Opinião

Democracia verde: o futuro político e ecológico do planeta

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17 de outubro de 2024, 6h33

O poder de manipular o mundo e de remodelar o planeta inteiro, sem a correspondente compreensão da complexidade da ecologia global, promoveu o comprometimento de todo o sistema ecológico, pondo em perspectiva um colapso ambiental (Harari, 2018, p. 26). Esse poder incontrolável foi desenvolvido por engenheiros, empresários e cientistas com pouca consciência das implicações políticas de suas decisões e que certamente não representam ninguém. O poder disruptivo da tecnologia nem chega a ser prioridade na agenda política e, portanto, o deficit democrático da capacidade de afetar a ecologia global é evidente.

A democracia liberal capitalista, por assim dizer, sempre foi uma democracia consentida sob as condições aprovadas pelos capitalistas e voltada para os interesses cartesianos do capital predatório. Por isso, essa democracia política tradicional tem dificuldade para lidar com a complexidade, a cacofonia e a estridente estática em que se expressam as múltiplas correntes de defesa ambiental. O debate “democrático” moderno perdeu a capacidade de gerar consenso na proporção em que uma predisposição autoritária pretende silenciar o outro à força. Como escreve Applebaum (2018, p. 97):

“As instituições democráticas modernas construídas para uma era que possuía uma tecnologia da informação muito diferente, fornecem pouco conforto para aqueles que se enraivecem com a dissonância. Eleições, campanhas e formação de coalizões parecem retrógradas em um mundo no qual outras coisas acontecem tão rapidamente.”

As atuais estruturas econômicas, políticas e institucionais são como dinossauros: incapazes de se adaptar às mudanças ambientais e, portanto, condenadas à extinção (Capra, 1982, p. 215) ou a uma inutilidade vestigial. A própria democracia, com toda sua flexibilidade intrínseca [1] e seus hábitos mentais pacíficos, assegura apenas a eleição de governos fora de sintonia com o mundo natural (Lovelock, 2006, p. 105). E eleições também, isoladamente, não podem assegurar o equilíbrio dos estados democráticos [2].

A referência, feita no parágrafo anterior, de que a democracia assegura apenas a eleição de governos fora de sintonia com o mundo natural, merece dois comentários: primeiro, as eleições, como ingrediente fundamental da democracia, não são perfeitas. Trata-se, na verdade, de uma atividade imperfeita por sua própria natureza. Simplesmente há a sorte de, na maioria das vezes, o resultado de uma eleição ser claro o suficiente para ser visível em meio aos ardis partidários (Seife, 2012, p. 142). Além disso, nenhuma política pública ou social flui diretamente das eleições.

Segundo, qualquer sistema político construído com base na lógica e na racionalidade sempre corre o risco de uma explosão de irracionalidade (Applebaum, 2018, p. 96-97), seja proveniente de maiorias tirânicas ou de minorias ativistas autorreferentes. Toda uma geração de jovens, por exemplo, guarda uma distância crítica em relação à democracia e trata as eleições como uma oportunidade para demonstrar seu desdém pelo regime, votando em estereótipos políticos ou em pessoas sem qualquer visão política.

O medo de incomodar

Para entender esse enredo, pode-se valer de uma construção teórica de Capra e Mattei (2018, p. 165-166). Segundo eles, coerções e incentivos institucionais legalmente induzidos tendem a determinar o comportamento dos políticos profissionais, que operam no breve período de tempo do ciclo eleitoral. Mesmo que um político tenha uma visão verdadeiramente ecológica e sistêmica, os resultados de qualquer plano de ação que ele pudesse converter em lei só seriam visíveis no médio ou no longo prazos. Contudo, os custos extras inferidos pelos seus eleitores (e, em particular, por seus doadores financeiros) se fariam sentir imediatamente na forma de obrigações ambientais e sociais, na exigência de atualização de tecnologias e assim por diante.

Fernando Augusto/Ibama

Essa discrepância entre os breves ciclos eleitorais e os resultados de longo prazo explica a parca ajuda que os políticos tendem a oferecer aos movimentos ambientais. O medo de perder as eleições por  indispor-se com a indústria petrolífera, por exemplo, explica porque o movimento ambientalista é deixado de lado em todas as lutas contra os oleodutos. Logo, para a política democrático-representativa ajudar o meio ambiente, as leis de financiamento de campanhas devem ser colocadas em sintonia com o pensamento ecológico de longo prazo.

De qualquer modo, se há um sistema político pronto a transformar-se e a evoluir, é a democracia. As culturas democráticas possuem uma capacidade considerável de corrigir seus próprios defeitos (Dahl, 2012, p. 284), superando, à força de debates e de consensos, conceitos excessivamente estreitos para os problemas de interdependência planetária. Ou ainda, capaz de enfrentar o terreno insidioso da complexidade e da diversidade (de opiniões e de experiências), encontrando soluções relativamente seguras para o futuro da sociedade humana.

E a democracia política moderna, no front internacional, já deu mostras dessa capacidade de encontrar soluções para os problemas do mundo natural, inclusive lidando com outros sistemas políticos menos flexíveis. Um exemplo serve para ilustrar como a humanidade pode ser destrutiva e criar problemas de escala global, mas pode também se redimir e encontrar soluções. A emergência do buraco de ozônio na estratosfera (Rees, 2005, p. 121), a partir de reações químicas de clorofluorcarbonetos (CFCs), ameaçava, há algumas décadas, a saúde do planeta, mas um acordo internacional [3] diminuiu o problema: o buraco de ozônio agora está desaparecendo. Mas soluções como esta, derivadas da civilização e de claros ideais democráticos, não chamam tanta atenção quanto o problema original, tudo por conta de um viés de negatividade que leva o ser humano a uma sintonia mais íntima com o ruim que com o bom.

Surge uma nova concepção de democracia

Em um mundo dramaticamente remodelado pela ação humana sobre a natureza, a democracia política busca conformar-se à nova realidade. A proximidade com as mudanças climáticas extremas e o aquecimento global talvez inspirem um novo senso de solidariedade global. Talvez instituições democráticas tradicionais possam ser renovadas e modernizadas para fazer frente a um cenário de risco existencial nunca visto e aos desafios derivados.

Eis a reflexão inicial que leva à democracia verde.

Nesta democracia verde, o cidadão atomizado e desinformado está condenado a se tornar irrelevante, obsoleto. Somente cidadãos livres, bem informados e esclarecidos podem repensar o que a democracia deve ser num tempo em que o destino da humanidade depende cada vez mais da própria humanidade e de padrões que transcendam os do individualismo possessivo.

Desse modo, a existência dessa cidadania esclarecida e de grupos ativos de vários tipos e tamanhos é crucial para que o processo democrático possa ser sustentado e para que os cidadãos consigam promover seus objetivos (Held, 1987, p. 173).

Uma modalidade de democracia, como a democracia verde ou ecológica, não se impõe apenas pela detecção dos riscos iminentes da ecologia global, mas deriva da extensão das demandas expressas por seus cidadãos (Tilly, 2013, p. 27), ambientalmente educados. E também pelas externalidades produzidas, que ampliam o apreço e a lealdade com suas diretrizes.

Spacca

Não se trata de chegar à terra prometida da política mundial ou do fim da história, mas apenas de um sistema de governo que permita a convivência e a competição institucional, e a pacífica diversidade política que atravessa e molda os países do planeta. Essa especial forma democrática não se propõe em ser o ponto de chegada da política mundial, mas certamente o ponto de partida. Acordos e protocolos em prol do meio ambiente planetário são obtidos mesmo diante da heterogeneidade política dos países, mas sempre movidos por um apelo democrático universal (consciente ou não).

O predomínio de instituições totalitárias no cenário planetário

As empresas são instituições reconhecidamente totalitárias e com o ganho de uma dimensão planetária, traduzem para essa escala o modelo de gestão não democrática. As grandes empresas nada têm de individualistas, assegura Chomsky (1999, p. 70). São grandes conglomerados institucionais, de caráter essencialmente totalitário. No seu interior, cada funcionário é apenas uma peça de uma grande máquina. Na sociedade humana poucas instituições têm uma hierarquia tão estrita, e um controle tão autoritário.

Se o poder e a riqueza derivados dessas instituições ontologicamente autoritárias, com presença relevante nas questões planetárias, com especial destaque para o meio ambiente, não forem devidamente reguladas e controladas, a democracia política poderá transformar-se numa ilusão, e a democracia verde, num projeto natimorto.

Já se fala, em relação às grandes e poderosas empresas globais (como exemplo, as big techs), de uma transferência de soberania estatal (Capra e Mattei, 2018, p. 166-167):

“O resultante crescimento econômico de muitas empresas contribuiu para uma transferência da soberania dos governos para a propriedade empresarial, e para  consequente privatização de todas as formas de bens e recursos comuns. Hoje, muitas empresas são tão grandes e poderosas que, mais ainda que os políticos, elas conseguem determinar a lei e a política. São capazes de determinar o ambiente jurídico de seu próprio campo de ação, fazendo lobby para interferir diretamente nas decisões do poder legislativo ou investindo fortunas em advogados e processos judiciais.

(…) Além das questões ambientais, mais óbvias e diretas, como a poluição, p desflorestamento e o excesso de desenvolvimento, testemunhamos também a contínua privatização dos serviços de utilidade pública, prisões, escolas, departamentos acadêmicos, serviços públicos de radiodifusão, televisão e muitas outras infraestruturas. Hoje, as empresas controlam muitos desses bens que há pouco tempo eram públicos, e esse controle é exercido com um verdadeira ferocidade extrativista.”

Os Estados, limitados como são pelas fronteiras de suas jurisdições, não são fortes o suficiente para impor limites aos deslocamentos globais das grandes empresas (Capra e Mattei, 2018, p. 169), principalmente das referidas big techs. Há, claramente, uma transferência da soberania dos governos para a propriedade empresarial, em que algumas empresas grandes e poderosas conseguem até resistir a decisões emanadas do Estado. Uma boa referência ao leitor pode ser encontrada na disputa/embate entre o Supremo Tribunal Federal do Brasil e o bilionário Elon Musk (dono da rede social X), visto “não apenas como um ataque ao Supremo – mas à própria soberania nacional” (Martins, 2024).

Hoje, voltam a destacar Capra e Mattei (2018, p. 185), “pela primeira vez desde o nascimento do Estado moderno, o setor privado é mais forte do que o governo. O resultado é uma máquina aparentemente irreversível que produz desigualdade e desastres ecológicos, seguindo a própria estrutura dos direitos de propriedade”. Sob a proteção do Direito e dos mecanismos de defesa da propriedade, são expropriados recursos dos 99% em favor do 1%.

O esboço incipiente de uma democracia verde requer uma injeção de valores sociais capazes de antecipar o futuro, fazendo dos problemas de amanhã, os problemas de hoje. Paralelamente, as evidências apontam para um novo ambiente político permeado de possibilidades, mas que exige novas métricas de avaliação.

A sobrevivência não só da democracia, mas do mundo, depende, dentre outros fatores, da capacidade de inventar uma relação em larga escala com outros atores, e na ecologia, sem reconhecimento de fronteiras. Pertence o futuro àqueles que lograrem efetivar a democracia, dirigindo-se  à sensibilidade do homo democraticus e não apenas à razão.

A ideia, portanto, é combinar democracia e meio ambiente com serviços de educação bancados e promovidos pelos governos. Para fazer frente ao colapso ecológico somente um renovado pacote de democracia verde; uma estrutura com as virtudes necessárias para modelar, com razoabilidade, o curso dos eventos mundiais. Esse pacote destina-se a se espalhar por todo o mundo, trabalhar consensos, suprimir todas as fronteiras e transformar o gênero humano em entusiasta defensor do meio ambiente planetário.

 


Referências:

APPLEBAUM, Anne. O crepúsculo da democracia. Tradução de Alessandra Bonrruquer. 1a. edição. Rio de Janeiro:Record, 2021.

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo:Cultrix, 1982.

CHOMSKY, Noam. Segredos, mentiras e democracia. Tradução de Alberico Loutron. Brasília:Editora Universidade de Brasília, 1999.

DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. Tradução de Patrícia de Freitas Ribeiro. Tradução de Aníbal Mari. São Paulo:WMF Martins Fontes, 2012.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século XXI. Tradução de Paulo Geiger. 1a. ed. São Paulo:Companhia das Letras, 2018.

HELD, David. Modelos de democracia. Tradução de Alexandre Sobreira Martins. Belo Horizonte:Paideia, 1987.

LOVELOCK, James. A vingança de Gaia. Tradução de Ivo Korytowski. Rio de Janeiro:Intrínseca, 2006.

MARTINS, Laís. Elon Musk não desafia apenas o STF – mas a soberania nacional. 2024. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2024/08/30/elon-musk-desafia-soberania-nacional/. Acesso em: 12 out. 2024.

REES, Martin. Hora final. Tradução de Maria Guimarães. São Paulo:Companhia das Letras, 2005.

SEIFE, Charles. Os números (não) mentem. Tradução de Ivan Weisz Kuck. Rio de Janeiro:Zahar, 2012.

TILLY, Charles. Democracia. Tradução de Raquel Weiss. Rio de Janeiro:Vozes, 2013.

WOLDENBERG, José. En defensa de la democracia. México:Cal y Arena, 2019.

 

[1] A democracia liberal, como anota Harari (2018, p. 17), “é o modelo político mais bem sucedido e versátil que os humanos desenvolveram até agora para lidar com os desafios do mundo moderno. Mesmo que não seja adequado a toda sociedade e em todo o estágio de desenvolvimento, ele provou seu valor em mais sociedades e em mais situações do que qualquer uma de suas alternativas”.

[2] “Não há democracia sem eleições, embora não seja suficiente que existam eleições para se poder falar em democracia” (Woldenberg, 2019, p. 41).

[3] Esse acordo resultou no Protocolo de Montreal, cujo objetivo é eliminar a produção e o consumo de substâncias como os CFC’s e HCFC’s.

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