Diário de Classe

A inquietude diante da jurisprudencialização do Direito

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19 de outubro de 2024, 8h00

Na coluna da semana passada, o colega Thales Delapieve foi visceral e dissecou o caso Pearce v. Brooks (aqui). Convido todos a ler a íntegra do texto porque demonstra como o julgamento de um caso “trivial” envolvendo uma disputa contratual travada entre um artesão e uma prostituta no século 19 é capaz de delinear princípios que nortearam a interpretação do Direito Comercial por mais de um século. De todo modo, a maior virtude do texto do colega para o de hoje é demonstrar a complexidade envolvida no trato com os precedentes, que passa por uma análise cuidadosa dos fatos e dos elementos jurídicos que nortearam a decisão anterior para viabilizar a apreciação correta de um novo caso.

Sendo mais claro, os precedentes não tornam mais fácil a interpretação do Direito (ou não deveriam facilitar). A correta apreciação de um novo caso passa por uma análise cuidadosa dos fatos e dos elementos jurídicos que nortearam uma decisão anterior, sendo este o momento em que ela se torna um precedente. Assim, não surge da imposição autoritária de um entendimento posto com a finalidade de vincular as decisões futuras.

Sob esta linha de raciocínio, compreende-se a frase de Lenio Streck: “precedente não tem certidão de nascimento”. No entanto, a doutrina brasileira, ao tratar de precedentes, vem implantando uma teoria chamada pelo professor de “precedentalista”. Esta sustenta a possibilidade de certificarmos o nascimento dos precedentes, mas o empreendimento, como exploraremos na sequência, encontra óbices filosóficos e atinge o cotidiano dos cidadãos no Estado de Direito Contemporâneo.

A teoria “precedentalista” tem em Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero seus principais representantes. Em diversos textos, o professor Lenio Streck trata do tema, valendo o destaque para o seu Precedentes Judiciais e Hermenêutica [1], livro no qual aprofunda sua crítica. De todo modo, vale a recapitulação dos problemas da teoria precedentalista.

A pretensão da mencionada teoria é superar a indeterminação do Direito. Explica-se: para tal corrente doutrinária, o Direito pode ser interpretado de forma a lhe ser atribuído qualquer sentido. Ocorre que tal equivocidade precisa ser contornada de forma a não prejudicar o Direito enquanto regulador das relações sociais.

Trata-se, portanto, de uma visão cética a respeito do Direito, que depende da fixação do seu sentido por um intérprete fundamental e final, uma autoridade capaz de sacramentar o real significado do direito. Marinoni é expresso em suas palavras ao tratar da necessidade de “declarar o sentido exato da lei”, atividade pela qual caberia ao Judiciário desenvolver o ordenamento jurídico junto do Legislativo. Este papel cabe às chamadas “Cortes de Vértice” e implica a aceitação das definições da corte pelos demais tribunais, que se bastariam em integrar “um sistema que garanta a correção das decisões que dele discrepem, dirigida ao passado” [2].

Não há como responder a questões que nem existem

Há aqui uma contradição: tem-se o Direito por indeterminado, mas aposta-se na fixação do seu sentido por uma autoridade. Mais precisamente, a aposta é de que o mencionado “sentido exato da lei” esteja fixado em enunciados gerais e abstratos, como as súmulas, que serviriam de respostas prontas para problemas futuros, inclusive. E tal pretensão não só orienta a teoria precedentalista na busca por segurança jurídica e isonomia como vem estampada já no anteprojeto do Código de Processo Civil de 2015: “Essa é a função e a razão de ser dos tribunais superiores: proferir decisões que moldem o ordenamento jurídico, objetivamente considerado. A função paradigmática que devem desempenhar é inerente ao sistema” [3].

Ou seja, para além da contradição de fixar o sentido do Direito indeterminado, a teoria precedentalista incorre em uma incoerência filosófica: sob uma perspectiva hermenêutica e tomando por referência teorias interpretativistas como a Crítica Hermenêutica do Direito, não há como responder a questões jurídicas que sequer existem. Cada caso demanda uma anamnese e o revolvimento do chão linguístico para o desvelamento da norma capaz de orientar a solução jurídica adequada, ficando nos termos utilizados pelo professor Lenio Streck.

Ao projetar as respostas antes das perguntas, a teoria precedentalista acaba por propor uma atuação do Judiciário como legislador positivo. Não se trata de uma formação genuína de precedentes judiciais, ao menos como ocorre em países inseridos na tradição da common law, mas de uma institucionalizada violação da separação dos poderes. Trata-se do ápice do realismo jurídico no ordenamento brasileiro. Definitivamente, o Direito deixa de ser o Direito para se transformar no que os tribunais dizem que o Direito é.

Deste caldo, tem-se a jurisprudencialização do Direito estabelecida no Brasil, que, aliás, será debatida em novembro, no VII Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito. A busca incessante por segurança jurídica e, mais uma vez mencionando o termo utilizado por Marinoni, “calculabilidade” do Direito se traduziu na importação de uma stare decisis transfigurada aos moldes brasileiros, que admite violar a separação dos poderes e permite ao Judiciário legislar ao fixar enunciados com força obrigatória geral e vinculante para o futuro com o objetivo claro de atribuir maior eficiência ao judiciário a fim de reduzir o número de processos.

Ao mesmo tempo que almeja a redução do número de processos com a fixação do sentido exato do direito, lembre-se, a teoria precedentalista o considera indeterminado. Assim, a autoridade que definiu as respostas prêt-à-porter pode alterar o Direito, amparada em categorias como o livre convencimento, que traduzem o privilégio cognitivo do juiz amparado pelo sujeito solipsista da modernidade.

Com efeito, é justamente esta postura que legitima falácias como precedentes persuasivos. Ora, os precedentes são de fato vinculantes ou meramente persuasivos. Nota-se o seguinte: os precedentes são vinculantes para garantir a certeza do Direito e reduzir o número de processos até que haja algum motivo relevante não aplicar o entendimento. Veja-se, não se nega a possibilidade de operar um distinguishing ou um overruling, o problema é que esta postura normalmente prejudica isonomia que se espera do Direito, o que pode ser retratado nos casos de Deolane Bezerra e Gusttavo Lima, conforme o recente texto do professor Lenio Streck (aqui).

Modelo precedentalista alimenta o monstro que pretende combater

A discussão acerca do correto uso dos precedentes não se limita ao plano teórico, pois afeta o cotidiano dos juristas e, consequentemente, dos cidadãos. Embora a pretensão da teoria precedentalista seja a “calculabilidade” do Direito de modo a garantir uniformidade e isonomia, com a redução do número de processos, isso nem sempre se concretiza. De fato, por vezes incrementa a demanda do Judiciário ao violar frontalmente o direito dos jurisdicionados.

A situação relatada acima pode ser ilustrada em diversas situações aparentemente simples. O artigo 373, I, do Código de Processo Civil é bastante claro ao atribuir o ônus de comprovar os fatos constitutivos do direito alegado em juízo ao autor da ação. Pensando em uma execução fiscal de IPTU, por exemplo, isso implica que a fazenda pública deve anexar ao feito a prova de que enviou o respectivo carnê do tributo ou publicou um edital de chamamento para quitar a obrigação tributária, ao menos no caso de ser controverso o próprio lançamento do tributo. A Certidão de Dívida Ativa até pode gozar de presunção de legitimidade, mas é relativa e pode ser questionada pelo contribuinte que foi surpreendido diretamente com a citação em uma execução fiscal.

Esta questão envolvendo o ônus probatório foi enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça ao fixar o enunciado nº 397 da sua súmula: “O contribuinte do IPTU é notificado do lançamento pelo envio do carnê ao seu endereço. Ocorre que a ânsia por respostas prontas e acabadas leva um desembargador a, monocraticamente, negar provimento a um agravo de instrumento em que se argumenta justamente com o fato de a administração pública municipal não ter feito prova do envio do carnê nem da publicação do edital para pagamento. Pior, o decisum atribui ao contribuinte o ônus de produzir prova diabólica ao consignar:

“Outrossim, no julgamento do Recurso Especial n. 1.114.780/SC (Tema n. 248), também submetido à sistemática dos recursos repetitivos, a Corte da Cidadania fixou entendimento no sentido de que, em se tratando de tributos com lançamento de ofício, cuja formalização do crédito independe de processo administrativo prévio e com notória periodicidade, a notificação acerca do lançamento é presumida, cabendo ao contribuinte e não ao Fisco, comprovar que não recebeu a guia de recolhimento.”

Ficam as perguntas: Como produzir tal prova? Como distinguir o caso do “precedente” ou mesmo explicar o “precedente” sem dissecá-lo?

O precedente, com a devida vênia, foi aplicado de forma equivocada, pois o entendimento, na hipótese de não ser comprovado o lançamento do tributo pelo envio do carnê ou publicação do edital, implicaria o reconhecimento da nulidade do título em execução e, consequentemente, do processo nele lastreado. De todo modo, a ânsia por respostas prontas não vem reduzindo o número de processos/demanda jurisdicional, no qual foram interpostos novos recursos que incluem, até o momento, embargos de declaração, agravo interno e recurso especial, sem contar outros instrumentos jurídicos a serem possivelmente manejados, como agravo em recurso especial, embargos à execução fiscal, apelação em embargos à execução fiscal e afins.

Em suma, aponta-se aqui que o modelo precedentalista alimenta o monstro que se propõe a combater: a avassaladora demanda direcionada ao Judiciário.

Na mesma linha, em outro caso semelhante, foi constatada a nulidade de uma Certidão de Dívida Ativa porque não permitia ao contribuinte identificar propriamente o que lhe estava sendo exigido. A matéria foi classificada como singela e realmente parece óbvio atestar a nulidade de uma execução fiscal nestes termos. O surpreendente no caso é: a decisão que reconheceu a nulidade foi proferida depois de 16 anos de tramitação processual, na apelação em face da sentença que julgou os embargos à execução fiscal. Ou seja, uma nulidade evidente só foi reconhecida após o manejo de exceção de pré-executividade, múltiplos embargos de declaração, agravo de instrumento, recurso especial, agravo em recurso especial, embargos à execução fiscal e apelação em embargos à execução fiscal.

Por fim, vale comentar um último exemplo que retoma o caso Pearce v. Brooks do início deste texto e demonstra como nenhum precedente da teoria precedentalista se sustentaria por tanto tempo no Brasil.

O enunciado 516 da súmula do Supremo Tribunal Federal é um bom exemplo para tratar da teoria precedentalista: “O Serviço Social da Indústria (SESI) está sujeito à jurisdição da Justiça estadual”. O precedente é de 1969, mas o enunciado não contempla o motivo para a conclusão: a natureza de pessoa jurídica de direito privado não integrante da administração pública é que sustentou a definição acerca da competência. Mesmo diante da orientação vinculante, um juiz estadual tomou a liberdade de promover um distinguishing à brasileira: em uma linha afastou o precedente por ser anterior à Lei nº 11.457/2007, que em nada alterou a natureza jurídica do Sesi, para, convenientemente, despachar o processo para a Justiça Federal. Os exatos termos do juízo foram: “Por fim, a súmula nº 516 do STF é 1969 bem anterior a norma acima citada”.

Claro, a situação levou ao manejo do respectivo Agravo de Instrumento e ao provimento do recurso para definir a competência da Justiça Estadual para o julgamento do processo. De todo modo, é mais um caso que retrata as idiossincrasias do sistema precedentalista e serve de amostra para os argumentos típicos deste (perverso) sistema para a supressão de direitos fundamentais.

Os relatos deste texto apenas evidenciam como as discussões teóricas são pertinentes e afetam o cotidiano dos cidadãos, bem como reforçam a essencialidade do fator stoic mujic aos advogados frente às idiossincrasias do sistema precedentalista. O professor Lenio Streck explica no que consiste o fator em verbete próprio no seu Dicionário Senso Incomum [4], mas basta aqui adiantar que trata da postura daquele que segue firme e forte para encarar as adversidades do cotidiano forense, sempre pautado pela incansável defesa dos interesses dos seus clientes.

Resta ao advogado se manter inquieto frente às respostas prontas. O fator stoic mujic parece o remédio correto para adestrar o monstro combatido pela teoria precedentalista. Claro, sempre aliado a professores que alimentem a angústia, nos moldes propostos pelo professor Lenio Streck há, pelo menos, dez anos (aqui).

 

* Este texto vem especialmente recheado de referências ao mestre Lenio Streck em homenagem à recente passagem do Dia do Professor. Ele personifica este modelo ideal de professor ao instigar, diariamente, todos os colunistas deste Diário de Classe!

 


[1] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 63.

[3] BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto do novo CPC, 2010. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496296/000895477.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 15 out. 2024.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito – São Paulo: Editora Dialética, 2023.

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