Opinião

Judicialização da infância: quando o acolhimento deixa de ser excepcional e se torna a regra

Autor

  • Leandro Sarmento d'Ornellas

    é professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) analista Judiciário do TJRJ professor Universitário e autor e coautor de livros publicados pela Editora Juspodivm.

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16 de outubro de 2024, 7h14

O acolhimento institucional, anteriormente denominado abrigamento em entidade, é uma das medidas de proteção previstas pela Lei Federal nº 8.069/1990 [1] (ECA) aplicáveis a crianças e adolescentes [2] sempre que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados.

Reprodução/TV Brasil

Sendo medida de proteção, o acolhimento institucional não pode ser confundido com alguma das medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes que pratiquem atos infracionais. São institutos jurídicos distintos: o acolhimento institucional (ECA, artigo 101, VII) e a internação em estabelecimento educacional (ECA, artigo 112, VI). Aquele é medida protetiva e este é medida socioeducativa, que implica em privação da liberdade.

Acolhimento na teoria

Concepção do acolhimento anterior à nova Lei de Adoção

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já em sua redação original, dispunha no artigo 136, I, parte final, que cabia ao Conselho Tutelar aplicar as medidas de proteção previstas no artigo 101, I a VII. Logo, o então chamado abrigamento (previsto no inciso VII do artigo 101) era uma das atribuições do Conselho Tutelar.

Tal atribuição não era exclusiva do Conselho Tutelar, uma vez que a autoridade judiciária também poderia determinar o abrigamento de uma criança ou adolescente no curso de um processo judicial. Mesmo assim, não havia um controle direto do Poder Judiciário relativamente aos menores de 18 anos abrigados em cada comarca, já que rotineiramente, essa tarefa cabia ao Conselho Tutelar.

Acolhimento após a nova Lei de Adoção

Com o advento da Lei Federal nº 12010/2009 [3], que ficou conhecida como Nova Lei de Adoção, houve uma profunda mudança nas regras que disciplinam o abrigamento, a começar pela sua denominação, que passou a ser acolhimento institucional. A alteração mais substancial foi na autoridade detentora do poder de aplicar a medida.

A partir de 2009, o afastamento de criança ou adolescente do convívio familiar tornou-se competência exclusiva do juiz de direito [4]. Assim, o encaminhamento de crianças e adolescentes às instituições de acolhimento institucional, governamentais ou particulares, passou a depender da expedição de uma guia de acolhimento, por parte da autoridade judiciária.

Spacca

Entretanto, a redação do artigo 136, I do ECA, que dispõe ser atribuição do Conselho Tutelar a aplicação da maioria das medidas de proteção, inclusive o acolhimento institucional, permaneceu intacta. Pergunta-se: conforme o novo entendimento do ECA sobre o acolhimento, é possível que o Conselho Tutelar aplique essa medida protetiva? Em caráter excepcional, sim. É o que se interpreta do disposto no artigo 93 da mesma lei:

Art. 93.  As entidades que mantenham programa de acolhimento institucional poderão, em caráter excepcional e de urgência, acolher crianças e adolescentes sem prévia determinação da autoridade competente, fazendo comunicação do fato em até 24 (vinte e quatro) horas ao Juiz da Infância e da Juventude, sob pena de responsabilidade.

Logo, há situações em que não é possível aguardar a determinação judicial, bem como a expedição de guia de acolhimento. Um exemplo é a situação de risco constatada pelo Conselho Tutelar fora do horário de expediente forense. Nesta hipótese, entende-se que o acolhimento poderá ser feito sem ordem judicial pelo Conselho Tutelar, devendo-se, no entanto, comunicar ao juiz a aplicação da medida em até 24 horas.

Outra inovação é a disposição expressa do ECA [5] de que o acolhimento institucional é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para reintegração familiar ou colocação em família substituta. Como arremate, a lei frisa que o acolhimento não implica em privação de liberdade, diferenciando de uma vez por todas o acolhimento das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação.

Portanto, o acolhimento só deve ocorrer em último caso, em situações nas quais as medidas protetivas mais brandas não foram eficazes. Também o período do acolhimento não pode ser indefinido, pois se trata de medida provisória por força da lei.

Acolhimento institucional na prática

Acolhimento como solução mágica aos problemas do Conselho Tutelar

Infelizmente, o que se vê no dia a dia difere muito do imaginado pelo legislador. O acolhimento é utilizado como uma solução rápida aos casos atendidos por alguns conselhos tutelares, que preferem solicitar esta medida excepcional ao juiz ou até mesmo efetuar o acolhimento de urgência em horário em que não há mais atendimento forense.

Percebe-se que as medidas de proteção elencadas no artigo 101, I a VI — mais brandas, mas não menos efetivas —, não são aplicadas comumente pelos conselhos tutelares. Mas por que isso acontece? Apenas um conselheiro tutelar poderia responder categoricamente a esta pergunta. Aqui, podemos formular hipóteses. Uma explicação para a não aplicação das medidas mais brandas é o fato de que o acolhimento transforma o problema do Conselho Tutelar em um problema do juiz. Logo, ao acolher uma criança, promove-se a judicialização de uma situação que poderia ser sanada sem intervenção do Poder Judiciário. Com o acolhimento, em tese, o trabalho do Conselho Tutelar naquele caso está encerrado.

A propósito, um dos motivos da criação do Conselho Tutelar pelo ECA foi o de evitar a judicialização de todos os casos envolvendo infância e juventude, pois o legislador entendeu que o Conselho Tutelar — não limitado por normas processuais — poderia ser mais ágil na solução dos problemas. Judicializar um caso que poderia ser resolvido extrajudicialmente vai contra os princípios do ECA, torna burocrática e lenta a resolução do caso e, por fim, sobrecarrega ainda mais o Poder Judiciário.

Outra hipótese que pode explicar a relutância do Conselho Tutelar em aplicar medidas protetivas mais suaves diz respeito à quantidade de trabalho que o referido órgão terá para aplicar a medida e, também, para constatar a eficácia e os resultados desta aplicação. Vejamos quais são as medidas protetivas aplicáveis pelo Conselho Tutelar, excluído o acolhimento (ECA, artigo 101, I a VI):

  • I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;
  • II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;
  • III – matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;
  • IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;
  • V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;
  • VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;

Exceto quanto às providências previstas nos incisos I e II, cuja execução é relativamente simples e não depende da intervenção de outros órgãos, as demais (incisos III a VI) requerem uma solicitação do Conselho Tutelar e o atendimento (ou não) deste pedido por outro órgão público: escolas, programas comunitários, clínicas e postos de saúde e clínicas para tratamento de dependentes químicos.

Com a aplicação de alguma das medidas acima elencadas, o Conselho Tutelar permanece responsável pela condução do caso, devendo orientar, apoiar e acompanhar a criança e o adolescente. Além disso, o conselheiro deve conhecer bem a estrutura dos órgãos municipais, a fim de acessar os serviços adequados a cada caso.

Conclusão

O acolhimento institucional, embora concebido como medida excepcional e temporária, tem sido excessivamente utilizado pelos conselhos tutelares na prática, muitas vezes em detrimento de outras ações protetivas mais brandas e eficazes.

Esse cenário gera uma judicialização desnecessária, contrariando os princípios fundamentais do ECA e sobrecarregando o Poder Judiciário.

Para reverter essa situação, é imprescindível que o Conselho Tutelar recupere sua autonomia e capacidade de agir extrajudicialmente, recebendo suporte adequado dos órgãos municipais e do Poder Público.

Somente assim será possível garantir a proteção integral de crianças e adolescentes, evitando que a medida de acolhimento se torne um caminho padrão e permanente para problemas que poderiam ser resolvidos de maneira mais ágil e humanizada.

 


[1] BRASIL, Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), art. 101, VII.

[2] O ECA (art. 2º) define criança como sendo a pessoa de 0 a 11 anos e adolescente a pessoa entre 12 e 17 anos.

[3] BRASIL, Lei nº 12010 de 3 de agosto de 2009. Nova Lei de Adoção.

[4] ECA, art. 101, §2º.

[5] ECA, art. 101, §1º.

Autores

  • é professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), analista Judiciário do TJRJ, professor Universitário e autor e coautor de livros publicados pela Editora Juspodivm.

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