Opinião

Responsabilidade tributária do arrematante em leilões judiciais

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17 de outubro de 2024, 19h35

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem papel fundamental na interpretação e aplicação da legislação infraconstitucional no Brasil, especialmente em questões que afetam diretamente a segurança jurídica nas relações patrimoniais e fiscais. O julgamento do Tema 1.134 trouxe uma importante alteração na forma como o STJ interpreta a responsabilidade do arrematante em leilões judiciais pela quitação de débitos tributários preexistentes sobre o imóvel.

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A tese fixada pelo tribunal estabelece que, conforme o disposto no artigo 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, é “diante do disposto no artigo 130, parágrafo único, do CTN é inválida a previsão em edital de leilão atribuindo responsabilidade ao arrematante pelos débitos tributários que já incidiam sobre o imóvel na data de sua alienação”.

Tal alteração traz consigo um entendimento que impacta nas decisões tomadas pelos arrematantes, credores e para o próprio poder público, pois soluciona uma discussão que se arrastava no Judiciária e muitas vezes inviabilizava a alienação do imóvel em hasta pública.

O Tema 1.134 dos recursos repetitivos trata de uma questão recorrente nos leilões judiciais: a responsabilidade pelos débitos tributários incidentes sobre o imóvel antes de sua alienação. Nos leilões, é comum que o edital preveja a transferência dessa responsabilidade ao arrematante, o que gerava insegurança e aumentava o custo da aquisição. A prática era questionada com base no artigo 130 do CTN, que trata da sucessão tributária nas transmissões de propriedade de bens imóveis.

O artigo 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional estabelece que, na alienação judicial de imóveis, os tributos relativos ao bem, como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), ficam sub-rogados no preço da arrematação. Ou seja, os débitos tributários devem ser pagos com o valor obtido no leilão, e não repassados ao arrematante. Todavia, alguns editais de leilão previam cláusulas em sentido contrário, impondo a responsabilidade ao comprador.

Oscilação de jurisprudência

Historicamente, a jurisprudência do STJ oscilava em relação à responsabilidade do arrematante por débitos anteriores. Em alguns casos, prevalecia o entendimento de que a cláusula contratual presente no edital poderia sobrepor-se à regra prevista no CTN, sob o argumento de que o arrematante, ao aceitar as condições do leilão, assumiria os riscos do negócio, estando ciente da existência dos débitos [1].

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No entanto, com o julgamento do Tema 1134, o STJ consolidou entendimento em favor da regra estabelecida pelo CTN, afastando a validade de cláusulas editalícias que impunham a responsabilidade pelos débitos tributários ao arrematante, trazendo segurança jurídica para as arrematações em hasta pública.

A decisão do STJ é relevante porque reforça alguns pontos do ordenamento jurídico que são fundamentais e inafastáveis. Primeiramente a decisão garante o respeito ao princípio da legalidade tributária.

O artigo 130 do CTN é claro ao estabelecer que, em casos de alienação judicial, os tributos sobre o imóvel não devem ser repassados ao arrematante, mas sim pagos com o montante obtido no leilão. O princípio da legalidade tributária impõe que a obrigação tributária só pode ser criada ou modificada por lei, não podendo ser alterada por cláusulas contratuais, como as de editais de leilão.

Ademais, a sujeição passiva no direito tributário somente pode ser definida por lei, nos termos do artigo 121, parágrafo único, II do CTN, não cabendo aos contratos particulares a imposição de responsabilidade.

Com isso, o conceito de sub-rogação previsto no artigo 130 implica que os débitos incidentes sobre o imóvel se transferem para o valor pago no leilão, o que significa que o preço pago pelo arrematante deve ser utilizado para quitar esses débitos, afastando-o de qualquer obrigação adicional relacionada a tributos anteriores à aquisição originária.

Segurança jurídica

Como se não bastasse, a segurança jurídica é um direito fundamental do cidadão, de modo que o ordenamento jurídico não pode ser interpretado ao contrário do definido na própria lei tributária, sob pena de o Judiciário invadir a atribuição do poder legislativo.

Tendo em vista a litigiosidade que envolve o assunto, o STJ modulou os efeitos da decisão, de modo que não se aplica aos editais de leilão publicados até a data da publicação da ata do julgamento e nem sobre os leilões já realizados. Com isso, somente terá efeitos para o futuro e sobre as ações judiciais e processos administrativos em curso, de modo que os arrematantes devem estar atentos ao elemento temporal.

Como se pode ver, a alteração de jurisprudência promovida pelo STJ no julgamento do Tema 1134 representa um avanço significativo na proteção dos arrematantes em leilões judiciais.

Ao estabelecer que os débitos tributários preexistentes devem ser quitados com o valor da arrematação e não repassados ao comprador, o STJ reforça o princípio da legalidade e a segurança jurídica, pacificando uma discussão que se arrasta nos tribunais por mais de uma década.

 


[1] RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO – PRAÇA – ARREMATAÇÃO – DÉBITOS FISCAIS E CONDOMINIAIS – RESPONSABILIDADE DO ARREMATANTE, DESDE QUE HAJA PREVISÃO EXPRESSA NO EDITAL – PRECEDENTES DO STJ – HIPÓTESE OCORRENTE, NA ESPÉCIE – DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADO – RECURSO IMPROVIDO.

I – Em regra, o preço apurado na arrematação serve ao pagamento do IPTU e de taxas pela prestação de serviços incidentes sobre o imóvel (art. 130 e 130, parágrafo único, do CTN);

II – Contudo, havendo expressa menção no edital acerca da existência de débitos condominiais e tributários incidentes sobre o imóvel arrematado, a responsabilidade pelo seu adimplemento transfere-se para o arrematante;

III – No tocante ao alegado dissídio jurisprudencial, é certo que não houve cotejo analítico, bem como não restou demonstrada a perfeita similitude fática entre o acórdão impugnado e os paradigmas colacionados;

IV – Recurso especial improvido. (REsp 1.114.111⁄RJ, Rel. Min. MASSAMI UYEDA, Terceira Turma, DJe 4⁄12⁄09)

 

Autores

  • é advogado, pós-doutorando em Direito pela Uerj, doutor em Direito pela Universidade Veiga de Almeida, mestre em Economia Empresarial pela Ucam, pós-graduado em Direito Público e Tributário, especialista em Tributação Internacional pela Universiteit Leiden, membro da International Fiscal Association (IFA), professor de Direito Tributário da FGV.

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