Direito Penal simbólico e a lei de combate ao feminicídio
21 de outubro de 2024, 9h22
Além de reconhecer a singularidade e a seriedade do crime de feminicídio, a Lei nº 14.994/24, denominada “pacote antifeminicídio”, reforçou o endurecimento das penas e destacou a proteção da mulher como prioridade no sistema jurídico brasileiro, representando um avanço contra a violência de gênero.
Esse contexto de endurecimento do Direito Penal, que à primeira análise pode parecer adequado para coibir a violência de gênero, é conhecido por um termo específico e é objeto de extensa análise na doutrina brasileira. Esse uso do Direito Penal apenas como um instrumento de proteção, de forma superficial, visando responder à pressão social e criar uma ilusão de segurança, é denominado de Direito Penal Simbólico.
Para se evitar apenas o simbolismo da referida legislação, espera-se que, além das medidas legislativas, sejam implementadas mais políticas públicas para enfrentar de maneira eficiente a crescente violência contra as mulheres. Desse modo, atendendo ao princípio da proibição de proteção insuficiente, o qual busca evitar que a leniência estatal fomente a perpetuação da violência de gênero.
Tipo penal autônomo e outras mudanças
Antes dessa reforma, o feminicídio era tratado como uma qualificadora do homicídio. O novo artigo, por outro lado, consagra o feminicídio como um tipo penal próprio, fortalecendo a resposta punitiva estatal. Note-se que o novo crime passa a ser a maior pena prevista na legislação penal brasileira, ultrapassando até mesmo o limite máximo de 40 anos de cumprimento de pena previsto no artigo 75 do Código Penal quando incidente alguma das causas de aumento de pena.
Além de criar o tipo penal autônomo de feminicídio, a Lei nº 14.994/2024 promoveu diversas alterações em outros dispositivos do Código Penal, aumentando a punição para crimes cometidos contra a mulher. As mudanças demonstram a preocupação do legislador em tratar com rigor não só a violência física, mas também a violência moral e psicológica. Muitas vezes, estes são os primeiros sinais de um ciclo de violência que pode culminar no feminicídio. Ao aumentar as penas para crimes de menor gravidade, a lei busca prevenir a escalada da violência e reafirmar a proteção à dignidade da mulher.
Nessa esteira, a nova legislação acresceu o §3º ao artigo 141 do Código Penal, passando a prever a aplicação das penas em dobro aos crimes contra honra, quando praticados em razão de condição do sexo feminino, nos termos do §1º do artigo 121-A do Código Penal. Houve uma mudança na ação penal do crime de ameaça, nos casos em que o crime for cometido contra a mulher por razões da condição do sexo feminino. A ação penal passa a ser pública incondicionada, além disso, reforça a aplicação das penas em dobro para esses crimes.
Essa alteração segue a mesma linha de raciocínio apresentada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 4.424, ao decidir que a lesão corporal em contexto de violência doméstica é crime de ação pública incondicionada, o qual independe da vontade da vítima para a persecução penal “(…) constituem crime de ação pública incondicionada, pouco importando a vontade da vítima ou a reconciliação do casal, ante a imperatividade da Lei Maria da Penha na salvaguarda do interesse maior da integridade física e psíquica da mulher”.
Visita íntima, transferência, progressão e descumprimento de medidas protetivas
Por sua vez, na Lei de Execução Penal, a reforma trouxe importantes avanços. Um deles é a proibição de visitas íntimas para presos condenados por crimes contra a mulher (atual redação do §2º do artigo 41 da LEP). Outra inovação foi a determinação de que os condenados por feminicídio ou violência doméstica possam ser transferidos para estabelecimentos penais distantes da residência da vítima. Ademais, a progressão de regime também sofreu alterações, com o aumento do tempo necessário para que o condenado por feminicídio possa progredir do regime fechado para o semiaberto.
O crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência previsto no artigo 24-A da Lei 11.340/2006 também sofreu alteração no seu preceito secundário. Da mesma forma, a contravenção penal de vias de fato prevista no artigo 21 do Decreto Lei 3.688/41, com as alterações promovidas pelo “pacote antifeminicídio”, se a contravenção é praticada contra a mulher por razões de gênero, passa ter a pena aplicada em triplo. São exemplos de vias de fato: atos agressivos que não impliquem em lesão corporal, como empurrão, safanão, rasgar roupa, puxar cabelo.
Por conseguinte, além das alterações mencionadas, a novidade legislativa ainda incluiu de forma expressa o feminicídio no rol dos crimes hediondos, previsto na Lei nº 8.072/90 (artigo 1º, inciso I). Embora o feminicídio já fosse tratado como hediondo de forma implícita, por ser até então uma qualificadora do homicídio, a Lei nº 14.994/2024 inseriu, então, de forma expressa tal delito no inciso I-B do artigo 1º da Lei nº 8.072/90.
Simbolismo e eficácia da lei
O endurecimento da legislação representa um avanço positivo, embora o aumento das penas não assegure, por si só, a diminuição das mortes. A conscientização e a percepção em torno do feminicídio cresceram após a promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006, o que trouxe o tema para o debate das políticas públicas. Estimular o interesse da sociedade e da mídia sobre essa questão é um ponto favorável, mas é fundamental que haja investimentos em educação, junto à supervisão dos serviços de acolhimento e acompanhamento dos agressores. Dessa forma, a legislação seria um passo importante na luta contra um problema multifacetado.
Entretanto, a criação de um novo tipo penal para o feminicídio, com penas mais severas, pode não se mostrar totalmente eficaz no combate a esse crime, considerando que já existia uma norma de 2015 que definia a qualificadora do feminicídio, e mesmo assim, o endurecimento das punições, feito à época, não conseguiu conter o aumento da criminalidade. É ingenuidade pensar que as medidas penais tenham um impacto real na diminuição dos casos de violência contra a mulher.
Na verdade, elas se destinam apenas a oferecer uma resposta punitiva a um problema que possui diversas causas, a violência de gênero. Assim como em outras situações, o Direito Penal se manifesta simbolicamente para indicar que certas ações são inaceitáveis, por meio do aumento das sanções e da criação de novos tipos penais.
Entretanto, como evidenciado pela referida lei, essa função simbólica pode ser utilizada para propósitos mais construtivos e alinhados com valores democráticos, dependendo do contexto em que é aplicada. A mensagem transmitida pela Lei nº 14.994/24 é de que tanto a sociedade quanto o Estado não aceitarão mais a discriminação e a agressão contra as mulheres.
O exemplo disso, é que diante da novidade legislativa tem-se que os processos que envolvem violência contra a mulher terão prioridade em todas as instâncias, além de isenção de custas processuais para as vítimas. A tramitação prioritária independe de deferimento pelo órgão jurisdicional e deverá ser imediatamente concedida, o que significa que não há espaço para valoração pelo juiz do deferimento ou não da prioridade, uma vez comprovada à condição legal esta deve ser concedida a mulher e não cessará com a morte, de modo que nestes casos mantém-se a prioridade de tramitação ainda que a vítima não esteja mais viva.
Assim, as novas normas penais estabelecem um importante marco a ser seguido. Embora seja verdade que o ponto de partida tenha um caráter simbólico, ele está inserido em um contexto de discriminação positiva em favor das mulheres. É importante destacar que a legislação em pauta não se limitou a medidas penais simbólicas, mas buscou apresentar ações efetivas, com um enfoque extrapenal. Acreditamos que o legislador soube encontrar uma maneira adequada de harmonizar o aspecto intrinsecamente simbólico das normas penais com um contexto que é democrático e funcionalmente direcionado. Portanto, a Lei nº 14.994/24 não se resume a um mero simbolismo (o que seria inaceitável), mas possui um caráter inicialmente simbólico, já que sua parte penal sustenta um plano mais amplo de atuação do Estado.
Referência bibliográfica:
BRASIL. Lei nº 14.994, de 9 de outubro de 2024, altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha) e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para tornar o feminicídio crime autônomo, agravar a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como para estabelecer outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher. Diário Oficial da União, 10 out. 2024. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14994.htm>. Acesso em 14/10/2024.
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