Opinião

O caso Watergate e a origem do termo lavagem de dinheiro

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19 de outubro de 2024, 7h04

A título de prólogo, há 52 anos, o ano de 1972 ficou marcado por um dos escândalos políticos mais memoráveis de todo o século passado, o caso Watergate (Watergate affair ou ainda, Watergate break in), cujo papel da imprensa (no caso, os jornalistas do jornal The Washington Post Bob Woodward e Carl Bernstein) foi crucial no desenrolar dos acontecimentos e pela criação do popular termo “lavagem de dinheiro” (money laundering).

Diego Renoldi Quaresma

Ali vinculou-se a grande quantidade de notas numeradas encontradas com as pessoas que foram presas em 17 de junho de 1972 ao invadirem o Comitê Nacional do Partido Democrata, no sexto andar do complexo de prédios Watergate (Watergate Hotel and Office Building), em Washington, D.C., e associá-las não apenas ao financiamento da invasão, mas também de valões obtidos pelo então presidente dos Estados Unidos e candidato à reeleição pelo partido Republicano, Richard Nixon.

Na primavera do ano seguinte, uma ampla investigação oficial apontou a possibilidade de encobrimento (cover up) da invasão do Watergate pelos chamados de “homens do presidente”, tudo feito com a própria conivência do mandatário [1].

Richard Nixon, no interesse de manter-se como chefe do Poder Executivo por mais um mandato, criou um grupo denominado de The Committee to Re-elect the President (Creep ou CRP nas siglas em inglês) [2], objetivando ajuda financeira para a sua campanha de reeleição, mas que na verdade, parte do fundo seria utilizado secretamente para financiamento de ações de sabotagem contra democratas [3].

Para tanto, Nixon “organizou a rockonha e fez todo mundo dançar” ao nomear seu ex-colega de advocacia, John Mitchell, para dirigir o comitê e arrecadar fundos para a campanha do presidente. Como chair, nomeou Maurice Stans, secretário do Comércio e homem de confiança do mandatário presidencial. Dentre os grandes doadores da campanha de Nixon em 1972 estavam os multimilionários Howard Hughes (US$ 100 mil) e Robert Vesco (US$ 200 mil), a companhia aérea American Airlines (US$ 100 mil), movimentando dinheiro por meio de notas frias e pagamentos fictícios supostamente celebrados no estrangeiro, em países como Panamá (US$ 400 mil  proveniente da Braniff) e Gabão (US$ 100 mil provenientes da Ashland Oil) [4].

Conforme a explicação dada pelos envolvidos diante do U.S. House Committee on the Judiciary, o Creep de Richard Nixon arrecadou ao todo, US$ 60 milhões, quantia até então sem precedentes na política internacional [5].

Fachada do complexo de prédios Watergate, em Washington, nos EUA

Não é necessário dizer que as contribuições ilegais arrecadadas pela campanha de Nixon não eram declaradas pelos donatários e nem reportadas como recebidas pelo comitê de campanha. É dizer, nem o Creep, nem as empresas doadoras declararam recebimento e a respectiva doação dessas quantias à campanha. Oficialmente, as doações não existiam [6], mas financiaram indiretamente a invasão ilegal ao Watergate, pois parte desse dinheiro estava na posse de Bernard L. Barker, um dos arrombadores presos dentro do Comitê Nacional do Partido Democrata, no edifício Watergate [7].

Lavado, numerado e rastreado

Ficou demonstrado ao longo da investigação que os cinco sujeitos (três deles foram presos em flagrante) envolvidos na invasão ao escritório-sede do Partido Democrata para instalação de escutas ambientais ilegais e a tentativa de subtrair documentos a serem utilizados a favor do presidente foram pagos com dinheiro lavado de “doações” de campanha de reeleição de Richard Nixon (Hush Money) para invadirem o escritório do Partido Democrata e instalarem escutas ambientais ilegais e buscarem por documentos a serem utilizados a favor do presidente [8].

O desfecho investigativo está no fato de que, além da ligação entre os envolvidos com o Creep e órgãos do governo como CIA, FBI etc., um fato intrigante chamou a atenção. Parte do dinheiro que os invasores traziam consigo quando foram presos em flagrante totalizavam US$ 4.500 em notas numeradas em sequência [9]. Sabe-se que esse dinheiro foi rastreado até a pessoa de Kenneth H. Dahlberg, arrecadador de campanha de Nixon no Meio Oeste, a Maurice Stans e a US$ 89 mil lavados no México [10].

Spacca

Por derradeiro, as conclusões investigativas apontaram que o mesmo Maurice Stans mantinha ilegalmente em seu gabinete no escritório do Creep, a soma de US$ 750 mil [11], revelando bastidores de uma rede de mentiras, crimes e lavagem de dinheiro que levaram por derradeiro até o gabinete presidencial na Casa Branca. Aliás, a esse pensar, segundo Paulo Moreira Leite, atentando sobre o pano de fundo da renúncia de Richard Nixon, enfatiza que:

“Naquele momento, ficou claro que a cumplicidade de Nixon com a ação de espionagem no edifício Watergate, que provocou sua queda, nada teve a ver com raciocínios dedutivos que sempre levam a alguma versão do domínio do fato. A parceria com os criminosos estava gravada em diálogos registrados pelo sistema de segurança da Casa Branca. Não eram depoimentos depois dos fatos. Eram conversas em tempo real. Quando a Suprema Corte determinou, por unanimidade, que Nixon entregasse as fitas que poderiam incriminá-lo, o presidente preferiu renunciar” [12].

Origem e disseminação do termo

Por outro lado, a lavagem de dinheiro, conduta que temos hoje como delitiva no Brasil e em grande parte do mundo (ainda a abordagem seja distinta), é assim chamada porque descreve exatamente o que acontece na prática quando associada aos estágios (geralmente três) de uma máquina de lavar roupas — dinheiro “sujo” (ilegal) é inserido no sistema financeiro (colocação) submetido a um ciclo de transações (ocultação ou mascaramento), para que saia do outro lado do processo como dinheiro limpo (lavado) dotado de aparência de licitude.

Dito de outro modo, a origem dos ativos obtidos ilegalmente é mascarada por meio de sucessões de transferências e negócios (“de fachada” ou não), de modo que esses ativos financeiros adquiram a possibilidade se passarem por legítimos para que mais adiante possam ser utilizados pelo beneficiário sem que seja associado ao produto ou proveito do crime antecedente [13].

Veja-se. Não faz muito, publiquei nesta ConJur texto intitulado “O erro de se vincular Al Capone à lavagem de dinheiro” [14]. Nesse sentido, como assinalei, o termo lavagem de dinheiro somente foi empregado pela primeira vez em 1973, com imediata relação ao escândalo Watergate. É dizer, o termo nunca teve qualquer relação com Al Capone, a máfia das cidades de Chicago e Nova York ou mesmo a siciliana (Itália). Essa associação à criminalidade e a propriedade de lavanderias pela máfia nos EUA nas décadas de 1920 e 1930 é simplesmente um mito. Como dizem, lenda urbana. Não é compreensível, portanto, associações desse tipo ao tratar da origem do termo lavagem de dinheiro.

No contexto do caso Watergate, o presidente Richard Nixon, isolado e pressionado pelo Congresso com o início de um  processo de impeachment em razão do envolvimento de seu comitê de reeleição com a invasão da sede do Partido Democrata, além de ter mentido em rede nacional de televisão sobre desconhecer os fatos apontados, em clara tentativa de encobrir o episódio (tanto da invasão quanto da lavagem de dinheiro praticada pelo seu comitê de reeleição) [15] e, sobretudo, obrigado por decisão judicial a exibir os áudios completo das gravações que ele mesmo mantinha no Salão Oval da Casa Branca com seus subordinados sobre os mais diversos assuntos — inclusive sobre o tema da lavagem de dinheiro com doações de campanha —, tendo como única maneira de escapar de uma persecução penal, renunciou ao cargo de presidente dos EUA em 8 de agosto do ano de 1974, isto é, dois anos após o descobrimento do caso Watergate (de 1972 a 1974).

Algumas ironias sobre o contexto da época precisam ser recordadas:

Richard Nixon estava tão à frente nas pesquisas presidenciais e seu oponente democrata George MacGovern, politicamente tão distante nas pesquisas, que o Creep não necessitaria de qualquer doação ilegal para a campanha, muito menos a tentativa frustrada de invasão ao escritório central do partido político adversário.

A outra é que, naqueles dias, a lavagem de dinheiro não era crime em nenhum lugar do mundo e sequer a expressão era conhecida, mas a forma com que o dinheiro foi arrecadado e distribuído pelo fundo secreto antes de depois da invasão ao comitê e o modo no qual passou pelo México, representou exatamente os estágios do ciclo de lavagem e que levou à legislações posteriores para evitar condutas de encobrimento da origem ilícita de ativos financeiros.

Na verdade, o interesse sobre o a conduta de lavagem de dinheiro somente despertou atenção das autoridades na década de 1980, essencialmente relacionado ao delito de tráfico de drogas (legislações antilavagem de primeira geração). Foi com o alerta dos lucros massivos provenientes do narcotráfico diretamente despejados na economia com a compra de imóveis, ativos financeiros, veículos, iates etc. e o crescente aumento do consumo de drogas ilícitas que o legislativo dos EUA instituiu em 1986 o Money Laundering Control Act, que criminalizou definitivamente a prática da lavagem de dinheiro.

Aliado a isso, foi somente a partir dos anos de 1990 que os governos globais também reconheceram que o crime organizado nacional e transnacional, por meio dos enormes lucros que obtiveram com as a comercialização de drogas ilícitas, poderiam contaminar e corromper as estruturas do Estado a todos os níveis de governo, cuja eliminação do rol de crimes antecedentes da Lei de Lavagem de Dinheiro se tornou uma necessidade mundial (legislações antilavagem de terceira geração) [16].

Desse modo, os atos ilegais do Creep ajudaram a transformar a invasão a um escritório em um escândalo político de doações ilegais de campanha que levaria a inicialização de um processo de impeachment conta o presidente dos Estados Unidos, sua renúncia do cargo e a revelação de um nível de corrupção inimaginável e um processo legislativo sobre financiamento de campanhas políticas e, posteriormente, a criminalização de determinadas condutas.

Foi assim que o ato de lavagem de dinheiro se tornou um ponto nevrálgico das reportagens vencedoras do Prêmio Pulitzer de Woodward e Bernstein. As reportagens investigativas (e posteriormente os livros) expuseram uma série de atividades suspeitas provenientes da Casa Branca. As fontes de mídia que cobriam o caso Watergate logo, em analogia, adotaram o termo “lavagem de dinheiro”, justamente pela concepção de se buscar de transformar o dinheiro ilícito com aparência lícita, consolidando assim seu lugar nos livros e dicionários.

O famoso escândalo do Watergate break-in serve — mesmo 50 anos depois — de advertência, dentre outros fatores, de como a imprensa livre é importante para uma democracia, revelando o estado de simbiose entre elas. Penso que esta é uma das razões pelas quais ainda se fala, escreve e debate sobre o escândalo. Como o próprio jornal The Washington Post colocou à época: “uma ampla campanha de espionagem política e sabotagem contra o Partido Democrata” [17].

 


[1] Sobre uma completa abordagem sobre a trama, veja a obra dos jornalistas do The Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein: BERNSTEIN, Carl. Todos os homens do presidente. Carl Bernstein, Bob Woodward. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo. Três Estrelas, 2014.

[2] MADINGER, John, Money Laundering, ob. cit., livro digital.

[3] Sobre os propósitos do CREEP e seus principais personagens ver matéria KELLY, Martin: The History of CREEP and Its Role in the Watergate Scandal. Disponível em: https://www.thoughtco.com/what-was-creep-105479.

[4] SHAXSON, Nicholas, Treasure Islands: tax havens and the men who stole de world, London, Vintage, 2016, p.119; ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen. ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen: Inside the World’s Third Largest Business 2. Ed. Pocket Books, London, 1998, p. 6.

[5] SHANAHAN, Eileen. “Big Money Talks”, The New York Times. Nov. de 1973. Disponível em: https://nyti.ms/1HiXnlF. Acessado em: 19 de set. 2024.

[6] ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 8-9.

[7] ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 8.

[8] MADINGER, John, Money Laundering, a guide for criminal investigators. Boca Raton, CRC Press, 2011 Ebook.; ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 9.

[9] MADINGER, John, Money Laundering, ob. cit..

[10] Para aprofundamento no tema, ver: OLIVERA, Diego Renoldi Quaresma de: Trajetória do Crime de Lavagem de Dinheiro: do escândalo Watergate ao Panama Papers in: Lavagem de dinheiro: temas polêmicos no brasil, argentina, equador e EUA org. Filipe Maia Broeto e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira. Curitiba, CRV, 2021.

[11] ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 9.

[12] LEITE, Paulo Moreira, A outra história da lava-jato. São Paulo, Geração Editorial, 2015, p. 341-342.

[13]  Já escrevi sobre isso nesta Conjur: Para aprofundamento sobre o tema lavagem de dinheiro e seus três estágios consultar, já escrevi sobre isso nesta ConJur:  OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Os três estágios da lavagem de capitais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-31/os-tres-estagios-da-lavagem-de-capitais/. Acessado em 19 de set. 2024.

[14] Também já publicado aqui na ConJur: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. O erro de se vincular Al Capone à lavagem de dinheiro: Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-23/o-erro-de-se-vincular-al-capone-a-lavagem-de-dinheiro/. Acessado em 19 de set. 2024.

[15] MADINGER, John, Money Laundering, ob. cit.

[16] Como aponta ARAS, VLADMIR. A investigação criminal na nova lei de lavagem de dinheiro. Disponível em: https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_artigo/4671-A-investigacao-criminal-na-nova-lei-de-lavagem-de-dinheiro. Acesso em 19 de set. 2024: [O] novo enquadramento normativo da lavagem de dinheiro situa o País entre as nações que cumprem, neste aspecto, as 40 Recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), que foram revisadas em fevereiro de 2012, para exigir que os crimes fiscais (tax crimes) sejam também delitos antecedentes. Estes foram expressamente incluídos na lista mínima de infrações penais antecedentes (“designated categories of offences”), a que se refere a nota interpretativa 4 da Recomendação 3 do Gafi.

[17] “A broad campain of political espionage and sabotage against the Democratic Party”.

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