Opinião

Do 'apagão das canetas' ao 'curto-circuito do sistema de controle'

Autor

  • José Carlos Fernandes Junior

    é promotor de Justiça do MP-MG ex-coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público do MPMG pós-graduado em Divisão de Poderes Ministério Público e Judicialização pelo Centro de Estudo e Aperfeiçoamento Funcional do MP-MG.

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19 de outubro de 2024, 6h31

Ninguém ignora (e já defendemos isso em diversas ocasiões) que a Lei de Improbidade Administrativa, editada em 1992, necessitava de atualizações. Partindo dessa premissa, dentre as alterações introduzidas pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, forçoso o reconhecimento quanto à existência de dispositivos que representam avanços legislativos em prol da defesa do patrimônio público e da probidade administrativa.

Apesar disso, já nos parece visível que o mesmo argumento crítico de desproporcionalidade e desarrazoabilidade na propositura excessiva de ações alicerçadas no texto vigente até o final de outubro de 2021, agora veste como uma luva considerando a pequenez excessiva do número de novas ações propostas a partir do novo texto. Sendo mais específico, se antes parecia haver um excesso de ações, agora enfrentamos um cenário em que a escassez destas se apresenta como potencial catalizador do enfraquecimento da efetividade do sistema de controle da administração pública.

Sem qualquer pretensão de esgotar o tema, chama-se a atenção para esse paradoxo, que perpassa pelo “apagão das canetas”, fenômeno decorrente do receio dos agentes públicos em tomar decisões que pudessem ser interpretadas como ímprobas, até o “curto-circuito do sistema de controle”, resultante de algumas das alterações impostas pela nova legislação, hoje objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.236, em trâmite no Supremo Tribunal Federal.

Necessidade de atualização e avanços da Lei nº 14.230/2021

A Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), desde a edição, desempenha papel fundamental no combate à corrupção, em sentido lato, e na promoção da ética na administração pública brasileira. Natural que, transcorrido quase três décadas de vigência, se mostrassem necessárias atualizações, no intuito de a tornar mais eficaz e justa.

Entre as alterações positivas trazidas pela Lei nº 14.230/2021, já destacamos a exclusão da conduta culposa para a configuração do ato de improbidade administrativa. Essa alteração alinha a lei aos princípios gerais do direito sancionador, garantindo que apenas condutas intencionais sejam punidas com as severas sanções previstas. Até o advento da Lei nº 14.230/2021, a judicialização era a medida adotada, não obstante o peso estigmatizante da representação por ato de improbidade administrativa, mesmo que advindo de conduta culposa do agente público o ato gerador de dano ao erário.

Outra inovação significativa é a previsão expressa de celebração de acordos de não persecução civil em qualquer fase processual da ação de improbidade administrativa, inclusive após o trânsito em julgado do decreto judicial condenatório.

Destaque-se que, embora não mais se imponha, de maneira absoluta, em toda e qualquer avença, a previsão de, no mínimo, uma das sanções de que trata a Lei de Improbidade Administrativa, a novatio legis não autoriza a celebração de todo ANPC prevendo apenas a reparação do dano causado ao erário ou o perdimento da vantagem ilícita obtida. Absolutamente, que não.

Em verdade, disciplinou-se que, respeitada as peculiaridades de cada qual, assim como a delação premiada no campo da responsabilidade penal, o ANPC, sempre visando otimizar a coleta de informações e a celeridade no resgate de recursos públicos desviados fraudulentamente, poderá produzir efeito premial em favor daquele que colaborar eficazmente, de maneira excepcional, com investigações em curso ou ações judiciais ainda em fase de instrução. É o denominado ANPC colaborativo premiado.

Do ‘apagão das canetas’ ao ‘curto-circuito do sistema de controle’

Apesar de alguns avanços, a nova LIA (como vem sendo denominada, tamanho o número de alterações promovidas) também gera preocupações. O fenômeno do “apagão das canetas”, caracterizado pela inibição dos agentes públicos em tomar decisões por receio de serem acusados de improbidade, pode estar dando lugar a um verdadeiro “curto-circuito do sistema de controle”.

A crítica de desproporcionalidade e desarrazoabilidade, antes direcionada ao excesso de ações propostas com base no texto antigo, agora se aplica à escassez de novas ações de improbidade administrativa fundamentadas no novo texto. Essa “pequenez excessiva” no número de ações propostas parece indicar dificuldades práticas na repressão à improbidade administrativa, pavimentando caminho para uma possível impunidade de atos lesivos à administração pública.

Taxatividade do artigo 11 e seus impactos

Uma das alterações mais controversas é a taxatividade do rol de condutas ímprobas previstas no artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa. Anteriormente exemplificativo, o rol permitia que atos graves e dolosos que violassem os princípios da administração pública fossem enquadrados como improbidade administrativa.

Com a nova redação, somente as condutas expressamente tipificadas nos incisos do artigo 11 da LIA podem ser consideradas atos de improbidade administrativa. Essa mudança representa claro retrocesso à proteção do patrimônio público e à probidade administrativa, limitando a capacidade do Estado de sancionar comportamentos, a exemplo de tortura cometida por agente público, ainda que no exercício das funções públicas que lhe são inerentes.

Até mesmo a alardeada “perseguição política” em repartições públicas, cometida por agente público superior hierarquicamente contra servidores públicos de baixo escalão que ousem contrariar interesses políticos, parece imune aos comandos do texto atualmente vigente da Lei nº 8.429/92.

Aliás, a taxatividade do rol de incisos do artigo 11 da LIA, especialmente considerando a revogação do inciso I, mostra-se ainda mais incompreensível diante da introdução de previsão de sancionamento menos gravoso para os atos de improbidade administrativa violadores de princípios, isso em comparação aos previstos nos artigos 9º (enriquecimento ilícito) e 10 (dano ao erário), estabelecendo os  autores não se sujeitam às sanções de suspensão provisória dos direitos políticos e perda da função pública (artigo 12, inciso III).

Spacca

Afastando a possibilidade de enquadramento como atos de improbidade administrativas os exemplos retromencionados (outros muitos, de gravidade e repulsa similares, podem ser apresentados), por si só, nos permite antever a ocorrência de um verdadeiro “curto-circuito” do sistema de controle da administração pública. Para essa conclusão, sempre oportuno relembrar que, a “razoabilidade analisa basicamente o equilíbrio  entre meios e fins, especialmente no tocante à adequação dos meios, tendo em vista a aptidão para atingirem determinadas finalidades” (NOHARA, 2023, p. 80).

Dados estatísticos sobre redução de novas ações

A análise da quantidade de novas ações de improbidade administrativa, iniciadas entre 2020 e 2024, escancara uma diminuição significativa no número de processos após a vigência da Lei nº 14.230/2021:

  • 2020: 18.830 ações
  • 2021: 20.650 ações
  • 2022: 14.190 ações
  • 2023: 12.539 ações
  • 2024 (até 31/07): 7.053 ações

Os dados foram obtidos por meio de filtros aplicados no sistema DataJud, instituído pela Resolução CNJ nº 331/2020, considerando “ano” e processos de “casos novos, em ” no “1º grau”, relacionados a assuntos de Direito Administrativo e outras matérias de Direito Público (9985), especificamente: atos administrativos (9997), improbidade administrativa (10011), dano ao erário (10012), enriquecimento ilícito (10013) e violação dos princípios administrativos (10014).

A queda significativa no número de novas ações, após 2021, corrobora a crítica de que o novo texto legal limitou excessivamente a capacidade de proposição de ações de improbidade administrativa. Enquanto que em 2021 foram propostas 20.650 ações, em 2023, esse número caiu para 12.539, e em 2024, até 31 de julho, registrou-se apenas 7.053 novas ações.

Conclusão

É fundamental encontrar um equilíbrio entre a segurança jurídica dos agentes públicos e a necessidade de um sistema de controle da administração pública eficaz. A lei deve proteger os agentes públicos que agem de boa-fé, evitando o “apagão das canetas”, mas também precisa assegurar que atos dolosos lesivos à moralidade administrativa não fiquem impunes.

As alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021 devem se prestar a modernização da Lei de Improbidade Administrativa, e jamais promover o enfraquecimento do sistema de controle da administração pública, com a consequente geração de impunidade de atentados à moralidade administrativa.

O julgamento da ADI nº 7.236, pelo STF, será determinante para o futuro do enfrentamento à improbidade administrativa no Brasil. A Suprema Corte tem a oportunidade de equilibrar os interesses em jogo, garantindo que a lei cumpra o papel de proteger o patrimônio público e a probidade administrativa. Afinal, em nada contribui para o avanço no enfrentamento da corrupção reinante no Brasil suplantar o ambiente dito “apagão das canetas” para  ir ao encontro com o “curto-circuito do controle”.

 


Referências

FERNANDES JUNIOR, José Carlos. A inadmissibilidade da conduta culposa para configuração do ato de improbidade administrativa. Uma conformação com a realidade. CONAMP. Disponível em: https://www.conamp.org.br/publicacoes/artigos-juridicos/8735-a-inadmissibilidade-da-conduta-culposa-para-configuracao-do-ato-de-improbidade-administrativa-uma-conformacao-com-a-realidade. Acesso em: 13 out. 2024.

FERNANDES JUNIOR, José Carlos. Considerações sobre a retroatividade da lei mais benéfica no âmbito da Proteção à Probidade Administrativa: impactos da Lei n° 14.230, de 25 de outubro de 2021, no rol do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa, à luz da Constituição da República. CONAMP. Disponível em: https://www.conamp.org.br/publicacoes/artigos-juridicos/8626-consideracoes-sobre-a-retroatividade-da-lei-mais-benefica-no-ambito-da-protecao-a-probidade-administrativa. Acesso em: 13 out. 2024.

FERNANDES JUNIOR, José Carlos. Os limites da celebração do ANPC após o trânsito em julgado da sentença condenatória. CONAMP. Disponível em: https://www.conamp.org.br/publicacoes/artigos-juridicos/8880-os-limites-da-celebracao-do-anpc-apos-o-transito-em-julgado-da-sentenca-condenatoria. Acesso em: 13 out. 2024.

NOHARA, Irene Patrícia Diom. Direito Administrativo. 12. ed. rev. e ampl. Barueri, SP: Atlas, 2023.

SMANIO, Gianpaolo Poggio; FERNANDES JUNIOR, José Carlos. O ANPC COLABORATIVO (QUALIFICADO) E PREMIADO. Revista de Direito Brasileira, [S. l.], v. 33, n. 12, p. 207–216, 2023. DOI: 10.26668/IndexLawJournals/2358-1352/2022.v33i12.9163. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/view/9163. Acesso em: 16 out. 2024.

Autores

  • é promotor de Justiça do MP-MG, mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM-SP), graduado em Direito, com especialização em Divisão de Poderes, Ministério Público e Judicialização, pelo Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do MPMG (Ceaf/MPMG).

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