Opinião

O custo do apagão: a responsabilidade das concessionárias

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17 de outubro de 2024, 6h05

É inaceitável que, em pleno século 21, uma concessionária responsável por um serviço tão essencial quanto o fornecimento de energia elétrica trate os consumidores com tamanha indiferença. A multinacional italiana Enel, que deveria garantir a continuidade e a eficiência do serviço na cidade de São Paulo, tem deixado uma população inteira à mercê de apagões recorrentes, sem qualquer perspectiva de melhorias.

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Mulher com vela na mão em corte de energia

A falta de investimentos [1] para evitar interrupções e a repetição dos mesmos erros revelam uma empresa que parece não sentir os efeitos de sua negligência, perpetuando o que a análise econômica do direito identificaria como um risco moral: a ausência de incentivos para que o comportamento irresponsável seja corrigido, já que as consequências para a concessionária são mínimas frente aos prejuízos incalculáveis para os consumidores.

O risco moral torna-se auto evidente quando mais de 1,4 milhão de paulistanos [2] são deixados mais de 36 horas sem energia elétrica após a passagem de chuvas pela cidade. Sem realizar as melhorias necessárias em sua infraestrutura e os investimentos prometidos [3], a empresa parece calcular que os custos de investir em prevenção são maiores do que os custos de remediar as falhas.

Esse comportamento, extremamente negligente, perpetua um ciclo em que o serviço continua falho, os consumidores permanecem prejudicados e a empresa segue sem incentivos para mudar. Felizmente, essa situação pode ser revertida e os consumidores reparados em seus danos, justamente em razão da responsabilidade objetiva das distribuidoras de energia.

Diferente da responsabilidade subjetiva, que requer a comprovação de culpa ou dolo, a responsabilidade objetiva não requer essa análise, bastando a comprovação do dano e do nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo sofrido. Isso significa que, no caso de concessionárias de serviços públicos, como a Enel, a reparação pelos danos causados aos consumidores não depende da demonstração de que houve culpa ou negligência por parte da empresa, mas sim da ocorrência do dano e da falha na prestação do serviço.

Danos a terceiros

Os fundamentos dessa responsabilidade podem ser encontrados, inclusive, na Constituição. O artigo 37, §6° da Carta Magna estabelece que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, independentemente de culpa.

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O artigo 175 da Constituição, por sua vez, preceitua, ainda, que incumbe ao poder público a prestação de serviços públicos, seja diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, frisando, no inciso IV, a obrigatoriedade de que esse serviço seja prestado de forma adequada.

Justamente em razão disso, a Lei nº 8.987/1995 — que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos — também reforça essa obrigação. No artigo 6º, a lei impõe que toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, em conformidade com as normas pertinentes e o respectivo contrato.

De forma ainda mais contundente, a Resolução Normativa nº 414/2010 da ANEEL, em seu artigo 176, impõe que as distribuidoras de energia elétrica restabeleçam o fornecimento de energia dentro de prazos específicos, sendo o máximo de 24 horas para unidades consumidoras localizadas em áreas urbanas.

Obrigação no Código do Consumidor

O Código de Defesa do Consumidor reitera essa obrigação e responsabilidade das concessionárias. Além do artigo 14 que preceitua a responsabilidade objetiva dos fornecedores de produtos ou serviços, há também o artigo 22, que expressamente obriga os órgãos públicos, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, se forem essenciais, que sejam fornecidos de maneira contínua.

Ou seja, quando uma empresa assume a concessão de um serviço público, ela  compromete-se a prestar um serviço contínuo, eficaz e de qualidade, sob pena de responder pelos prejuízos causados em decorrência de sua proposital ineficiência.

Em casos como o da Enel, basta que o consumidor demonstre o prejuízo sofrido e o nexo causal para que a concessionária seja obrigada a indenizá-lo. Isso inclui perdas materiais, como a queima de aparelhos eletrodomésticos ou a perda de mercadorias perecíveis, e os danos morais, decorrentes do desconforto, insegurança e transtornos que essas falhas causam no dia a dia dos consumidores.

Saliente-se, por oportuno, um dos aspectos mais importantes do CDC para esse tipo de situação: a inversão do ônus da prova, prevista no artigo 6º, inciso VIII. Havendo falha na prestação de serviços, o Juízo pode determinar que seja a concessionária a responsável por provar que tomou todas as medidas necessárias para evitar a falha ou que o dano não decorreu diretamente de sua responsabilidade.

Para os consumidores, essa inversão é essencial. Muitas vezes, o consumidor não tem qualquer capacidade de produzir ou preservar provas. Afinal, a assimetria informacional entre as distribuidoras de energia e os consumidores é evidente: as empresas detém todas as informações sobre sua infraestrutura e pontos críticos, enquanto os consumidores dependem completamente de suas declarações.

Falhas na energia x danos sofridos

Entretanto, mesmo com essa ferramenta poderosa, os consumidores ainda precisam demonstrar o nexo causal direto e imediato entre a falha no fornecimento de energia e os danos sofridos. O artigo 403 do Código Civil exige que o dano seja consequência direta da interrupção do serviço. Para estabelecer essa relação, os consumidores podem apresentar provas como protocolos de reclamação, relatórios da Aneel, laudos técnicos que comprovem que o dano aos equipamentos foi causado pela interrupção de energia, e depoimentos de testemunhas.

Além dos danos diretos aos cidadãos, as falhas recorrentes no fornecimento de energia geram diversas outras externalidades negativas. Esses apagões, além de afetarem os lares, afetam, também, o comércio, a indústria, hospitais, o transporte e outros serviços essenciais. Resultado disso é um dano coletivo de grande escala. Justamente em razão da grande capacidade de dano, a responsabilidade civil das distribuidoras de energia deve ser aplicada de maneira proporcional à gravidade desses prejuízos, assegurando a reparação integral dos danos materiais e morais sofridos por todos e quaisquer os consumidores.

A Aneel, responsável pela fiscalização das concessionárias de energia, tem o poder de aplicar sanções, como multas, nos casos de descumprimento das obrigações contratuais. Entretanto, como temos visto, essas sanções administrativas parecem insuficientes para compelir as empresas a realizar melhorias substanciais no serviço, perpetuando o ciclo de apagões e prejuízos.

A conclusão inevitável é que as distribuidoras de energia, ao falharem repetidamente em prestar um serviço adequado e seguro, devem ser responsabilizadas tanto civil quanto administrativamente. O comportamento das concessionárias revela uma clara situação descrita pela teoria do risco moral, em que a falta de punições proporcionais à gravidade das falhas cria um ambiente em que a empresa não tem incentivos para corrigir sua conduta. A reparação de danos materiais e morais é um direito constitucional dos consumidores, cabendo ao judiciário garantir que esse direito seja efetivamente exercido.

Por fim, é impossível deixar de comparar a atuação da Enel com uma alegoria machadiana. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o protagonista narra sua vida sem nunca realmente assumir a responsabilidade por seus atos. Da mesma forma, a Enel, ao observar de longe os transtornos que causa, parece indiferente às vidas que afeta, alheia ao caos que provoca com suas falhas.

Tal como Brás Cubas, a concessionária segue seu curso, sempre com uma desculpa pronta para cada falha, sem nunca se comprometer com uma verdadeira solução. E assim, a vida — ou a luz — dos consumidores se apaga, enquanto a Enel segue seu caminho, repetindo os mesmos erros, deixando os cidadãos à espera de um futuro que, talvez, nunca chegue.

 


[1] Enel deixou de investir R$ 602 milhões em infraestrutura em SP, aponta Ministério Público. Acesso em 15/10/2024. Endereço: https://www.terra.com.br/economia/enel-deixou-de-investir-r-602-milhoes-em-infraestrutura-em-sp-aponta-ministerio-publico,6781c835e639a0b7ad25f2da9dd97395qxqtmh7n.html

[2] Com 1,45 milhão de clientes ainda sem luz, Enel diz que não tem previsão de retomada total e chamou equipe de outros estados. Acesso em 15/10/2024. Endereço: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/10/12/enel-nao-tem-previsao-para-retomada-da-energia-total-em-sp-e-diz-que-esta-trazendo-equipes-do-rio-e-ceara-para-agilizar-trabalhos.ghtml

[3] Enel ampliou equipe própria em 4,6% desde apagão de 2023; promessa era crescer 31%. Acesso em 15/10/2024. Endereço: https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/fernando-nakagawa/economia/macroeconomia/enel-ampliou-equipe-propria-em-46-desde-apagao-de-2023-promessa-era-crescer-31/

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