Opinião

Antecipação de voo e prioridade para idosos no transporte aéreo

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

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19 de outubro de 2024, 17h25

Era uma manhã de segunda-feira em Congonhas. Como de costume, o aeroporto fervilhava de passageiros ansiosos por chegar a seus destinos. Também como de hábito, longas filas de pessoas interessadas em antecipar seus voos formavam-se nas proximidades dos portões de embarque.

Até então, nada de novo… A princípio, “Tudo como dantes no quartel de Abrantes”. Mas, naquela manhã, um simpático idoso de bengala, na longevidade de seus oitenta e tantos anos, destoava do grupo. Como os demais, ele pretendia antecipar seu voo com destino ao Santos Dumont. Chegara, por algum motivo, algumas horas antes do horário previsto e acreditava que teria prioridade sobre os demais, que em sua maioria contavam com um terço de sua idade e com um vigor físico que contrastava com a frágil condição de saúde daquele octogenário.

Saudosamente, o afável senhor rememorava os tempos da antiga ponte aérea, quando a compra de um bilhete dava ao passageiro o direito de embarcar no primeiro voo disponível. E isso sem filas, sem tempo de espera e sem outros obstáculos infundados. O idoso passageiro estava visivelmente cansado e um tanto quanto constrangido por ter que ficar de pé junto aos outros postulantes por um assento na aeronave, competindo com jovens que tinham idade para serem seus netos ou bisnetos.

Parecia estar convicto de que seria o primeiro a ser chamado pelo pessoal de terra. Ledo engano: somente foram disponibilizados sete lugares remanescentes, e todos foram rapidamente preenchidos pelos felizardos possuidores de cartões fidelidade, conforme o status de cada um. Deu para perceber que o idoso, que não tinha esse privilégio, ficou claramente frustrado por não poder embarcar. Sem reclamar, e com uma fidalguia que quase não se vê mais por aí, ele aguardou outras oportunidades, todas em vão.

Idoso faz check-in em terminal de autoatendimento em aeroporto

Embarcou, por fim, em seu próprio voo, três ou quatro horas depois, com a triste certeza de que não era uma prioridade, e que o Brasil não é um país para idosos, a despeito de algum alento trazido pelo Estatuto da Pessoa Idosa — Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 — quanto a essa temática. De fato, não há como negar que, nas duas últimas décadas, os idosos até conquistaram alguns importantes direitos por aqui. Todavia, muitos outros ainda precisam ser debatidos e inseridos em nossa legislação, inclusive os que aludem ao serviço de transporte aéreo, para ficar em apenas um exemplo.

Fidelidade x idade

Nos últimos anos, as empresas aéreas passaram a vender certos bilhetes — as chamadas tarifas promocionais — que não são remarcáveis e muito menos reembolsáveis. Significa dizer que, se por qualquer motivo, o passageiro não puder comparecer no dia e hora do seu embarque, perderá o bilhete e seu respectivo valor. Seja um jovem no auge de sua forma física, seja um idoso com mais de 80 anos, todos serão igualmente penalizados por eventos que nem sempre podem controlar.

Os idosos, por várias razões, estão muito mais sujeitos a contratempos do que os jovens, o que requer uma atuação por parte do Estado brasileiro no sentido de amenizar as consequências decorrentes dessa dura constatação.

Em se tratando de transporte aéreo, a atual legislação protetiva limita-se a lhes outorgar prioridade em filas de check-in e de embarque, nada mais. Aliás, a mesma prerrogativa que os passageiros jovens participantes dos programas de fidelidade das companhias aéreas possuem.

Sim, pois basta obter um cartão de crédito topo de linha — os Black, Infinity, Platinum etc. — para eles, em relação à matéria ora discutida, superarem os próprios idosos e outros grupos vulneráveis em termos de tratamento. Se é certo que os participantes contemplados obtiveram essa conquista a partir de sua fidelidade à empresa, é justo dizer que os idosos deveriam ter o mesmo direito incorporado ao seu patrimônio jurídico pelo critério da idade. Tal paradoxo parece afrontar a própria Constituição Cidadã.

Uma reportagem publicada no site da Agência Brasil revela que “apenas 2% da ocupação nas aeronaves brasileiras é de pessoas com mais de 65 anos de idade, sendo que a população brasileira nessa faixa etária é de 10% do total” (“Aposentados Poderão Comprar Passagem Aérea por Até R$ 200 Cada Trecho”; Agência Brasil, 24 de julho de 2024).

Certamente esse percentual baixíssimo também tem a ver com o fato de o Capítulo X — que trata do tema Transporte — do Estatuto da Pessoa Idosa não assegurar qualquer reserva de vaga para pessoas idosas no transporte aéreo, tal como ocorre no rodoviário, no ferroviário e no aquaviário (artigo 40 da Lei nº 10.741/2003).

Matéria que, aliás, tem sido foco de algumas proposições legislativas, como o Projeto de Lei (PL) nº 3.912/2019, que se encontra apensado ao PL nº 163/2007, aguardando parecer na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, e cuja essência altera o artigo 40 do Estatuto da Pessoa Idosa, que passaria a vigorar acrescido dos parágrafos 3º e 4º:

“Art. 40 ……………………………………………………………………………..

§1º ………………………………………………………………………………….

§2º ………………………………………………………………………………….

§3º A reserva de 3 (três) vagas gratuitas em cada aeronave para idosos acima de 60 anos; (NR);

I – A gratuidade será concedida aos idosos com renda de até dois salários mínimos; (NR);

II – Após excedidas as três vagas para idosos acima de 60 anos é garantido a eles o desconto de 50% sobre o valor da passagem aérea; (NR);

§4º – Pessoas com renda de até dois salários mínimos em deslocamento para tratamento de saúde em outro estado da federação será garantido o desconto de 50% sobre o valor da passagem, em caso de necessidade de acompanhante o mesmo desconto será garantido também a ele. (NR).”

Como se verá em seguida, o pleito ora desenvolvido, comparado ao teor do PL nº 3.912/2019, nem chega a ir tão longe. O que se postula aqui é simplesmente a possibilidade de o idoso antecipar o horário de seu voo sem custo algum, qualquer que seja o tipo de tarifa que ele tenha adquirido, desde que o faça pouco tempo antes do horário de embarque.

Logicamente que isso também estaria condicionado à disponibilidade de assento na aeronave, não havendo, portanto, qualquer ônus para as empresas aéreas, uma vez que a ocupação não teria atingido os 100%. Ademais, ele também teria prioridade na antecipação de voo em relação a todos os outros passageiros, inclusive quanto aos detentores das classes mais elevadas dos cartões de fidelidade.

Spacca

Prioridade, aliás, é uma palavra que traduz muito da essência protetiva consagrada pelo aludido Estatuto. Por exemplo, o artigo 71 da Lei n° 10.741/2003 prevê o seguinte: “É assegurada prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer instância”; o parágrafo 5º do mesmo dispositivo, por sua vez, preconiza que “dentre os processos de pessoas idosas, dar-se-á prioridade especial aos das maiores de 80 (oitenta) anos”.

Por que, então, não outorgar mais um direito à pessoa com idade igual ou superior a 60 anos: o direito à antecipação do voo, na forma mais ou menos como sugerida nestas linhas, bem como a prioridade em relação aos demais passageiros?

Trata-se de uma proposta simples — e que obviamente pode ser aperfeiçoada —, mas que teria o poder de prestigiar aqueles que já deram seu suor pelo país. É necessário evoluir e reconhecer que ainda há muito a ser feito em prol de nossos amados entes que já não têm a vitalidade da juventude, e que precisam voltar a acreditar no Brasil.

Autores

  • é desembargador federal, diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25), ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

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