Opinião

Nulidade de interrogatório no Júri: renovação apenas do ato ou de toda a instrução?

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17 de outubro de 2024, 13h26

Partamos de uma hipótese e da consequente indagação: se reconhecida a nulidade do interrogatório no Tribunal do Júri, por ter sido o réu impedido de responder parcialmente às perguntas, deve-se anular todos os atos da sessão ou somente o referido interrogatório?

De maneira bem direta, a anulação somente do interrogatório acarretará sua renovação, mas perante um conselho de sentença diferente daquele perante o qual foi realizada a produção da prova testemunhal da sessão de julgamento anterior, criando a curiosa, mas também ilegal oportunidade, de sete pessoas leigas julgarem com base em prova oral não produzida em suas presenças.

Esta hipótese é objetável porque a sessão de julgamento é una e os jurados que votam os quesitos — que também prestam compromisso de agir com imparcialidade e de acordo com os ditames da Justiça (CPP, artigo 472) — têm de ser os mesmos que acompanham a produção da prova oral, composta pela inquirição do ofendido, se possível, testemunhas arroladas pela acusação (CPP, artigo 473), testemunhas arroladas pela defesa (CPP, artigo 473, §1º), e o interrogatório do acusado (CPP, artigo 474).

A lógica protege-nos neste ponto, já que os jurados agem também como fiscais da produção da prova oral e nesta finalidade podem requerer acareações, reconhecimento de pessoas e coisas e esclarecimento aos peritos (CPP, artigo 473, §3º), bem como fazer perguntas às testemunhas por intermédio do juiz presidente (CPP, artigo 474, §2º). Assim, é até prosaico que não pode o novo conselho de sentença, formado em nova sessão de julgamento, participar apenas da realização do interrogatório para, após os debates, votar os quesitos.

Deve este novo conselho poder exercer o direito que legalmente lhe cabe na produção da prova para, com isso, afastar o odor da parcialidade e do completo desconhecimento sobre a totalidade da prova e da causa.

TJAC

Nem se argumente que diante do novo conselho de sentença poderia ser exibida, aos jurados, em áudio e vídeo, a prova produzida na sessão anterior.

Esse expediente é uma maneira dúbia e inexitosa de tentar reverter a burla procedimental, já que, como apontado, o novel conselho de sentença estaria impedido de fiscalizar a prova oral cujas audições foram realizadas na sessão anterior, prova esta que, também, estaria validando eventual condenação.

Lições da doutrina

Mittermaier ensina que como, em geral, a prova testemunhal não tem tanto crédito de per si, segue-se que a testemunha deve ser indagada “sobre o fundamento de seu conhecimento dos fatos[1], ou seja, das razões, subjetivas e objetivas que a levaram a ter ciência do ocorrido, o que só é possível se quem indaga puder acompanhar o depoimento de quem será indagado.

Também pontifica o professor Tedesco que a convicção de quem julga a causa só pode amparar-se na prova oral prestada “em pessoa perante o tribunal [ou juiz] competente”, pois somente assim “se pode e deve-se supor que foram satisfeitas todas as prescrições indispensáveis da lei e da prudência[2].

Aliás, a doutrina especializada de Mascarenhas Nardelli assevera que o modelo mais adequado de produção de prova oral perante os jurados é o de inquirição cruzada e direta (cross examination e direct examination) — conforme a inspiração da dinâmica anglo-americana em nossa legislação [3] — a qual só é possível se a testemunha for inquirida na presença de quem for lhe julgar e em tempo real.

Spacca

Consequentemente, percebe-se que o contato extemporâneo dos jurados com a prova oral transforma o depoimento da sessão anterior de julgamento numa espécie de depoimento de primeira fase, já que este sim é que pode ser exibido ao júri para que conheçam do que ocorreu antes da decisão de pronúncia, contudo, veja: mesmo nesta hipótese não está dispensada a obrigatoriedade da repetição do ato testemunhal na segunda fase, ocorrida perante o conselho de sentença e não mais diante do juiz togado.

O destinatário da prova é o juiz, mas não qualquer juiz, e sim aquele que efetivamente irá julgar (CPP, artigo 399, §2º). Há, no júri, a aplicação inconteste do princípio da identidade física, pois se de acordo com a reforma de 2008 a prova a ser valorada pelo juiz é aquela produzida em contraditório, fortalece-se a regra da imediatidade, reforçando-se o sistema da oralidade [4].

Badaró, inclusive, já alertava para a correta interpretação do artigo 399, §2º, do CPP, a fim de que não parecesse haver apenas a vinculação do juiz da instrução à sentença. Diz o mestre paulista que a efetiva oralidade só será permitida, com todas as vantagens dela decorrentes, na interpretação segundo a qual “toda a instrução deve se desenvolver perante um único juiz, que deverá ser o mesmo que sentenciará o feito”.

E quando a concentração dos atos se realizar na forma de sessões consecutivas, “o princípio da oralidade exigirá que se mantenha a identidade física do juiz durante todas as sessões de julgamento, porque senão o ocorrido perante o primeiro juiz chegaria ao conhecimento do segundo somente através das peças escritas nos autos[5].

O ministro Francisco Campos também alertava nos idos de 1939 sobre a imediatidade e identidade física na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil: “O juiz que dirige a instrução do processo há de ser o juiz que decida o litígio. Nem de outra maneira poderia ser, pois o processo visando à investigação da verdade, somente o juiz que tomou as provas está realmente habilitado a apreciá-las do ponto de vista do seu valor ou da sua eficácia em relação aos pontos debatidos[6].

Percebe-se que o exame direto e cruzado da prova oral, a oralidade e a imediatidade na construção probatória não são possíveis se o ato processual de inquirição da testemunha se desenvolver perante pessoas física diversa daquela que irá julgar [7] e por isso não há cumprimento do devido processo legal quando, nulificado o interrogatório no júri, renove-se apenas este ato e não toda a instrução plenária, perante o novo conselho sentença.

 


 

[1] Mittermaier, Carl Joseph Anton. Tratado da prova em matéria criminal. 5 ed. São Paulo: Campinas, 2008, p. 356.

[2] Idem, p. 360.

[3] Mascarenhas Nardelli, Marcella. A prova no tribunal do júri. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 475.

[4] Badaró, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 217.

[5] Idem, p. 217-218.

[6] Maya, Andre Machado. Oralidade e Processo Penal. Tirant Brasil, p. 144, 29 dez. 2020. Disponível em: <https://biblioteca.tirant.com/cloudLibrary/ebook/info/9786559080328>

[7] Maya, André Machado. Oralidade e Processo Penal. Tirant Brasil, p. 145, 29 dez. 2020. Disponível em: <https://biblioteca.tirant.com/cloudLibrary/ebook/info/9786559080328>

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