Direto do Carf

O artigo 61 da Lei nº 8.981/1995 e suas controvérsias no Carf (parte 3)

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

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16 de outubro de 2024, 8h00

Continuando a sequência de artigos a respeito das controvérsias envolvendo o IRRF previsto no artigo 61 da Lei nº 8.981/95 (que já foi objeto de outros dois artigos, disponíveis aqui [1] e aqui [2]), trataremos, na coluna de hoje, de alguns aspectos relevantes à determinação da aplicabilidade concreta da previsão sob análise, i.e., quais as condições materiais e limites à possibilidade de aplicação de imposto retido na fonte.

Apenas para facilitar a consulta do leitor, reproduziremos abaixo a íntegra do artigo, in verbis:

“Art. 61. Fica sujeito à incidência do Imposto de Renda exclusivamente na fonte, à alíquota de trinta e cinco por cento, todo pagamento efetuado pelas pessoas jurídicas a beneficiário não identificado, ressalvado o disposto em normas especiais.

§1º. A incidência prevista no caput aplica-se, também, aos pagamentos efetuados ou aos recursos entregues a terceiros ou sócios, acionistas ou titular, contabilizados ou não, quando não for comprovada a operação ou a sua causa, bem como à hipótese de que trata o § 2º, do art. 74 da Lei nº 8.383, de 1991.

§2º. Considera-se vencido o Imposto de Renda na fonte no dia do pagamento da referida importância.

§3º. O rendimento de que trata este artigo será considerado líquido, cabendo o reajustamento do respectivo rendimento bruto sobre o qual recairá o imposto.”

Primeira questão: ‘beneficiário’ e ‘causa’ – hipóteses autônomas ou conjugadas?

Uma discussão que vem surgindo nos acórdãos sob o tema diz respeito à autonomia das hipóteses de incidência do IRRF do artigo 61, em especial no que diz respeito aos elementos de não identificação do beneficiário (caput) e ausência de comprovação da causa do pagamento (§1º). O cerne da discussão consiste em saber se o caput e o §1º trazem hipóteses autônomas de incidência, ou se se trata de descrições fáticas que devem ser conjugadas na sua interpretação.

Há quem entenda, a exemplo do voto vencedor no acórdão nº 1201-004.560 (j. 19/1/2021), que a identificação do beneficiário como uma pessoa física ou jurídica (de existência efetiva) seria suficiente para afastar a cobrança do IRRF, pois isso permitiria à autoridade fiscal rastrear os pagamentos e apurar uma eventual omissão de receitas, a ser tributada diretamente na beneficiária, de modo a evitar uma dupla cobrança dos tributos em quem paga e em quem recebe os rendimentos. Portanto, assumida essa premissa, conhecido o beneficiário, o IRRF já seria indevido, cabendo à fiscalização buscar diretamente neste o tratamento jurídico do pagamento recebido.

Por outro lado, o entendimento prevalecente no Carf (e.g. acórdão nº 9101-006.342 e 9101-006.156) hoje é de que se trata de hipóteses autônomas entre si, posição que, em nosso entender, melhor reflete a própria literalidade do artigo 61 e a sua evolução histórica, que contemplou a inclusão da não demonstração da causa como hipótese própria.

De fato, a mera identificação do beneficiário, por si só, não é suficiente para coibir eventuais omissões de receita, ou tributação a menor do que seria devido. A identificação da causa do pagamento também é essencial para que se identifique com precisão o regime tributário a que estarão sujeitos tais valores, no nível do beneficiário. Por exemplo, uma pessoa jurídica pode pagar valores a um sócio a título de pró-labore (ocultando a causa de tais pagamentos), enquanto ele os declara como mútuo ou como dividendos, visando evitar a cobrança do imposto de renda sobre esse montante.

Parece-nos que o IRRF sob análise visa coibir potenciais omissões de receita tanto pela não identificação do beneficiário, como pela ocultação da causa dos pagamentos, que pode ser, por si só, o instrumento para esse ilícito, mesmo nas hipóteses de identificação do destinatário dos valores. Desse modo, entendemos que as hipóteses devem ser reputadas com autônomas entre si.

Segunda questão: o ônus probatório do Fisco na demonstração da ocorrência dos pagamentos

É comum nas auditorias envolvendo a cobrança do IRRF do artigo 61 que a fiscalização identifique a realização de despesas ou o reconhecimento de passivos, que representam contabilmente a saída de recursos da empresa, e intime o contribuinte a apresentar tanto a documentação específica dessas operações, como a comprovação do efetivo pagamento dos valores. Diante da resposta insuficiente ou ausente do fiscalizado, o auditor-fiscal considera as saídas escrituradas como operações não comprovadas ou com a causa não identificada, lavrando o auto de infração.

Spacca

Ao assim proceder, com a devida vênia, incorre a fiscalização em um vício quanto ao atendimento do ônus probatório que assume, quando pretende imputar o IRRF de 35% sobre as referidas saídas. O IRRF do artigo 61, como foi explanado no primeiro texto dessa série, se baseia na presunção legal de que os valores pagos serão objeto de omissão de rendimentos por parte do seu beneficiário, seja por se aproveitar da sua não identificação, seja pela ocultação de sua real natureza (para gozar de um regime menos oneroso). Parte-se de um fato conhecido (a ocorrência do pagamento) para inferir um fato desconhecido (a omissão de receitas no beneficiário), tributando-se, daí, a remessa realizada pela fonte pagadora.

Mesmo com o recurso a essa presunção, a fiscalização assume para si, ao invocar o artigo 61, o dever de demonstrar de forma efetiva e individualizada a ocorrência efetiva dos pagamentos que pretenda utilizar como base para o cálculo do IRRF. Não serve, para tanto, mera demonstração da escrituração contábil das saídas, devendo ser evidenciada a ocorrência concreta dos pagamentos, o que pode ser feito, por exemplo, por meio dos registros de transferências bancárias, que deverão estar presentes nos autos.

Cabe menção, entretanto, ao acórdão nº 1401-002.729, que afirma que não basta a mera indicação de débitos em conta corrente para se inferir a ocorrência do pagamento, devendo-se intimar o contribuinte a identificar a sua natureza, bem como verificar se não foram valores que não correspondiam a efetivos acréscimos dos beneficiários (por exemplo, transferências para contas de mesma titularidade ou mútuos realizados). Por outro lado, há decisões mais antigas que reconhecem que basta a contabilidade do contribuinte para fazer prova do pagamento (acórdão nº 1402-001.202).

O Carf consolidou a sua jurisprudência, em nosso entender corretamente, no sentido de que a demonstração efetiva do pagamento é pressuposto para a aplicação do IRRF do artigo 61 (acórdão nº 1102-000.947, 1302-000.268, 1201-000.268, 1302-003.910, 9101-004.385, 2301-005.760, 1301-003.814 etc.). Inclusive, há diversos acórdãos que reconhecem a esse vício a natureza material (e.g. acórdão nº 1201-002.699).

Terceira questão: a possibilidade de compensação das retenções da fonte pagadora ou cobrança do IRRF sobre o pagamento líquido de retenções

Outra questão que tem sido recorrente nos julgamentos do IRRF, especialmente nos casos em que a cobrança é mantida, é a discussão sobre a possibilidade de compensação – no bojo do próprio processo relativo ao auto de infração – de outros tributos pagos, seja pela própria fonte pagadora, na operação, seja pelo beneficiário (pessoa física ou jurídica).

Aqui, enfrentaremos a situação na qual os pagamentos realizados pela fonte pagadora – que objeto de cobrança do IRRF – foram também objeto de retenções na fonte, na condição de antecipação do tributo devido pelo beneficiário, quando da realização dos pagamentos, tema esse objeto de análise recente pelo acórdão nº 9101-007.068 [3]. Esse acórdão foi decorrência do recurso especial interposto contra o acórdão nº 1201-003.195, e teve como paradigma para sua admissão o acórdão nº 1401-003.046.

Frise-se, inicialmente, que essa questão se apresenta de maneiras sutilmente distintas nas decisões mencionadas: 1) como um pedido para deduzir as retenções na fonte já recolhidas nas operações objeto do IRRF do artigo 61, com o valor cobrado no auto de infração (e.g. acórdãos nº 9101-007.068 e 1201-003.195); ou 2) como um pedido para que a base de cálculo do IRRF seja o valor líquido pago, descontadas as retenções legais realizadas, por não serem pagas aos beneficiários (e.g. acórdão 1401-003.046 [4]).

Apesar de formulações similares, elas não conduzem a um mesmo efeito econômico sobre o tributo cobrado. Consideremos um pagamento de R$ 100, sujeito ao IRRF de 35%, e cuja retenção na fonte, por antecipação, está sujeita à alíquota de 10% (o que equivale a uma retenção de R$ 10). Na primeira hipótese, ao reajustarmos a base de cálculo chega-se a um valor de R$ 153,84, correspondendo a um IRRF de R$ 53,84 que, compensando a retenção feita, totalizaria uma cobrança de R$ 43,84. Na segunda hipótese, seria feito o reajustamento da base considerando-se o valor líquido do pagamento (R$ 90), totalizando R$ 138,46, correspondente a um IRRF de R$ 38,46.

Voltando ao acórdão nº 9101-007.068, que reconheceu o direito do contribuinte de abater do IRRF (de 35%) os valores que foram objeto de retenção na fonte (como antecipação), nas operações realizadas.

O voto vencedor aduziu que o IRRF continua sendo um tributo sobre a renda, distinguindo-se apenas enquanto técnica de arrecadação. A relatora aponta que o IRRF do artigo 61 e o IRF-antecipação seriam diferentes quanto a três aspectos, apenas: 1) a responsabilidade exclusiva da fonte no primeiro, ao passo que, no segundo, o imposto passaria a ser exigido do beneficiário, após o prazo de entrega da declaração de ajuste anual; 2) o primeiro exigiria o reajustamento da base de cálculo, enquanto no segundo esta seria o valor do pagamento; e 3) no primeiro, o ônus é arcado pela pessoa que realiza o pagamento, enquanto, no segundo, é repassado ao contribuinte.

Apesar dessas distinções, a relatora entendeu que seriam tributos sobre a mesma materialidade, com o mesmo contribuinte e o mesmo responsável tributário, donde não permitir a dedução seria cobrar duas vezes sobre o mesmo acréscimo patrimonial, razão pela qual a compensação seria cabível. Há uma declaração de voto divergente, mas cuja discordância se baseia no fato de que não seria possível verificar que as retenções teriam a mesma materialidade e o mesmo contribuinte, pois os destinatários dos pagamentos poderiam ter remetido esses recursos para sócios, alterando o beneficiário efetivo dos pagamentos.

Com a devida vênia à posição da ilustre relatora, não nos parece que esteja correta a aproximação entre os dois tributos.

Em primeiro lugar, trata-se de cobranças de naturezas distintas: o IRRF do artigo 61 é uma tributação definitiva na qual a fonte é substituto tributário, enquanto no IRF-antecipação, a fonte é um agente de retenção e repasse de parte do valor pago, sem que isso altere a sujeição passiva, que continua sendo o beneficiário do pagamento. Portanto, são obrigações de natureza distinta (a primeira principal e a segunda acessória), com fundamentos legais distintos no CTN (artigo 128 e artigo 45, p.u., respectivamente), também com sujeitos passivos distintos.

Em segundo lugar, a própria base de cálculo dos dois pagamentos é distinta: para o IRRF (artigo 61), a base de cálculo é o pagamento, sendo esse valor sujeito a reajustamento, por ser considerado líquido, por outro lado, para o IRF-antecipação, é possível realizar deduções na apuração da sua base de cálculo (e.g. artigo 226 do RIR/2018), além da sua confrontação com os demais rendimentos e gastos, nas declarações de ajuste. Não só isso, o IRRF deve incidir, em nosso entender, no valor do pagamento líquido das retenções na fonte a título de antecipação, enquanto o IRF-antecipação é descontado considerando o valor bruto da remessa.

Em terceiro lugar, a respeito do ônus econômico do imposto: em ambos os casos, o ônus deve ser passível de repasse ao beneficiário, nunca incidindo sobre o substituto ou agente de retenção. Em relação ao IRRF, isso decorre do próprio artigo 128 do CTN, que exige a sua conexão com o fato gerador, para que possa se ressarcir do tributo que será recolhido na condição de substituto. Em todas as tributações definitivas na fonte, o substituto tem o direito de se ressarcir do tributo recolhido. Ocorre que, nas autuações de IRRF do artigo 61, o pagamento é feito sem considerar a retenção e a cobrança é feita contra o substituto, sem prejuízo do direito de se ressarcir civilmente do beneficiário, pelo tributo que lhe foi cobrado.

A situação seria distinta, por exemplo, se a fonte pagadora, cônscia de que se trata de um pagamento a beneficiário não identificação, já procedesse a retenção e recolhimento do IRRF do art. 61 – o que evidencia que esse ônus econômico sobre a fonte pagadora é algo contingente, e não essencial ao modelo de tributação.

Em quarto lugar, são tributos cuja titularidade do direito à compensação pertence a pessoas distintas. A compensação do IRRF definitivo cabe à fonte pagadora, ao passo que a compensação do IRF-antecipação caberia ao beneficiário, por meio da declaração de ajustes apresentada posteriormente. Inclusive, permitir a compensação do segundo com o primeiro, no bojo de uma autuação lavrada contra a fonte pagadora, poderia conduzir a uma dupla compensação desses valores, na fonte pagadora e no beneficiário [5].

Parece-nos, portanto, que nesse caso a pergunta que deve ser feita não é se foram feitas retenções no momento do pagamento, a serem compensadas do IRRF cobrado no auto de infração, mas sim se a base de cálculo do IRRF considerou apenas o valor líquido dos pagamentos, descontando eventuais retenções na fonte que não foram objeto de repasse para o beneficiário.

Tendo em vista que o IRRF do artigo 61 incide sobre o pagamento efetuado ou recursos entregues, parece-nos que o correto é que os valores relativos às retenções na fonte sejam descontados na apuração da sua base de cálculo, sob pena de cobrança sobre valores não disponibilizados ao beneficiário.

Conclusão

Como se vê, a complexidade envolvendo o tema ainda está longe de se esgotar. As questões abordadas no texto de hoje disseram respeito especialmente às condições de incidência do IRRF e à mensuração de sua base de cálculo.

Nas próximas, outros pontos instigantes e controversas serão abordadas, inclusive trazendo algumas sugestões de lege ferenda para aprimoramento desse dispositivo.

 


[1] Artigo 61 da Lei nº 8.981/1995 e suas controvérsias no Carf (parte 1) (conjur.com.br)

[2] O artigo 61 da Lei 8.981/1995 e suas controvérsias no Carf (parte 2) (conjur.com.br)

[3] J. 11/07/2024.

[4]Com efeito, a base de cálculo do IRRF, antes do seu reajustamento determinado pelo § 3º do art. 61 da Lei nº 8.981, de 1985, é o valor do pagamento considerado sem causa, assim entendido o valor líquido da operação, ou seja, já deduzidas as retenções legais.

[5] Por outro lado, a compensação do IRF-antecipação no beneficiário está condicionada ao oferecimento dos valores à tributação, o que se relaciona a um outro problema, relacionado à cobrança simultânea do IRRF na fonte e da tributação do rendimento no beneficiário – problema esse que será abordado em textos futuros.

Autores

  • é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, com estágios pós-doutorais de pesquisa na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen (MPI), doutor em direito tributário pela USP (Universidade de São Paulo), mestre em direito tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, professor permanente do mestrado profissional do Cedes, do IBDT e da Apet.

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