Opinião

Pela positivação do incidente de investigação de natureza preparatória no processo de execução

Autor

  • Eduardo Mendes Zwierzikowski

    é sócio de Prolik Advogados em Curitiba (PR) com atuação em contencioso estratégico e direito público mestrando em Direito pela Escola de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em Direito Administrativo bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro da 2ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PR.

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17 de outubro de 2024, 20h58

O último relatório “Justiça em Números”, apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2023, aponta que os processos judiciais na fase de execução constituem a maioria absoluta de casos em tramitação no país, representando mais da metade dos processos (52,3%).

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Papéis, processos, pilha de documentos, contratos, acordos, lentidão da Justiça, morosidade

A morosidade e falta de perspectiva de solução integram o fenômeno cunhado de “gargalos da execução”. Uma execução tramita, em média, cinco anos e oito meses até o seu primeiro arquivamento ou baixa, sendo esse procedimento aquele que possui a maior “taxa de congestionamento do Poder Judiciário”.

Como resposta a esse problema, foram criados nos últimos anos diversos sistemas capazes de localizar a existência de bens do devedor. Apenas como exemplo, destacam-se o Renajud, Bacenjud, CCS-Bacen, Simba, Sniper, Infojud, SREI, CNIB, Navejud, Saci (Anac) e Prevjud. É também tendência a utilização de meios extrajudiciais, como ocorre na alienação fiduciária.

Sem adentrar nas especificidades de cada uma das ferramentas citadas, constata-se que o Poder Judiciário tem à disposição mecanismos eletrônicos capazes de localizar ativos financeiros, veículos, embarcações, aeronaves, movimentações bancárias, imóveis, benefícios previdenciários. Enfim, todo tipo de movimentação patrimonial realizada por um devedor.

Mesmo assim, as execuções se revelam frustradas basicamente por duas razões, pois ou o devedor efetivamente não tem patrimônio suficiente para liquidar a dívida, ou emprega meios cada vez mais sofisticados de organizar o seu patrimônio, de formas lícitas ou não, para que os bens particulares dos sócios não sejam atingidos por dívidas da empresa, no caso de débitos da pessoa jurídica, ou que o devedor pessoa física permaneça sem qualquer ativo em seu nome, quando este figurar diretamente no polo passivo da ação.

Também em resposta à “blindagem” ilícita, o sistema jurídico novamente fornece algumas soluções, como a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ), que visa a ignorar essas estruturas societárias, nos casos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, quanto às dívidas cíveis, ou quando essas pessoas jurídicas se constituam como obstáculos ao ressarcimento de consumidores e pagamento de débitos trabalhistas.

IDPJ compatível com execução fiscal

No âmbito tributário, o Superior Tribunal de Justiça afetou cinco recursos repetitivos para decidir se IDPJ é compatível com a execução fiscal, na medida em que a responsabilidade de sócio, diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas são diretas nos atos praticados com excesso de poderes ou infração à lei.

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Fato é que o IDPJ, depois da reforma do Código de Processo Civil de 2015, pressupõe a citação do sócio ou da pessoa jurídica para manifestar-se a respeito do pedido e apontar as provas que entender cabíveis, no prazo de 15 dias. Ou seja, se antes de 2015 era comum o chamado “contraditório diferido”, em que primeiro se deferia a desconsideração, com base nos elementos trazidos pelo credor, para depois ouvir as razões de defesa do devedor, agora o contraditório é pleno desde o início.

Em termos de observância, os princípios do contraditório e da ampla defesa, esse é um avanço positivo que foi comemorado por processualistas de escol. Contudo, nos casos de grandes fraudes corporativas, as diligências prévias realizadas pelo credor, a partir de fontes abertas, podem ser insuficientes para a construção de um IDPJ robusto e capaz de apontar quem são os responsáveis, de fato, pelo abuso da personalidade jurídica e qual a sua extensão.

Nem sempre a comumente chamada “blindagem patrimonial” será ilícita, como referido, mas, quando é, é extremamente difícil encontrar o caminho do dinheiro e do patrimônio distribuído em holdings ou sociedades offshore para se identificar o beneficiário final de determinada pessoa jurídica, especialmente quando são fraudados balanços e criados outros mecanismos contratuais para esconder aqueles que são os sócios de fato de determinada empresa.

Toda essa incerteza é agravada pelo risco de sucumbência que a rejeição de um IDPJ gera ao credor, que pode passar a ser devedor de quantias razoáveis a título de honorários, principalmente em causas de alto valor, agora que o Superior Tribunal de Justiça passou a admitir esse tipo de condenação, no ano de 2023. E, pior, suportar o demorado processamento de um incidente para, ao final, não alcançar a almejada satisfação do seu crédito.

Recuperação da MMXSD Mineração S.A.

Por isso, chama a atenção o “incidente investigativo de natureza preparatória” utilizado na recuperação judicial da MMXSD Mineração S.A. para apurar a existência de eventual fraude e responsabilizar dirigentes da empresa, principalmente Eike Batista.

Para a apuração da fraude corporativa que se suspeitava estar em andamento, esse incidente investigativo contou com alguns procedimentos que não se amolegam ao IDPJ atualmente presente no Código de Processo Civil, porque foi necessário que ele tramitasse em segredo de justiça e contasse com o contraditório diferido para que a coleta de provas a respeito do fato investigado não fosse embaraçada pela empresa em recuperação judicial e e seus dirigentes.

Além do sigilo ex parte, foi contratado um escritório especializado no rastreamento de ativos e foram empregadas diversas diligências para investigar as movimentações financeiras, contábeis e societárias da MMXSD, com a análise de atos societários, extratos bancários, transferências de recursos ao exterior, empresas offshore, doações realizadas, venda de ativos.

Enfim, traçou-se uma retrospectiva dos principais eventos de mutação patrimonial da empresa antes do ingresso do seu pedido de recuperação judicial, que são apontados em estudo de caso produzido por André Ferreira da Rosa Rocha, no âmbito do mestrado profissional em direito da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo.

Essa bem sucedida investigação prévia à propositura do IDPJ revela que determinados atos de confusão patrimonial e o uso abusivo da pessoa jurídica só podem ser descobertos a partir de um trabalho bem executado de rastreamento de ativos, que por vezes não pode ser executado somente a partir de informações públicas disponíveis ao credor.

A quebra do sigilo bancário e fiscal, a análise de balanços e dos contratos  comerciais celebrados pela pessoa jurídica não são medidas comuns e que estão livremente acessíveis aos credores no rito normal do processo civil.

E mesmo que algumas informações desta natureza sejam juntadas ao processo, por terem sido apontadas nas ferramentas de localização de ativos mencionadas, a falta de um procedimento adequado para que esse material seja periciado de forma aprofundada, é um fator que também contribui para que estruturas complexas e ilícitas de ocultação patrimonial sejam descobertas.

Assim é que se faz necessária a positivação da modalidade de “incidente investigativo de natureza preparatória”, já utilizado na prática forense em determinados casos que, à semelhança da produção antecipada de provas, poderá servir de antecedente necessário ao IDPJ, quando, presentes os indícios de uso abusivo da personalidade jurídica, seja oportuna a realização de investigação patrimonial robusta, inclusive por meio da utilização de consultorias especializadas no rastreamento e recuperação de ativos (asset tracing), diferindo o contraditório para o devedor.

O incidente preparatório, ao passo em que conferirá ao credor a oportunidade de, antecipadamente, verificar a viabilidade de um futuro IDPJ, sem risco de sucumbência, também contribuirá para que todos os mecanismos públicos de localização de ativos sejam combinados com as melhores técnicas de perícia forense, mediante o acesso de base de dados sigilosos, desde que autorizados pelo Juízo da execução.

A proposição contida neste texto certamente não está imune a críticas, em especial daqueles que defendem com rigor o princípio da menor onerosidade ao devedor, mas a realidade dos processos de execução impõe a busca constante de soluções para diminuir os gargalos apontados pelo CNJ. Disponibilizar uma miríade de plataformas de busca de ativos às partes pode ser inócuo, quando essas informações não são adequadamente tratadas e sistematizadas.

Autores

  • é sócio de Prolik Advogados em Curitiba (PR), com atuação em contencioso estratégico e direito público, mestrando em Direito pela Escola de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em Direito Administrativo, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro da 2ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PR.

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