Opinião

Liberação parcial da alienação fiduciária de imóvel

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19 de outubro de 2024, 11h22

O tema em roga versa sobre a possibilidade de uma garantia imobiliária, constituída sobre determinada fração ideal maior, ser “liberada” apenas em relação a determinada fração ideal menor. Em exemplo, um imóvel, com 100% de sua propriedade alienada em garantia fiduciária, pode ter uma fração de cinquenta por cento liberada e, com isto, restar, essa metade, apta, inclusive, ao recebimento de outra garantia.

A compreensão da liberação é de sacral importância, pois não se quer, com ela, de qualquer modo novar ou renovar a dívida já garantida. Tudo que se quer é reduzir a quantidade da garantia. Assim, sem que a dívida esteja totalmente satisfeita, o credor optará ou cumprirá determinada avença pela “liberação parcial” de determinada fração ideal do gravame.

O tema demanda a diferenciação de “liberação de garantia” de “cancelamento de garantia”.

Em sentido estrito, “cancelar” é ato registral de extinção do assento inscrito (do registro que consta na matrícula do imóvel). Isto é, cancela-se o registro, não o título formal que lhe deu causa, muito menos o negócio jurídico subjacente. O cancelamento é o ato material praticado pelo ofício registral; é apto a cancelamento tanto o ato válido, cujos efeitos foram esgotados e demandam a extinção do assento, quanto o ato invalidado, em que o cancelamento possui retroação de efeitos.

Em relação à garantia imobiliária, o cancelamento pode se dar por vários motivos: (1) pela extinção da obrigação garantida, (2) pela invalidação do título registrado e (3) pela liberação da garantia.

A liberação, para os presentes fins, assume o sentido de espécie de renúncia ao assento registral; jamais o de renúncia do próprio direito subjacente ao registro. A liberação é o ato do titular do direito ou da ordem inscrita, autorizativo do cancelamento do registro. Por regra geral, todo direito inscrito (registrado) na matrícula é passível de renúncia em sentido material.

O Código Civil, por exemplo, prevê a renúncia da propriedade em seu artigo 1.275, II. Em sentido oposto, não se pode dizer que todo registro em vigor seja passível de liberação. A penhora pode ser inscrita e liberada a qualquer tempo; o arrolamento fiscal, também; ambos, por serem circunstâncias que não são elementos do direito real principal registrado. O direito real principal registrado, em si, não é passível de “liberação”, porque somente existe enquanto registrado (se a extinção de um ato registrado implicar extinção do próprio direito real principal, não estaremos falando de “liberação” no sentido ora apresentado).

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Desembargadores entenderam que o fato de existir medida protetiva contra proprietário de imóvel não relativiza seu direito de posse

Por mesma lógica, o cancelamento da garantia não implica presunção de extinção da dívida (dado que o principal não segue o acessório); o inverso, por regra, sim. O levantamento da penhora, o cancelamento de uma cláusula resolutiva expressa, a liberação de uma garantia, nada disso implica, por si, reconhecimento da satisfação do crédito. Todavia, a comprovação do pagamento do crédito pela forma adequada será título suficiente para cancelamento da constrição que existia no imóvel.

Mais que isso, a liberação da garantia sequer deve ser lida como renúncia da garantia em si; o interessado pode optar por registrar ou não uma garantia, a qualquer tempo, já que esta pode viver antes ou após o registro (embora sem oponibilidade a terceiros). Quando uma pessoa compra um imóvel, a compra e venda não pode ser “liberada”, porque, após o registro, não existe mais qualquer efeito não esgotado e a “liberação” implicaria extinção do próprio direito subjacente.

Hipótese de liberação parcial da garantia pelo credor

Postas essas premissas e enfocando o tema deste artigo, por comum, uma vez registrada a alienação fiduciária da totalidade da fração ideal de determinado imóvel (ou de uma fração menor, desde o início), em garantia das dívidas definidas no título, é possível que o credor acorde pela redução de parte da garantia, por meio da liberação de certa fração ideal.

Por exemplo, o credor aceita reduzir sua garantia à fração ideal de 50% do imóvel. O motivo da liberação da garantia não é elemento do ato de extinção do direito acessório de garantia (ou do assento desta). Mas, por entendimento, a liberação poderia decorrer de acerto comercial previsto já na contratação original da garantia, ou posteriormente; poderia, ainda, ter a finalidade de permitir o ingresso de uma nova garantia pelo mesmo ou diverso credor, em relação à fração ideal liberada do gravame, como já exposto. Neste caso, não se estará a tratar de alienação fiduciária superveniente, mas de gravame que terá a mesma e imediata eficácia.

O tema da liberação parcial de garantias não é novo, mas, de antemão, relembra-se não haver norma posta que regre própria e diretamente a liberação voluntária da garantia.

Não redutibilidade da garantia

Conforme se sabe, dentre outras, as principais características das garantias, no que se inclui a propriedade fiduciária com função de garantia, são as seguintes: acessoriedade (a garantia existe em razão de um negócio principal; satisfeita a dívida, extinta a garantia); sequela (o direito é oponível contra terceiros, de modo que o detentor do direito pode obter a coisa de quem for); excussão (o bem dado em garantia poderá ser vendido forçadamente, para adimplir a dívida); e indivisibilidade.

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É na indivisibilidade que se centra a presente discussão.

De acordo com a doutrina, indivisibilidade é norma que determina a não redutibilidade da garantia com o pagamento das parcelas da dívida. Sua previsão se encontra no artigo 1.421 do Código Civil:

Art. 1.421. O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou na quitação.

Dita indivisibilidade, contudo, é norma disponível (= renunciável, não cogente), perfeitamente afastável por vontade das partes, conforme parte final do aludido artigo. Em melhor leitura, a previsão de que pode haver “disposição expressa no título ou na quitação” (“salvo” = respeitada a exceção referida), é, por obvio, expressa e literal autorização pela divisibilidade.

Conforme assente na doutrina, a indivisibilidade é (1) norma disponível, estabelecida em favor do credor e (2) relativa à própria natureza do negócio jurídico (de garantia) e não ao objeto da garantia (o imóvel).

Nesse sentido:

A indivisibilidade da obrigação (…) decorre da própria razão determinante do negócio jurídico, e não do objeto em si. (FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson, Direitos Reais, 3ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2006, p. 614)

Enquanto não liquidada, a hipoteca subsiste por inteiro sobre a totalidade dos bens gravados, ainda que ocorra pagamento parcial: Hypoteca est tota in todto et tota in qualibet parte (Código de Justiniano, L. 8, T. 27, § 6). Este caráter da hipoteca que não é da sua essência mas uma criação da lei, pode ser afastado convencionalmente.” (SILVA PEREIRA, Caio Mário, Instituições de direito civil, volume IV, 2ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2016, n. 356)

Em mesmo sentido:

A propriedade fiduciária, como as demais garantias reais, não é indivisível por natureza, mas, sim, por força da lei, para assegurar, de maneira mais cabal, o cumprimento de obrigação. (…)

Graças a indivisibilidade, ainda que a obrigação, que a propriedade fiduciária garante, sofra divisão ativa (quem falece é o devedor, sendo seus os seus herdeiros), a garantia real permanece indivisível, ou seja, não se resolve parcialmente a propriedade fiduciária, retornando, em parte, ao alienante o domínio pleno da coisa objeto da garantia. O mesmo sucede na hipótese de o devedor haver uma parcela do débito, e, não, todo ele. Como, porém, a indivisibilidade da propriedade fiduciária não decorre da natureza desse instituto, mas de disposição legal em benefício do credor, pode este, desde que expressamente, renunciar a ela, tornando divisível a garantia real.” (MOREIRA ALVES, José Carlos, Da Alienação Fiduciária em Garantia, 2º edição, Rio de Janeiro, Forense, 1979, pp. 116 e 126)

Caio Mário da Silva Pereira (op cit, nº 347), ao tratar do significado da indivisibilidade, elucida, ainda, que a possibilidade de liberação parcial pode decorrer tanto de previsão no título constitutivo da garantia original (isto é, constará já na escritura de contratação da garantia as hipóteses em que o credor ficará obrigado a conceder a liberação, ou quando se terá por automaticamente liberada determinada parcela do imóvel em relação à garantia), quanto em momento posterior (o que, no mais das vezes, dar-se-á por simples requerimento escrito do credor):

Num primeiro (sentido)(a indivisibilidade) significa sua adesão ao bem por inteiro e em cada uma de suas partes: totum in toto et qualibet parte. Enquanto vigora, não se pode eximir a coisa do ônus, sob fundamento de excesso de garantia, nem se admite que a alienação parcial, sem a anuência do credor garantido, conceda exoneração ao adquirente. Em virtude ainda do mesmo princípio, os acessórios da coisa sofrem o gravame, salvo se se tratar de benfeitoria suscetível de retirada sem atentado à substância do objeto. A garantia, inseparavelmente, instaura-se na coisa, sicut anima in corpore, diziam os antigos; tal qual a alma do corpo. Num segundo sentido, a indivisibilidade se manifesta na sobrevivência integral da garantia, em caso de pagamento parcial da obrigação assegurada, ainda que compreenda vários bens (art. 758). Duas exceções aqui se assinalam: a) Disposição expressa em contrário no próprio título, que muitas vezes contém estipulação referente à liberação proporcional dos bens gravados, na medida da redução do débito. Neste caso, prevalece a exoneração por partes, independentemente da especificação no recibo; problema será, tão-somente, esclarecer qual a parte liberada dos bens gravados, em face da obscuridade da estipulação b) Quitação parcial concedida pelo credor, liberando parte do objeto gravado, tornando-se necessário esclarecer a que bens a exoneração se refere.”

Por outro giro, é dado que não há doutrina de relevo que defenda a inadmissão de transmissões parciais de direitos reais; a pessoa que detém a totalidade de um dado direito real, como a propriedade, pode, a qualquer tempo, alienar ou renunciar qualquer fração ideal dela. Qual seria o motivo da inadmissão da liberação parcial de uma garantia? Se o próprio principal pode ser fracionado, por que mero acessório não poderia?

A solução para eventual denegação seria, no momento da constituição, ao invés de se dar em garantia a “totalidade” do imóvel, dar-se “mil partes de milésimo” ou “cem partes de centésimo”, para que então cada qual pudesse ser distintamente liberada?

Ao que parece claro, a liberação parcial é absolutamente possível e, ao ser praticada, por si, em nada alterará a dívida garantida. Do âmbito de vista registral, a liberação ingressará na matrícula como uma averbação, que indicará qual a fração ideal liberada e qual a que remanesce em garantia da dívida.

 


Bibliografia:

CARVALHO, Afrânio de, Registro de imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975,  1º ed., Rio de Janeiro, Forense, 1976;

FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson, Direitos Reais, 3ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2006;

MOREIRA ALVES, José Carlos, Da Alienação Fiduciária em Garantia, 2º ed., Rio de Janeiro, Forense, 1979;

SILVA PEREIRA, Caio Mário, Instituições de direito civil, volume IV, 2ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2016

 

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