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Licenças ambientais: insegurança jurídica e a urgência por estabilidade regulatória

Autor

  • Marcela Bocayuva

    é advogada mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT) certificada em Liderança e Negociação pela Universidade de Harvard especialista em Direito e Economia pela Universidade de Chicago (Uchicago) estudante visitante na New York University (NYU) e coordenadora da Escola Nacional da Magistratura (ENM).

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19 de outubro de 2024, 8h00

A questão das licenças ambientais no Brasil é extremamente reconhecida pela sua complexidade e controvérsia, sobretudo no que se refere à multiplicidade de atos normativos ambientais, à definição de competências e à (in)segurança jurídica.

Não obstante, o licenciamento ambiental constitui um ato administrativo integrante da Política Nacional de Meio Ambiente, cuja finalidade primordial é promover a compatibilização entre o ideal de desenvolvimento econômico-social e a preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo tal equilíbrio alcançado apenas por meio de medidas que valorizem o desenvolvimento sustentável.

Nesse sentido, é importante destacar que a promulgação da Constituição de 1988 representou uma ruptura no modelo social e constitucional-administrativo vigente até então. Como principal símbolo do processo de redemocratização, consolidou garantias para o reconhecimento e o exercício dos direitos e das liberdades dos brasileiros e procedeu à criação de instituições democráticas sólidas, além de mecanismos de accountability para manter a higidez dos procedimentos (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. p. 891).

Ao longo do século XX, os direitos fundamentais evoluíram para abranger uma terceira geração, que contempla os direitos transindividuais de titularidade difusa, entre os quais se destaca o direito ao meio ambiente equilibrado, expressamente consagrado no artigo 225 da Constituição Federal. Este dispositivo impõe tanto à sociedade quanto ao poder público a responsabilidade de manter qualitativa e quantitativamente o meio ambiente, dada a evidente ameaça de que a manipulação ambiental representa ao bem-estar e, principalmente, à dignidade da existência humana (MACHADO, Paulo. 2007. pg. 120).

A partir dessas informações, compreende-se que a Constituição Federal buscou harmonizar valores aparentemente antagônicos, com vistas a conferir sustentabilidade ao processo de avanço econômico do país à medida em que cumpre os objetivos previstos no artigo 3º.

Em outras palavras, de um lado há a necessidade de construção de uma sociedade justa e dotada de qualidade de vida, decorrentes da preservação ambiental e, de outro, tem-se a imprescindibilidade de determinadas intervenções para que seja viável o desenvolvimento econômico, conforme determinam os princípios da livre iniciativa, da legalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade.

Resta saber, contudo, em que medida as premissas de sustentabilidade e de segurança jurídica serão devidamente cumpridas na prática quando da intervenção ao meio ambiente para a produção de bens de consumo, para a prestação de matéria-prima à indústria, geração de empregos e circulação da economia, enquanto se mantém o equilíbrio ecológico necessário à manutenção dos processos produtivos.

Marcela Bocayuva, advogada

É nesse ponto que as instituições democráticas e os órgãos administrativos revelam a sua importância, uma vez que são os detentores do poder-dever de delimitar a atuação humana frente aos recursos naturais disponíveis, além de serem responsáveis pela manutenção da social-democracia em conformidade com critérios legais e constitucionais previamente estabelecidos. (ASSUMPÇÃO E SAMPAIO JÚNIOR, 2011, p. 5)

A insegurança jurídica e a burocracia no modelo ambiental brasileiro: um obstáculo ao desenvolvimento sustentável

O cenário normativo brasileiro relativo ao meio ambiente enfrentou um grave problema de falta de clareza, marcado pela sobreposição de marcos regulatórios e por procedimentos administrativos aparentemente burocráticos. A ausência de definições claras quanto à divisão de atribuições e à delimitação da discricionariedade administrativa agravou a insegurança jurídica, criando obstáculos significativos para a eficácia da implementação de políticas ambientais. Esse quadro nebuloso compromete a eficiência da governança ambiental e afasta o país de um desenvolvimento sustentável e robusto.

Tais aspectos representam um retrocesso na legislação ambiental pátria, uma vez que a falta de clareza e objetividade no conteúdo das normas aplicáveis à matéria e a utilização indiscriminada de conceitos dotados de generalidade e amplitude permitirem – sob o manto de uma aparente legalidade – que impactos negativos, de caráter irreversível, sejam colocados em prática. Um exemplo é a revogação de normas protetivas dos ecossistemas e da biodiversidade ou a inclusão de dispositivos legislativos no ordenamento jurídico brasileiro que autorizam a exploração de determinado bem natural de forma nociva e ilegal (ADPF 935 MC).

Irrefutavelmente, é possível identificar que houve, de fato, evolução nas políticas públicas voltadas à proteção do meio ambiente desde a promulgação da Constituição, consubstanciadas na implementação de ações de fiscalização ambiental, até operações contra a comercialização ilegal de recursos naturais, contra a invasão, desmatamento e garimpo ilegal, bem como o reforço de outras medidas atinentes à promoção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Em se tratando da concretização de políticas públicas voltadas à proteção ao meio ambiente, pressupõe-se a atuação coordenada de diversos órgãos e entidades da administração pública para que seja alcançada a plena conformidade constitucional em matéria ambiental, inclusive com previsões orçamentárias e abertura de créditos extraordinários (ADPF 743ADPF 746 e ADPF 857).

Isso porque, ainda que haja um grau de liberdade de conformação do legislador infraconstitucional e por parte dos órgãos do Poder Executivo de todas as esferas governamentais envolvidas no planejamento e estabelecimento de metas, diretrizes e ações relacionadas à temática, trata-se de prática inconstitucional a adoção de postura estatal omissiva, destituída de eficácia e de efetividade para proteger os ecossistemas essenciais à preservação da vida sadia ou causem a perda de biodiversidade (ADPF 760 e ADO 54).

Ao mesmo tempo, porém, a quantidade significativa de órgãos e de múltiplas competências sobrepostas, significam um cenário de instabilidade, em que o cumprimento das normas passa a não ser garantia automática de segurança jurídica. Nessas hipóteses, cabe às instituições públicas, agentes reguladores, o próprio Ministério Público como fiscal da lei, a implementação de diretrizes compatíveis com as premissas contidas no texto constitucional, na medida em que a discricionariedade administrativa não é prerrogativa isenta de limites, encontrando-se delineada no texto legal. Não havendo convergência, submete-se a atividade normativa do ente administrativo ao controle jurisdicional da sua legitimidade.

A intervenção do Poder Judiciário deve se pautar pelo exame da compatibilidade do objeto com a legislação aplicável e com os princípios constitucionais de razoabilidade e proporcionalidade.

Diante desse cenário a Lei Federal nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) representou um marco na busca pela redução da burocracia administrativa, tendo por objetivo elevar os níveis de segurança jurídica para as empresas no Brasil, assegurar a liberdade no exercício de atividades econômicas, a presunção de boa-fé do particular e a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre a atividade econômica.

Um exemplo atual que ilustra perfeitamente a situação mencionada é o mercado de exploração de potássio. Nos últimos anos, houve um incremento nos requerimentos de autorizações de pesquisa para sais de potássio no Brasil, com consequentes outorgas de alvarás por parte do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). A controvérsia revolve a questão da dependência do Brasil em relação aos fornecedores internacionais, a identificação do órgão competente para fins de expedição da licença, em respeito ao Pacto Federativo, bem como a ponderação entre as possíveis vantagens econômicas e os danos de ordem ambiental.

Segundo o planalto (GOV ) menciona-se que o país responde por 8% do consumo global de fertilizantes, é o quarto maior consumidor mundial, atrás da China, Índia e EUA. O potássio é o nutriente mais utilizado (38%), seguido por fósforo (33%) e nitrogênio (29%). A dependência de importações, que representam mais de 95% dos fertilizantes usados, expõe o País a vulnerabilidades e oscilações próprias do mercado internacional.

A relevância econômica da agricultura para o país, bem como a necessidade de fertilizantes para manter a produtividade, juntamente com o fator de alta dependência externa de fósforo e potássio, colocam o país em estado de criticidade, conceito este adotado quanto ao risco de interrupção de fornecimento externo e o impacto decorrente em setores industriais de importância econômica interna, além da imprevisibilidade dos valores, o que, certamente, tem potencial para afetar a competitividade, especialmente dos produtos agrícolas exportados (IBRAM, 2024, p. 98)

Como o Brasil é um grande produtor e exportador de commodities agropecuárias e faz uso em grande escala de fertilizantes estrangeiros, ao cogitar a autossuficiência, é imperiosa a criação de condições adequadas para se caminhar para o aprimoramento da infraestrutura interna, de modo a não submeter o país às oscilações da conjuntura internacional. Nos últimos 20 anos, entretanto, a capacidade interna de produção desses insumos evoluiu muito pouco, não sendo possível superar a dependência estrangeira. O país caminha, portanto, para impulsionar a expansão sustentável da produção interna de fertilizantes potássicos (VACCAREZZA, 2023, p. 1).

Em virtude disso, o Plano Nacional de Fertilizantes–PNF 2050 foi lançado sob a supervisão do MDIC e visa aumentar a produção nacional, desenvolver tecnologias adequadas ao ambiente brasileiro, apoiar o produtor rural e promover políticas fiscais favoráveis, buscando estabilidade de preços e aumento de produtividade, além de fortalecer a competitividade do agronegócio brasileiro no mercado internacional.

Contudo, ainda há empecilhos em relação à falta de clareza quanto aos órgãos competentes para conceder as licenças ambientais destinadas à exploração de potássio.

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) têm enfrentado o assunto sobre a legitimidade da imposição judicial ao Ibama, autarquia federal, pela emissão do licenciamento ambiental nesses casos ou se a competência deveria ser atribuída ao órgão pertencente ao estado-membro, conforme as diretrizes do Pacto Federativo.

No caso concreto do Projeto Autazes, embora a Justiça Federal do Amazonas tenha decidido que a competência para licenciamento é federal e, portanto, deve ser feito pelo Ibama, em razão da existência de terras indígenas no entorno do empreendimento e do fato de que novos pedidos de demarcação poderiam envolver a área do projeto da Potássio do Brasil. Não obstante, o referido entendimento não prevaleceu. Em decisão proferida, em sede de liminar, o TRF-1 reconheceu ser do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) a competência para o licenciamento do empreendimento, sob o fundamento de que a terra, apesar de abrigar índios, não é terreno demarcado e, portanto, a questão deve ser resolvida no âmbito estadual.

No caso do Projeto Volta Grande de Mineração, por sua vez, restou sedimentado à luz da jurisprudência do TRF-1, que se deve privilegiar a competência supletiva da autarquia ambiental federal para o licenciamento de empreendimentos regionais. De modo que competência no âmbito federal é fixada nas hipóteses de impacto ambiental interestadual, impacto direto sobre terras indígenas. Isto é, quando as entidades estaduais ou municipais se quedarem inertes e incorrerem em omissão.

Apesar disso, relativamente ao projeto, trata-se de exceção, uma vez que o caso versa sobre atividade de grande repercussão ambiental em área impactada por usina hidrelétrica de grande porte, na verdade, a segunda maior usina dessa espécie no país.

Esses cenários demonstram, mais uma vez, como a sobreposição de competências e a falta de clareza no modelo normativo brasileiro dificultam a definição de responsabilidades, contribuindo para a insegurança jurídica e a burocracia exacerbada no campo ambiental. Tais entraves revelam-se graves impedimentos para investimentos e ainda colocam em risco a eficiência da gestão ambiental e o progresso de um desenvolvimento sustentável adequado para o Brasil.

O trinômio essencial: segurança jurídica, proteção ambiental e eficiência administrativa

Em razão de controvérsias dessa natureza, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Licenciamento Ambiental, o qual tem por enfoque a redução da insegurança jurídica relacionada ao tema e sanar dúvidas no que se refere a questões sobre competência, bem como a consolidação em um só instrumento normativo das regras gerais.

É prevista, ainda, a adoção do licenciamento auto declaratório em todo o país, que funcionará como a declaração de imposto de renda digital para os empreendedores. O objetivo é permitir a emissão automática da licença, preenchidos os requisitos legais, seguida por uma fase de vistoria e pela conferência pelo órgão ambiental no local.

Resta cristalino que o país precisa envidar esforços públicos e privados de forma a perpassar investimentos por toda a cadeia do mercado de potássio e demais assuntos atinentes à exploração de recursos ambientais de forma sustentável e equilibrada. Há que se prezar pela criação de um marco regulatório juridicamente seguro e uma estrutura administrativa, composta por agências e órgãos públicos estruturados e em condições de agir com celeridade e eficiência, assegurando aos investidores a previsibilidade necessária para a execução de suas operações. Além disso, menciona-se a relevância de se criar fontes de recursos públicos e privados com taxas de juros atrativas, mercado interno competitivo e estruturado com regras claras, em condições de igualdade concorrencial e com variedade de produtores e fornecedores, dotados de padrão de qualidade alinhado às melhores práticas internacionais.

Assim, sob a perspectiva do desenvolvimento sustentável, é necessário que sejam considerados, pelo órgão regulador, o estágio mais atual da realidade nacional, das peculiaridades locais, bem como a forma de melhor aplicar as premissas da livre iniciativa, do desenvolvimento social e do crescimento econômico, como elementos de indispensável consideração para construção e progressiva evolução da norma, de forma a otimizar a proteção ambiental eficiente (ADI 6.148).

A livre iniciativa, portanto, não se revela um fim em si mesmo, mas um meio para atingir os objetivos fundamentais da República, inclusive a tutela e preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Ao mesmo tempo em que deve ser utilizada para promover o crescimento econômico, segundo as diretrizes do desenvolvimento sustentável, conceitos estes indissociáveis no mundo atual.

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  • é advogada, mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT), certificada em Liderança e Negociação pela Universidade de Harvard, especialista em Direito e Economia pela Universidade de Chicago (Uchicago), estudante visitante na New York University (NYU) e coordenadora da Escola Nacional da Magistratura (ENM).

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