Escritos de Mulher

Inconformidade do reconhecimento facial no contexto das garantias de direitos

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16 de outubro de 2024, 11h13

O manejo da tecnologia para garantir a segurança pública no Brasil tem aumentado diariamente. Um dos métodos utilizados é o reconhecimento facial, que vem sendo aplicado com frequência. Os defensores de seu uso apontam que os sistemas possuem alta precisão e gozam de grande confiabilidade. Afirmam tratar-se de um mercado que, diante da sua eficiência e inovações, tem se expandido a cada dia, e, não raro, é empregado pela polícia em espaços públicos, e em uma série de lugares, tais como: escolas, hospitais, centros urbanos, estádios de futebol dentre outros.

É crucial dizer que, para lidar com os desafios brasileiros no âmbito da segurança pública, há intenso investimento financeiro. Citamos, a título exemplificativo, o Réveillon de 2023 em Copacabana, no Rio de Janeiro que, certamente, foi um dos mais vigiados, pois câmeras com reconhecimento facial e drones auxiliaram no patrulhamento da festa.

A implantação da tecnologia na segurança pública, ao nosso ver, pode trazer graves consequências ou violações de direitos, sobretudo quando pensamos em privacidade e intimidade das pessoas.  Além disso, um sistema de monitoramento em larga escala pode ter um viés discriminatório, tendo como consequência erros, prisões injustas, especialmente para pessoas negras, intensificando o racismo estrutural presente em nossa sociedade.

Não é novidade que a população carcerária é formada majoritariamente por pessoas negras, e, infelizmente, este patamar não diminui.  Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança pública (2023), houve um crescimento de 381% de negros encarcerados de 2005 a 2022, enquanto o crescimento de brancos foi de 215%. As pessoas negras representam 69,1% dos presos, com os homens negros correspondendo a 86% desse total de forma crescente, enquanto o número de brancos tende a diminuir.

Cuidado com práticas racistas

Neste sentido, é preocupante lembrar que o uso da tecnologia por meio de equipamentos operados por seres humanos pode perpetuar práticas racistas, uma vez que essas pessoas têm seus próprios conceitos e qualificações.  Quanto às mulheres, vale o registro de que as negras, em consonância com algumas pesquisas, podem sofrer mais erros do sistema do que homens brancos.

Pretendendo fazer um alerta, no último dia 4 de outubro realizamos um evento na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em parceria com o IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e o CESec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), a fim de discutir o reconhecimento facial. Neste dia, pudemos noticiar, para reflexão, um caso de falha em reconhecimento facial e possível prática racista que nos causou perplexidade. Uma mulher psicóloga e coordenadora de promoção de igualdade racial de Nova Iguaçu, trabalhando há 10 anos na luta por igualdade racial, por ironia do destino, foi vítima de erro por reconhecimento facial. Ela foi abordada em uma conferência no Rio de Janeiro por três policiais do segurança presente, sob o argumento de que o sistema já tinha feito sua identificação, mas que, embora tivessem visto que não seria ela, seria necessária a apresentação de documentos.

Reprodução

As falhas que podem surgir na utilização do reconhecimento facial, no final das constas, podem resultar em ofensa à dignidade humana, princípio da presunção de inocência, entre outros princípios que são fundamentais e consagrados pela Constituição. A escassez de informações sobre o assunto e a ausência de legislação que possa proteger o direito da nossa sociedade é, por outro lado, motivo de preocupação.

Efetivamente, ao que parece, a população, de modo geral, não tem conhecimento sobre possíveis protocolos a serem seguidos em caso de erro na utilização da tecnologia. Dados sigilosos são armazenados sem que as pessoas tenham conhecimento e sem qualquer transparência sobre o armazenamento.

Crianças e adolescentes

O ano de 2023 também foi marcado pela implementação das câmeras de reconhecimento facial em estádios de futebol, sob o argumento de que tal tecnologia garante a segurança pública. Brasileiros, então, passaram a ter suas atividades de lazer monitoradas, através de vigilância constante. E mais, até mesmo as crianças e adolescentes, que muito comparecem aos estádios estão sendo monitoradas, já que não há distinção na utilização das câmeras.

Submeter crianças e adolescentes ao manejo da tecnologia de reconhecimento facial, ao nosso ver, gera uma necessária e aprofundada reflexão. Explica-se. A Lei Geral de Proteção de Dados recomenda que o tratamento de dados de crianças e adolescentes seja feito em seu melhor interesse. E também deverá haver consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou responsável.

De acordo com o artigo 14 da LGPD: “O tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos deste artigo e da legislação pertinente. § 1º O tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal”.

Não perdemos de vista, ainda, que dentro desta interessante reflexão, há a afronta ao Estatuto da Criança e Adolescente.

Porém, isso não é tudo! O relatório “Esporte, Dados e Direitos: O uso de reconhecimento facial nos estádios brasileiros”, produzido pelo Panóptico do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESec) que acompanha a utilização destas tecnologias desde 2019 revela a preocupação com este monitoramento de crianças e adolescentes, dizendo que: “Em qualquer caso, o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes deve se limitar ao mínimo necessário para o atendimento da finalidade pretendida. Além disso, a utilização de dados pessoais de crianças e de adolescentes enquadra-se como um tratamento de dados pessoais de alto risco”.

Já nos encaminhando para o fim, pensamos que vivemos alguns paradoxos. Nossa paixão, que é o futebol, e, certamente o nosso dia a dia, são monitorados a todo tempo, e, talvez, com algumas violações de direitos, diante de possíveis falhas no reconhecimento facial, tendo por consequência prisões injustas, violações à dignidade humana e ao princípio da presunção de inocência.

Outro paradoxo é o crescente aumento da tecnologia, enquanto em alguns lugares do mundo já se discute seu banimento.

E, agora, trago aqui uma reflexão: Como garantir segurança pública e preservar direitos? Talvez, ainda seja necessário um longo caminho para que possamos entender que a garantia de um direito não pode implicar na falência de outros tantos direitos de dimensão semelhante. Sigamos em frente!

Autores

  • é defensora pública do estado do Rio de Janeiro; atual coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro; mestre em Direito; especialista em Relações Étnico-Raciais; professora de Direito Penal da Fundação-Escola da Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro.

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