Senso Incomum

É proibido absolver por clemência; mas pode condenar por vingança?

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17 de outubro de 2024, 9h15

Resumo
A Constituição não é um oximoro. Mas a decisão sobre a clemência é. A soberania do júri não pode ser plena e ao mesmo tempo não o ser. A soberania que não é soberana?

O Júri e ‘o não contentar-se de contentamento’

Sigo com minha epopeia de defesa do direito de defesa no Tribunal do Júri. Agora ela ganha um novo capítulo. Antes veio a decisão, também em sede de repercussão geral, de que seria constitucional a prisão automática em qualquer condenação pelo Júri.

Levantei o problema que isso representava, ainda mais pela vinculante decisão tomada pelo mesmo Supremo no âmbito das ADCs 43, 44 e 54 e pela própria autorização que o Supremo abriu da possibilidade de Tribunais (e por que não também juízes?) utilizarem de seu poder cautelar.

Haveria uma “regra” pela prisão automática ou uma possibilidade, caso adequada? Falei disso aqui e aqui. Seria adequado lerem antes esses dois textos. Este é o terceiro.

Mas, como costumo dizer, no direito (constitucional) brasileiro não se morre de tédio. O que chamo de debacle contra o direito de defesa — mesmo com meus questionamentos recentes — ganhou uma nova fase. Fez uma nova vítima. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal fixou tese com Repercussão Geral, no julgamento do ARE 1.225.185 (Tema 1.087), sobre recurso de apelação em casos de decisão por Tribunal do júri. Vejamos:

“É cabível recurso de apelação, com base no art. 593, III, d, do Código de Processo Penal, nas hipóteses em que a decisão do Tribunal do Júri, amparada em quesito genérico, for considerada pela acusação como manifestamente contrária à prova dos autos.
O Tribunal de Apelação não determinará novo júri quando tiver ocorrido apresentação constante em ata de tese conducente à clemência ao acusado, e esta for acolhida pelos jurados, desde que seja compatível com a Constituição, com os precedentes vinculantes do Supremo Tribunal Federal e com as circunstâncias fáticas apresentadas nos autos.”

O Tema 1.087 envolve um caso concreto em que o júri reconheceu a materialidade e a autoria de tentativa de homicídio, contudo o conselho votou pela absolvição do réu em claro ato de clemência praticado pelos jurados.

Não se podendo identificar a causa de exculpação ou então não havendo qualquer indício probatório que justifique plausivelmente uma das possibilidades de absolvição, ou ainda sendo aplicada a clemência a um caso insuscetível de graça ou anistia, pode o Tribunal ad quem, provendo o recurso da acusação, determinar a realização de novo júri”, afirmou o Ministro Fachin.

Algumas perguntas precisam, então, ser feitas: do julgado, presume-se que, em caso de absolvição por clemência (ou seja, mesmo contrária às provas nos autos) poderá a acusação manejar recurso de apelação. Porém, e quando houver condenação contrária às provas nos autos?

Quando o júri condena o sujeito por vingança, haverá direito igual ao acusado de recorrer e buscar um novo júri? Trata-se de um precedente que favorece apenas ao acusador? Se sim, e parece que é, trata-se de um precedente inconstitucional. Estar-se-ia perante uma tipologia pro societate? Mas, o Estado democrático de Direito não é pro cidadão? Parece evidente que já não existe um in dubio pro societate. Aliás, já na mitologia grega foi deixado para trás o in dubio pro societade, aquando do julgamento de Orestes (Trilogia Oresteia, de Ésquilo, peça Eumênidas).

Afora as críticas que venho fazendo sobre o poder legiferante que os Tribunais Superiores exercem ao criarem teses para o futuro por meio de autênticas regras gerais e abstratas, o caso do Tema 1.087 chama atenção pelo estranho e inusitado tipo de resultado em algumas situações.

Se pensarmos que o Tribunal do Júri também poderá condenar o réu de forma alheia às provas dos autos, como ficará a possibilidade de distinguishing nesses casos? Teria o Supremo Tribunal pensado no inverso da tese aprovada?

Spacca

Nas teses editadas dizendo que a prisão pode ser feita em qualquer hipótese após o veredicto do júri e neste caso da vedação da clemência para o caso de absolvição, como será possível fazer distinguishing e obedecer ao artigo 315, parágrafo primeiro, inciso VI, do CPP? É possível fazer overruling de uma tese? Parece que só o próprio editor da tese é que pode a “superar”.

Como falei nos artigos anteriores, a Constituição reconheceu a soberania dos jurados no Artigo 5º, inciso XXXVIII e o fez reconhecendo o júri como tribunal popular com ritos especiais, que revelam uma simbologia própria ao procedimento. A soberania é apenas um dos aspectos dessa simbologia.

Em caso recente de ampla repercussão, inclusive, o do assassinato do ministro aposentado do TSE, sua esposa e mais duas vítimas, mortas em 2009, foi acusada e condenada a filha do casal dez anos depois, a 61 anos de prisão. O que ocorre agora?

Mesmo com a defesa e a imprensa tendo apontado inúmeras falhas nas investigações — inclusive com nulidades — tendo a defesa interposto recurso e a ré respondendo em liberdade, o MPDFT pediu ao juízo a prisão automática da ré. O que fará o juiz nessa hora? Como já questionei,  como fica o poder de cautela “em sua hora mais premente”?

E aqui entra meu questionamento acerca do cotejo entre (i) a decisão que coloca a soberania dos veredictos como absoluta, a ponto de “superar” o precedente da presunção da inocência e (ii) a decisão que rebaixa a soberania dos veredictos, a ponto de admitir revisão de decisão que absolve alguém por clemência.

Trata-se de um oximoro jurídico, que põe uma contradição do tipo que vemos no poema de Camões “é o não contentar-se de contentamento”. Só que a Constituição não admite oximoros. O Direito não admite oximoros. A soberania não pode ser tudo e logo depois, nada. Esse é o ponto.

A soberania do júri é garantia da sociedade ou do réu? O júri não está no capítulo das garantias processuais? Ou há espécies de soberania? Interessante fazer o cotejo. O STF entendeu que, entre a presunção da inocência e a soberania dos veredictos, vale mais a soberania. O problema é que, agora, o Supremo Tribunal se contradiz, porque desconsidera a soberania, vedando a absolvição por clemência.

A soberania utilizada para condenar vale, mas a soberania do júri que absolve “depende”? Não vale da mesma forma? Ademais, se o júri decide por íntima convicção, por qual razão essa íntima convicção pode ser limitada? E como saber se a absolvição foi por clemência? E como saber se a condenação foi por raiva, preconceito ou vingança?

Pode o Judiciário fazer reformas na legislação?

Importa registrar é que o Supremo Tribunal está reformando o instituto do júri. E não me parece ser essa a sua função.

Lembro que o rito e a simbologia do júri são especiais justamente por darem conta da difícil tarefa de contemplar o clamor moral que crimes contra a vida têm na sociedade com o devido processo legal e ampla defesa. O júri é diferente por isso. Enquanto decidir por íntima convicção não parece aconselhável que o STF ponha limitações nesse poder.

Não parece razoável igualmente entender que a soberania dos vereditos possa ser restringida apenas ao poder de condenação. Isto é, para condenar vale tudo? Para absolver, eis os limites como a proibição da clemência? Não foi para isso que o instituto foi criado e não é para tais propósitos que ele existe como Tribunal Popular. Respeitemos o instituto e a soberania do júri em sua integralidade.

De todo modo, uma coisa é facilmente perceptível: caminhamos cada vez mais rumo à jurisprudencialização do Direito. Bernd Rüthers denunciou esse fenômeno chamando-o de “revolução secreta no Direito” (heimliche Revolution).

Estamos voltando ao início da modernidade, quando Hobbes disse autorictas non veritas facit legis. Naquele momento fazia sentido, porque era necessário fazer a ruptura com o paradigma jusnaturalista.  Porém, hoje, na democracia e com a divisão de Poderes, o lema deve ser veritas non autorictas facit legis. Com o poder de fazer precedentes pro futuro, o lema passa a ser autorictas non veritas facit precedentes. Ou seja, o que faz o direito é a autoridade de quem decide. E o faz estabelecendo teses. Veja-se o caso do júri.

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