Opinião

Capacitismo judicial: a prevalência do diagnóstico sobre a pessoa

Autor

  • Guilherme de Almeida

    é autista doutorando (bolsista Capes de Excelência Acadêmica) e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil) único pesquisador brasileiro membro do Stanford Neurodiversity Project onde atua nos Comitês de Inclusão no Ensino Superior e Inclusão no Mercado de Trabalho e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Paideia da Faculdade de Educação da Unicamp e do Comitê dos Direitos de Pessoas com Deficiência no âmbito Judicial do Conselho Nacional de Justiça.

    Ver todos os posts

18 de outubro de 2024, 7h07

A Emenda Constitucional 65/2010 alterou o artigo 227 da Constituição, que passou a constar com o seguinte enunciado:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Os direitos mencionados são expressões dos direitos humanos positivados na Constituição, sujeitos ao princípio da indivisibilidade, o que significa que não há hierarquia entre eles; todos são igualmente fundamentais e devem ser garantidos de maneira integrada.

Embora possam ser interdependentes, ou seja, a realização de um direito pode depender da efetivação de outro, nenhum deles pode ser suprimido em detrimento de outro. Assim, a proteção e promoção desses direitos constituem uma obrigação inalienável e conjunta da família, do Estado e da sociedade.

No entanto, observamos constantemente, especialmente em decisões judiciais, a violação do princípio da indivisibilidade dos direitos, em que o direito à educação de crianças e adolescentes autistas é frequentemente suprimido em favor de uma suposta prevalência da saúde sobre a educação.

Essa perspectiva se baseia em uma visão patologizante equivocada, que trata crianças autistas como se fossem essencialmente doentes. Essa abordagem não apenas reforça estigmas, mas também desconsidera a importância da inclusão escolar como parte fundamental do desenvolvimento integral dessas crianças, negando-lhes oportunidades de socialização, aprendizado e crescimento em ambientes educativos, sobretudo na primeira infância.

No ordenamento jurídico brasileiro, a criança é reconhecida como sujeito de direitos, com potencialidades únicas, e seu desenvolvimento deve ser respeitado em seu próprio ritmo e de acordo com sua identidade. No caso de crianças e adolescentes autistas, essa identidade é protegida por uma camada adicional de amparo jurídico, assegurada pela incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência à Constituição.

Nesse sentido, o direito à educação não se resume à garantia da escolarização, mas está intrinsecamente ligado à humanização das crianças, um conceito que, segundo o educador Bernard Charlot, vai além da mera aquisição de conhecimentos formais e abrange o processo pelo qual o indivíduo se torna plenamente humano.

Para Charlot, a humanização é o desenvolvimento da capacidade de reconhecer a si mesmo e aos outros como sujeitos, em uma relação de troca e significação mútua. Esse processo envolve o crescimento pessoal e social, onde cada indivíduo se constitui por meio de experiências, interações e o reconhecimento de sua identidade própria e do outro.

Crianças autistas

Já a hominização refere-se a um aspecto mais amplo e antropológico, descrito por Charlot como o processo pelo qual os seres humanos se constituem como espécie ao longo da história, desenvolvendo linguagem, cultura, valores e formas de organização social. É uma construção coletiva e histórica, onde o indivíduo, ao se inserir no contexto educacional e social, participa desse legado humano e o transforma.

Jcomp/Freepik

No caso das crianças autistas, humanização significa reconhecer e respeitar suas formas singulares de ser, aprender e interagir, e não reduzir sua existência a um diagnóstico ou a necessidades terapêuticas. A educação, portanto, precisa ir além da instrução técnica, criando espaços que permitam que essas crianças desenvolvam suas potencialidades, se expressem e participem da comunidade escolar como sujeitos plenos. Dessa forma, o direito à educação cumpre seu papel de promover a humanização ao incluir, valorizar e dar significado às vivências e identidades neurodivergentes, em uma dinâmica contínua de hominização que enriquece a própria sociedade. E não, não se trata apenas de discurso!

Pedagogia na Educação Infantil

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) define a Educação Infantil como a primeira etapa da educação básica no Brasil, colocando a criança no centro do próprio desenvolvimento e valorizando sua curiosidade, autonomia e capacidade de explorar e interagir com o mundo. A brincadeira é considerada essencial nesse processo, pois permite que a criança experimente, explore e atribua significado ao que a rodeia. O aprendizado se constrói por meio das interações sociais, envolvendo outras crianças, adultos e o ambiente, favorecendo o desenvolvimento de habilidades socioemocionais e cognitivas.

A infância é uma fase singular, tanto sob uma perspectiva antropológica quanto jurídica, não sendo uma simples preparação para a vida adulta, mas uma etapa plena de significado e experiências. A criança não é apenas um ser “em formação”, mas uma pessoa completa, presente no aqui e agora. Para a pedagogia, essa fase transcende a ideia de transição; a criança não é uma lagarta ou pupa esperando para se tornar algo de valor no futuro, mas um ser que já possui beleza e importância em sua própria condição.

Mesmo assim, é comum que se interprete a infância como um período em que a criança aguarda o momento de “ser alguém” no futuro, quando, na realidade, ela já é protagonista de sua própria história. Vive o presente com intensidade e curiosidade, contribuindo, por meio de cada expressão, pergunta e descoberta, para transformar as culturas e comunidades ao seu redor.

A pedagogia na Educação Infantil regular reconhece a criança como um ser competente, curioso e capaz de construir conhecimento a partir de sua exploração do mundo. O aprendizado se desenvolve de forma significativa por meio de projetos de longa duração, orientados pelos interesses das próprias crianças, estimulando a investigação e a experimentação.

Para guiar a prática pedagógica, a BNCC organiza os objetivos de aprendizagem em cinco campos de experiência: “O Eu, o Outro e o Nós”, que incentiva a construção da identidade e as interações sociais; “Corpo, Gestos e Movimentos”, que favorece a expressão física e a exploração do corpo; “Traços, Sons, Cores e Formas”, que desperta a sensibilidade artística por meio de diversas manifestações criativas; “Escuta, Fala, Pensamento e Imaginação”, que destaca a comunicação e o pensamento imaginativo; e “Espaços, Tempos, Quantidades, Relações e Transformações”, que integra conceitos espaciais, temporais e matemáticos de maneira conectada ao cotidiano.

Spacca

A pedagogia da escuta é um princípio fundamental na BNCC. O educador, nesse contexto, observa e dialoga com as crianças para compreender seus interesses e necessidades, permitindo que o conhecimento se construa a partir das vivências e interações. A escola deve proporcionar experiências significativas e projetos alinhados com a realidade e a cultura das crianças. O envolvimento da família e da comunidade é essencial para enriquecer essas experiências e fortalecer o processo educativo.

A prática pedagógica deve respeitar a singularidade e o ritmo de cada criança, evitando comparações e padrões rígidos. A Educação Infantil, segundo a BNCC, é um espaço de acolhimento, descoberta e desenvolvimento integral, onde o brincar e a convivência são os principais meios de aprendizado. Assim, a escola se torna um ambiente onde a criança vive experiências plenas no presente, sem ser vista apenas como uma preparação para o futuro.

Educar não é preparar crianças para se ajustarem a expectativas sociais futuras, mas proporcionar vivências significativas no presente. A educação se revela como uma jornada de descoberta, autonomia e expressão, onde cada criança encontra espaço para traçar seu próprio caminho. A infância, assim, deixa de ser uma promessa de algo por vir e se torna uma celebração plena da vida — um momento único e insubstituível em que a criança não se prepara para viver: ela vive, com toda a intensidade, beleza e liberdade que lhe são essenciais. Resumir a infância de crianças autistas a patologização e a necessidade de tratamentos não é apenas uma violação da constituição federal, mas um ato desumanizador, que priva a criança do direito de ser e existir em sua autenticidade.

Equívoco técnico

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), em seu artigo 24, estabelece o direito à educação inclusiva, orientando que o foco deve estar na adaptação do ambiente educacional e na formação adequada de professores e gestores escolares para garantir a inclusão, e não na tentativa de adaptar a pessoa com deficiência a um sistema educacional excludente ou capacitista.

Ao recorrer a profissionais da saúde para decidir sobre questões pedagógicas, juízes e tribunais desconsideram a natureza interdisciplinar e especializada da educação, ignorando o papel fundamental dos educadores na construção de práticas inclusivas.

Esse equívoco técnico é mais do que uma falha de entendimento; é uma afronta direta à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que tem força constitucional no Brasil. Ao reforçar esse olhar patologizante da neurodiversidade, essa abordagem perpetua a ideia de que a pessoa com deficiência precisa ser “consertada” ou “ajustada” para se enquadrar em um padrão de normalidade que só existe no imaginário capacitista.

Autores

  • é autista, doutorando (bolsista Capes de Excelência Acadêmica) e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil), único pesquisador brasileiro membro do Stanford Neurodiversity Project, onde atua nos Comitês de Inclusão no Ensino Superior e Inclusão no Mercado de Trabalho e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Paideia da Faculdade de Educação da Unicamp e do Comitê dos Direitos de Pessoas com Deficiência no âmbito Judicial do Conselho Nacional de Justiça.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!