Interesse Público

Negando as aparências, disfarçando as evidências

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17 de outubro de 2024, 8h00

Em nenhum lugar do mundo se fala tanto sobre evidências como no Brasil. Para ser mais preciso, há cerca de 35 anos cantamos em todos os lugares, a plenos pulmões, a canção composta por José Augusto e Paulo Sérgio Valle e imortalizada nas vozes de Chitãozinho e Xororó. Como resistir a uma música cujo ritmo vai ganhando uma cadência impensada e culmina com uma provocação: “diz que é verdade, que tem saudade, que ainda você pensa muito em mim”? A música — que muitos proclamam ser uma espécie popular de hino brasileiro – trata de contradições, sentimentos, aparências e, claro, evidências.

As evidências objeto deste artigo não estão diretamente ligadas à música popular brasileira: me refiro às políticas públicas baseadas em evidências (PPBE), também na moda por aqui. A trajetória das PPBE [1] pode ser reconstituída com o estabelecimento de alguns marcos importantes:

a) nos anos 1950, o desenvolvimento das disciplinas de monitoramento e avaliação de políticas públicas, notadamente nos Estados Unidos;
b) na década de 1980, à evolução do processamento de dados pela informática somou-se a doutrina do new public management, enfatizando a primazia da eficiência, a importância da relação custo-benefício e a necessidade de se tratar o cidadão como “cliente”;
c) a chamada “medicina baseada em evidências” ganha corpo a partir dos anos 1980 preconizando a tomada de decisões médicas a partir de investigações científicas — o movimento teve importância crescente e, talvez, seu ápice como contraponto ao negacionismo científico propagado na pandemia do Covid-19.

A referência às políticas públicas, por outro lado, pode ser simplificada com a frase “o Estado em ação”, como ensina Maria Paula Dallari Bucci.  Tomo a liberdade de encurtar o caminho proposto invocando o que escrevi em outra oportunidade:

“O jurista formado sob os cânones tradicionais que passa a pensar, enxergar e interpretar o direito tendo políticas públicas como eixo condutor (ou, para ser mais preciso, utilizando a abordagem de direito e políticas públicas) pode sofrer uma relativa crise de identidade. Com efeito, seu foco se deslocará das pequenas partes para o todo, da solidão para a multidão, da estática para o movimento. O pensar não só em cada um dos instrumentos, mas também na orquestra, nos maestros e músicos (iniciantes ou virtuoses) conduzirá o foco central para a plateia (os cidadãos), com o compromisso de entender o que a harmonia da música pode – na verdade, deve – lhes proporcionar. Nesse cenário complexo, a primeira dificuldade do jurista será reconhecer suas limitações e desconhecimentos para conhecer a vida como ela é nas ruas, praças e calçadas, não só nos códigos. A pretensão de transformar a realidade e cumprir as muitas promessas sociais feitas pela Constituição de 1988 exige, primeiro, que se conheça a realidade; que sejam identificados os problemas; que esses problemas sejam incorporados à agenda pública para que, então, seja planejada uma solução a ser implementada, monitorada e avaliada. No que se refere ao direito público, pensar com o mindset das políticas públicas é reconhecer que o trabalho do jurista é, talvez, o mais fácil – o mais difícil será compreender a dinâmica dos movimentos, os papéis dos diferentes atores e o grau de institucionalização necessário. Políticas públicas não se confundem com as normas que lhes dão suporte, tampouco têm nas leis os seus exclusivos instrumentos. Organização, planejamento, ação, acompanhamento, controle, aprendizado – palavras soltas que podem ser consideradas como etapas impostas ao Estado para desenvolver suas muitas atividades utilizando a regulação jurídico normativa, mas não se limitando a ela” [2].

Conceito e modelos

Evidências se inserem nas políticas públicas como elementos resultantes da transformação de dados em informações que sejam úteis na tomada de decisões. Trata-se de um conceito polissêmico, aberto, que deve ser empregado considerando-se uma determinada moldura conceitual, na lição de Maurício Saboya Pinheiro [3].

O autor identifica dois modelos gerais de evidências, situados em extremos opostos:

a) racionalista: herdeiro de uma visão filosófica clássica de cunho iluminista, racionalista, positivista e utilitarista, considera que os processos sociais e políticos são conduzidos por decisões puramente racionais; e
b) construtivista: enxerga os processos sociais e políticos como “construídos” pela interação entre agentes em suas disputas por poder; sendo as decisões tomadas em um ambiente de incerteza radical, sujeito às diversas construções interpretativas.

Enquanto uma visão da realidade mais pautada no modelo racionalista tende a induzir uso mais técnico, das evidências, com privilégio para dados empíricos quantitativos e passíveis de modelagem estatística, uma visão mais construtivista acarretará um uso mais amplo de instrumentos informativos, mesmo aqueles mais pessoais (frutos de experiências individuais) e menos objetivos.

Afastando-se dos extremos, Maurício Saboya Pinheiro propõe a construção de um modelo moderado que considere que o tipo de instrumento informativo e o modo de uso dependem da forma como o agente concebe a realidade social sobre a qual atua. O modelo proposto contempla os seguintes pressupostos epistemológicos:

“P1) apreender o social, o econômico e o político como sistemas complexos, porém racionalmente analisáveis; P2) considerar os limites do conhecimento em geral, a falibilidade do conhecimento científico e as especificidades do conhecimento em ciências sociais; P3) considerar o status epistemológico (científico) da disciplina ou área de política sob questão; e P4) entender o uso das evidências dentro de uma estrutura geral de ação do policymaker ou de outros stakeholders (conforme o caso), a qual, por sua vez, se especifica dentro de uma moldura contextual”.

O modelo é interessante justamente por ser moderado e por não depositar fé cega nas evidências, notadamente quando se trata de políticas públicas sociais. Evidências devem ser vistas não como respostas prontas, mas como informações que permitem o aprendizado voltado à busca de eficiência e eficácia das políticas públicas. Essas considerações se aplicam tanto na consideração do Estado que produz evidências [4] como do Estado que incorpora evidências produzidas externamente.

Spacca

A despeito do uso disseminado na medicina intuitivamente aproximar a noção de evidências àquelas produzidas mediantes experimentos randomizados, o modelo acima comentado indica a importância de abordagem mais ampla. Nessa perspectiva, evidências podem ser entendidas como “[…] dados gerados no âmbito de pesquisas científicas realizadas por universidades e institutos de pesquisa, assim como podem resultar de avaliações internas feitas pelos próprios governos sobre suas políticas. Podem ainda ser encontradas em auditorias de órgãos de controle, em relatórios e notas técnicas produzidas pela burocracia estatal ou ainda como resultado de avaliações externas de consultorias especializadas contratadas pelo poder público” [5].

Em se tratando do uso de dados para tomar decisões públicas, é possível refletir sobre o delineamento jurídico do uso de evidências. Para muito além de considerações sobre informações públicas e sobre o acesso a tais informações, é interessante verificar como a Constituição da República incorpora os diversos processos políticos e jurídicos ligados à dinâmica das políticas públicas. Para os propósitos deste singelo artigo, limito-me a uma busca (um CTRL + F) dos termos monitoramento, avaliação e controle, verificando se as referências se aplicam às políticas públicas.

Em um emaranhado de órgãos, competências e diretrizes gerais, uma presença relevante: a sociedade tem sua participação assegurada nos processos de formulação, monitoramento, controle e avaliação das políticas públicas sociais (artigo193, parágrafo único). Essa regra se soma àquelas outras que determinam que as leis orçamentárias devem observar os resultados do monitoramento (artigo 165, §16) e que os órgãos e entidades devem avaliar políticas públicas (artigo 37, §16), além das competências ligadas às atividades de controle interno e externo (artigo 70 e seguintes).

No plano infraconstitucional, destaque para a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro ao exigir a consideração das consequências práticas e motivação demonstrando necessidade e adequação, inclusive em face das possíveis alternativas (art.20 e seu parágrafo único).

Evidências são um dentre outros elementos que contribuem para as decisões administrativas — não trazem necessariamente respostas absolutas, certezas derradeiras. Evidências devem ser consideradas como oportunidades para inovação e aprendizado, com correção de rumos e verificação de fatores que impedem a eficácia de soluções pensadas.

Servem não somente para buscar o que funciona, mas sobretudo para dizer o que não funciona — e, a partir daí, na moldura situacional, buscar a construção de respostas eficazes. A presença necessária da sociedade nas etapas de  formulação, monitoramento, controle e avaliação impele ao reconhecimento da dimensão política (em sentido amplo) das evidências, sobretudo na arena de debates. O que não se admite é negar as aparências e disfarçar as evidências: motivação, transparência e integridade impedem que as políticas públicas sigam o ritmo da música!

 


[1] PINHEIRO, Maurício Mota Saboya. Políticas públicas baseadas em evidências: uma avaliação crítica. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/bapi24art1

[2] MOTTA, Fabrício. Prefácio. In: DINIZ, Raimundo. A ineficiência da execução fiscal como situação-problema na abordagem Direito e Política Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 17-19

[3] PINHEIRO, Maurício Mota Saboya. Políticas públicas baseadas em evidências: uma avaliação crítica. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/bapi24art1

[4] O IEPA realizou survey sobre uso e não uiso de evidências pela burocracia federal brasileira, que pode ser acessado em https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10376/1/td_2619.pdf

[5] MELLO, Janine. Produção estatal de evidências e uso de registros administrativos em políticas públicas. In: KOGA, Natália Massaco et.al. Políticas públicas e usos de evidência no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: IPEA, 2022,p.457-484.

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