Garantias do Consumo

A relação da multa do Procon com o preço do produto/serviço

Autor

  • Leonardo Garcia

    é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

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16 de outubro de 2024, 8h00

As multas aplicadas pelo Procon são essenciais para a efetividade da legislação consumerista, atuando como um desestímulo para práticas abusivas por parte dos fornecedores e incentivando a adequação às normas de defesa do consumidor. O objetivo principal não é o caráter ressarcitório, mas sim a proteção da coletividade, prevenindo a reincidência de infrações que prejudicam os consumidores e garantem a ordem pública e o interesse social.

A eficácia das multas está diretamente ligada à sua capacidade de impactar economicamente o infrator. Por isso, o valor da multa é graduado levando em consideração a gravidade da infração, a vantagem obtida pelo fornecedor e sua condição econômica.

Desta forma, a multa aplicada pelo Procon não deve ser vinculada ou relacionada ao preço do produto ou serviço, objeto da autuação administrativa. O foco da dosimetria deve ser a gravidade da infração cometida pelo fornecedor, a qual causa prejuízo aos direitos dos consumidores e à sociedade como um todo.

A desconsideração do preço do produto ou serviço como fator determinante para o valor da multa aplicada pelo Procon é crucial para a efetividade da legislação consumerista. Embora o senso comum possa levar a uma associação simplista entre o valor do bem e a penalidade por sua utilização indevida, tal raciocínio ignora a essência da proteção ao consumidor e a finalidade precípua da multa: coibir práticas abusivas e garantir a harmonia nas relações de consumo.

A lógica de vincular a multa ao valor do produto/serviço é falha e pode gerar situações extremamente prejudiciais aos consumidores e à harmonia das relações de consumo. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) visa proteger o consumidor em sua vulnerabilidade, buscando equilibrar a relação entre este e o fornecedor.

Apegando-se ao valor do produto ou serviço como balizador da multa, estar-se-ia criando um cenário de impunidade para infrações envolvendo bens de baixo valor, ainda que estas causem danos significativos à coletividade. A título de exemplo, a venda de alimentos vencidos ou deteriorados, medicamentos fora da validade ou produtos perigosos, como cosméticos sem a devida segurança, poderiam ser punidas com multas irrisórias, caso o valor da multa fosse atrelado ao preço desses produtos, incentivando a reincidência por parte dos fornecedores e colocando em risco a saúde e segurança da população.

Vejamos os argumentos que demonstram a impropriedade da vinculação entre a multa e o preço do produto/serviço:

Irrelevância do preço na abordagem da infração: A sanção aplicada pelo Procon tem como objetivo reprimir a prática abusiva e evitar a reincidência, atuando na defesa de um interesse social. O valor do produto/serviço, nesse contexto, é um fator de menor relevância. O que se busca coibir é a infração em si, como a venda de produtos com prazo de validade vencido, a falta de informação clara e precisa, ou a recusa injustificada na execução da garantia, independentemente do valor do bem.

Risco de penas insignificantes: Se a multa for fixada com base em produtos de baixo valor, a penalidade se torna ineficaz para coibir as práticas abusivas. Imagine, por exemplo, um fornecedor que comercializa alimentos vencidos em grande escala. Se a multa for irrisória, ele não terá incentivo para cumprir a legislação, colocando em risco a saúde de inúmeros consumidores.

Isonomia e justiça social: A vinculação da multa ao valor do produto/serviço pode gerar situações de injustiça, punindo de forma desigual fornecedores que cometeram a mesma infração. A capacidade econômica do fornecedor deve ser considerada na aplicação da multa, e não o valor do produto. Uma multa aplicada a uma grande rede de supermercados, por exemplo, deve ter um efeito dissuasório maior do que a mesma multa aplicada a um pequeno comerciante.

Existência de critérios legais para dosimetria: O CDC, no artigo 57, já define critérios claros para a dosimetria da multa, considerando a gravidade da infração, a vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor. Vincular a multa ao preço do produto seria ignorar esses parâmetros já estabelecidos em lei.

Ademais, a baixa quantia das multas aplicadas pelos Procons, principalmente se atreladas ao valor do produto /serviço, acaba por incentivar a prática infrativa, desencadeando a judicialização e desestimulando acordos extrajudiciais. A penalidade branda torna-se um custo operacional insignificante, principalmente para grandes empresas, como bancos e empresas de telecomunicação, incentivando a continuidade das infrações, já que o valor da multa não impacta significativamente seus lucros.

Essa situação configura o chamado “ilícito lucrativo”, em que a empresa prefere arcar com a multa a mudar sua conduta, pois o lucro obtido com a prática abusiva supera o valor da penalidade. Diante da possibilidade de reduzir ainda mais as multas na esfera judicial, utilizando argumentos genéricos de razoabilidade e proporcionalidade, as empresas se sentem incentivadas a judicializar as autuações, ao invés de buscarem a conciliação e o acordo extrajudicial [1].

A judicialização, por sua vez, além de sobrecarregar o Judiciário, torna o processo mais demorado e oneroso para o Estado, que acaba por arcar com os custos da ação e, muitas vezes, com honorários advocatícios que podem até mesmo superar o valor da multa, inicialmente reduzida. Esse ciclo vicioso fragiliza a atuação dos Procons, enfraquecendo o caráter punitivo e pedagógico das multas e perpetuando as práticas abusivas contra o consumidor.

Assim, a vinculação da multa do Procon ao preço do produto ou serviço é uma proposta que enfraquece o CDC e coloca em risco a defesa dos direitos dos consumidores. A punição pela infração deve ser justa, proporcional à gravidade da conduta, e considerar a capacidade econômica do fornecedor. Somente assim a multa terá um efeito pedagógico e preventivo, desestimulando a reincidência e contribuindo para um mercado de consumo mais ético.

A atuação firme e coerente do Judiciário, em consonância com a legislação consumerista, é fundamental para garantir a efetividade das sanções administrativas, coibindo a prática de ilícitos lucrativos e incentivando a resolução de conflitos de consumo de forma célere e justa.

Mais rigor

O Procon de São Paulo, por exemplo, aplica multas milionárias a empresas que cometem infrações, independentemente do valor do bem. A jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), reconhecendo a importância da proteção aos direitos do consumidor, tem se mostrado mais rigorosa na análise de recursos contra multas do Procon, priorizando a punição adequada aos infratores e a mudança de comportamento por meio de penalidades que reflitam a gravidade de seus atos.[2]

Assim, espera-se que outros Tribunais de Justiça sigam o exemplo do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) ao manterem as multas aplicadas pelos Procons e ao não vincularem o valor dessas multas ao preço do produto ou serviço objeto da autuação.

A jurisprudência do TJ-SP, ao manter as multas aplicadas pelo Procon e ao considerar a gravidade da infração, a capacidade econômica da empresa e o efeito pedagógico da punição, contribui para a segurança jurídica e para a efetividade da legislação consumerista.

É essencial que a dosimetria da pena seja fundamentada em critérios objetivos, garantindo a punição adequada aos infratores e a mudança de comportamento por meio de penalidades que reflitam a gravidade de seus atos. Afinal, o objetivo da multa do Procon não é gerar lucro, mas sim proteger o consumidor e garantir a harmonia nas relações de consumo.

 


[1] Como exemplo: “ACÓRDÃO EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA. AUTO DE INFRAÇÃO. MULTA IMPOSTA PELO PROCON. REDUÇÃO. ADEQUAÇÃO AOS CRITÉRIOS DE RAZOABILIDADE E DE PROPORCIONALIDADE. 1. – O Procon, na condição de órgão de defesa do consumidor, exerce poder de polícia em relação às normas protetivas estabelecidas na Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 ( Código de Defesa do Consumidor), o que o habilita a impor multas em casos de transgressões daquelas regras. 2. – As multas aplicadas pelo Órgãos de Defesa do Consumidor estão sujeitas a controle de razoabilidade e de proporcionalidade a ser realizado pelo Poder Judiciário. 3. – No caso, o valor da multa aplicada pelo Procon foi reduzido de R$102.267,10 (cento e dois mil duzentos e sessenta e sete reais e dez centavos) para R$10.000,00 (dez mil reais). Tal redução deve ser mantida porque está em harmonia com a jurisprudência do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. 4. – Recurso desprovido.” (TJ-ES – AC: 00010596420148080024, Relator: DAIR JOSÉ BREGUNCE DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 05/10/2021, TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 19/10/2021)

 

[2] TJ-SP mantém multa de mais de R$ 10 milhões imposta pelo Procon-SP a operadora de telefonia. https://portal.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=88393&pagina=3#:~:text=NOT%C3%8DCIAS-,TJSP%20mant%C3%A9m%20multa%20de%20mais%20de%20R%24%2010%20milh%C3%B5es%20imposta,SP%20a%20operadora%20de%20telefonia&text=Verificadas%20irregularidades%20contra%20consumidores. Consulta em 26/09/2024.

Autores

  • é procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, diretor do Brasilcon, membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, autor dos livros Código de Defesa do Consumidor Comentado (2024) e Lei do Superendividamento Comentada e Anotada (2024), ambos pela Editora Juspodivm.

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