em qualquer lugar do mundo. Nove das 10 maiores multas já aplicadas pelo FCPA foram contra empresas estrangeiras.
Há claramente um direcionamento do uso do FCPA para proteger a indústria dos Estados Unidos e suprimir concorrentes que estiverem criando problemas em mercados estratégicos. A finalidade não é exatamente ser um “xerife do mundo”, mas abrir mais espaço para empresas norte-americanas e fechar mercados para concorrentes do resto do mundo. Para os EUA, o FCPA é excelente.
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