Ambiente Jurídico

Caminhos disruptivos para a eficácia das metas globais de biodiversidade

Autor

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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19 de outubro de 2024, 8h00

A 16ª Conferência das Partes (COP) sobre a Diversidade Biológica, que terá início no próximo dia 21 de outubro, em Cali, na Colômbia, é um evento crucial para a discussão e implementação de estratégias globais voltadas à preservação da biodiversidade. As metas de biodiversidade entre os países são estabelecidas principalmente através de acordos internacionais, como o Convênio sobre Diversidade Biológica (CDB), que define objetivos globais para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade. Durante conferências como a COP, os países negociam e concordam com metas específicas que delineiam ações prioritárias.

Uma vez acordadas, essas metas internacionais precisam ser incorporadas ao ordenamento jurídico nacional de cada país. Isso é feito por meio da elaboração de políticas públicas, leis e regulamentos que traduzem os compromissos internacionais em ações concretas a nível local. As instituições jurídicas nacionais desempenham um papel crucial, garantindo que essas metas sejam implementadas de forma eficaz, adaptando-as às realidades locais e monitorando o cumprimento das mesmas para assegurar que os objetivos globais de biodiversidade sejam alcançados.

As metas atualmente em vigor são bastante extensas e desafiadoras para todos os países. Um resumo desses compromissos mostra por si só o esforço normativo e regulatório, bem como a dimensão das ações de controle e fiscalização, além do estabelecimento de ações e proposições de políticas públicas visando a implementação desse conjunto de objetivos, como se pode ver a seguir:

  • Meta 1: Integrar a biodiversidade em processos de ordenamento territorial para reduzir a perda em áreas de alta importância, respeitando os direitos dos povos indígenas.
  • Meta 2: Restaurar pelo menos 30% das áreas degradadas de ecossistemas para aumentar a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos.
  • Meta 3: Conservar e gerir 30% das áreas terrestres e marinhas, reconhecendo territórios indígenas, garantindo que o uso sustentável seja compatível com a conservação.
  • Meta 4: Proteger espécies ameaçadas, reduzindo o risco de extinção e mantendo a diversidade genética.
  • Meta 5: Garantir que o uso de espécies silvestres seja sustentável e legal, minimizando a superexploração.
  • Meta 6: Reduzir os impactos de espécies exóticas invasoras em pelo menos 50% até 2030.
  • Meta 7: Reduzir a poluição a níveis não prejudiciais à biodiversidade, incluindo a redução de nutrientes e pesticidas.
  • Meta 8: Minimizar os impactos das mudanças climáticas na biodiversidade, aumentando sua resiliência.
  • Meta 9: Assegurar que o manejo de espécies silvestres traga benefícios sociais e econômicos, especialmente para os mais dependentes da biodiversidade.
  • Meta 10: Promover práticas sustentáveis em agricultura, aquicultura, pesca e silvicultura.
  • Meta 11: Restaurar e melhorar as contribuições da natureza para as pessoas, como regulação do clima e polinização.
  • Meta 12: Aumentar a área e qualidade de espaços verdes em áreas urbanas, integrando a biodiversidade no planejamento urbano.
  • Meta 13: Assegurar a repartição justa dos benefícios dos recursos genéticos, facilitando o acesso apropriado.
  • Meta 14: Integrar a biodiversidade em políticas e estratégias de desenvolvimento em todos os níveis de governo.
  • Meta 15: Incentivar empresas a monitorar e divulgar seus impactos na biodiversidade, promovendo padrões sustentáveis de produção.
  • Meta 16: Promover escolhas de consumo sustentáveis e reduzir o desperdício global de alimentos.
  • Meta 17: Implementar medidas de biossegurança e manejo da biotecnologia.
  • Meta 18: Eliminar ou reformar incentivos prejudiciais à biodiversidade, ampliando incentivos positivos.
  • Meta 19: Aumentar o financiamento para a biodiversidade, mobilizando recursos de todas as fontes.
  • Meta 20: Fortalecer a capacitação e transferência de tecnologia para a conservação da biodiversidade.
  • Meta 21: Garantir acesso a dados e conhecimentos para uma governança eficaz da biodiversidade.
  • Meta 22: Assegurar a participação equitativa de povos indígenas e comunidades locais nas decisões sobre biodiversidade.
  • Meta 23: Promover a igualdade de gênero na implementação das metas de biodiversidade.

Como se observa, todo um arcabouço jurídico nacional é necessário para o estabelecimento de políticas públicas que possam ser eficazes em favor da biodiversidade, convocando o Direito Ambiental a uma construção hermenêutica capaz de fazer frente a esse desafio. Os desafios na implementação de políticas que favoreçam a biodiversidade ressaltam a importância crucial dos seres vivos e suas interações para a manutenção da vida no planeta.

Visão de Davos e o papel da biodiversidade

Destaque-se que o Fórum Econômico Mundial de Davos, um encontro anual que reúne líderes globais, empresários, economistas e políticos para discutir os desafios e oportunidades econômicas mundiais, destacou a perda de biodiversidade como um dos principais riscos para a economia global. A biodiversidade é fundamental para a economia porque sustenta ecossistemas que fornecem serviços essenciais, como polinização de culturas, regulação do clima, purificação da água e fertilidade do solo, todos vitais para a agricultura, pesca e outras indústrias dependentes de recursos naturais. Além disso, a biodiversidade contribui para a resiliência dos ecossistemas, permitindo que eles se adaptem a mudanças e perturbem menos as cadeias de suprimentos e os mercados globais. A perda de biodiversidade pode levar a desequilíbrios ecológicos, afetando a produção de alimentos, aumentando os custos de mitigação de desastres naturais e reduzindo o potencial de inovação em setores como farmacêutico e biotecnológico. Portanto, a preservação da biodiversidade é crucial não apenas para a sustentabilidade ambiental, mas também para a estabilidade econômica global.

Spacca

Instrumentos da política ambiental já em curso, como o licenciamento ambiental, a avaliação de impactos ambientais, os índices e padrões de qualidade ambiental, as unidades de conservação, a restauração ecológica, o pagamento por serviços ambientais, o manejo florestal, a prevenção e combate a incêndios, dentre tantos outros, são exemplos importantes que sustentam a proteção da biodiversidade.

O ser humano no centro do debate

Contudo, há um elemento crucial nesse debate que precisa ser destacado. Embora as metas estabelecidas frequentemente posicionem o ser humano como um agente de ação no desenvolvimento de estratégias, ele não é reconhecido como o elemento central para o qual as ações sejam voltadas. Em outras palavras, as políticas de proteção da biodiversidade tendem a focar predominantemente nos elementos naturais — como flora, fauna, água e clima — sem integrar plenamente a figura humana como um beneficiário ativo de ações estratégicas.

Faz-se crucial que se construam ações direcionadas a compreender a dinâmica humana na formação de pensamentos e comportamentos, essenciais para promover uma mudança de padrões tanto a nível individual quanto coletivo. Sem essa integração, perde-se a oportunidade de alinhar as políticas ambientais à realidade e às necessidades humanas, o que é vital para alcançar transformações duradouras e efetivas.

A análise de como pensamentos, valores e emoções influenciam comportamentos ambientais é fundamental para entender como dar escala na proposição de metodologias sociais de desenvolvimento de uma nova consciência voltada à garantia de eficácia de políticas públicas e ações voltadas a conservação da biodiversidade, sustentabilidade e preservação do meio ambiente. Esse entendimento — de que o ser humano deve ser o centro dos debates — é essencial para a formulação de estratégias e propostas que impulsionem uma verdadeira transformação na realidade ambiental e climática planetária.

Para promover uma transformação verdadeiramente disruptiva na forma como os seres humanos se relacionam com o meio ambiente, é necessário um profundo despertar de consciência que leve a abandonar a mentalidade de dominação sobre a natureza e adotar uma visão de integração com ela. Essa mudança implica reconhecer que não estamos separados ou acima do planeta, mas somos parte integrante dele.

Essa nova consciência deve inspirar uma reavaliação dos valores e prioridades que guiam nossas ações individuais e coletivas. Em vez de explorar os recursos naturais de forma predatória, devemos buscar coexistir harmoniosamente com os ecossistemas, respeitando seus limites e contribuindo para sua regeneração. Isso pode ser alcançado através da adoção de práticas sustentáveis que imitam os ciclos naturais, promovendo a biodiversidade e a saúde dos ecossistemas.

Além disso, a integração com a natureza requer uma reconfiguração das estruturas sociais e econômicas para que sejam mais inclusivas e respeitem a interdependência entre todas as formas de vida. Ao abraçar essa nova consciência, podemos construir um futuro em que o progresso humano não seja medido apenas pelo crescimento econômico, mas pela capacidade de viver em harmonia com o planeta, garantindo a saúde e o bem-estar de todas as suas criaturas. Essa transformação não é apenas necessária, mas urgente, para assegurar que as gerações futuras herdem um mundo onde a vida floresce em toda a sua diversidade.

Para que a transformação disruptiva na consciência ambiental se concretize, é essencial que o direito e as estruturas jurídicas também evoluam de sua concepção tradicional de comando, controle e punição para um modelo mais humanizado e integrador. Esse novo paradigma jurídico deve se fundamentar na promoção de relações harmoniosas entre seres humanos e a natureza, incorporando princípios de conciliação, integração de relações, psicologia e pensamento sistêmico.

O direito humanizado reconhece que a proteção ambiental não pode ser eficaz se baseada apenas em sanções e restrições. Em vez disso, deve fomentar a cooperação e o entendimento mútuo, incentivando práticas regenerativas que beneficiem tanto o meio ambiente quanto as comunidades humanas. Isso implica em criar mecanismos jurídicos que facilitem o diálogo e a conciliação entre diferentes atores, diferentes consciências e diferentes interesses, promovendo soluções que sejam justas e sustentáveis.

Incorporar a psicologia social e o pensamento sistêmico no direito significa entender as motivações humanas e as interconexões complexas que caracterizam os sistemas sociais e ambientais. As políticas jurídicas devem ser desenhadas para considerar os impactos a longo prazo das ações humanas, promovendo uma visão holística que integra aspectos psicológicos, conscienciais, econômicos, sociais e ambientais. Ao adotar essa abordagem revolucionária, o direito pode se tornar um catalisador poderoso para a transformação social e ambiental, promovendo um futuro em que a justiça, a equidade, a biodiversidade e a sustentabilidade sejam os pilares de uma convivência pacífica e próspera entre todos os seres vivos.

 

Autores

  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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