Opinião

STJ e a penhorabilidade de contas: um precedente perigoso e a crise da dignidade humana

Autor

  • João Lister Pereira

    é advogado graduado pela Uniube (Universidade de Uberaba) pós-graduado em Direito Empresarial com titulação MBA pela FGV (Fundação Getulio Vargas) ex-consultor jurídico da Superintendência do Daerp (Departamento de Água e Esgoto de Ribeirão Preto) e ex-diretor presidente do Jornal Diário.

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15 de outubro de 2024, 18h14

O Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão, proferiu um entendimento que vem causando debates acalorados no meio jurídico: a impenhorabilidade de valores depositados em contas de poupança ou correntes, até o limite de 40 salários mínimos, deve ser alegada pelo devedor na primeira oportunidade que tiver de se manifestar nos autos. Em outras palavras, essa proteção, prevista na legislação brasileira, não será aplicada de ofício pelo magistrado, cabendo ao devedor levantá-la como defesa.

Esse posicionamento do STJ, embora aparentemente técnico, encerra questões profundas e problemáticas. Sob a ótica do formalismo processual, pode-se argumentar que o tribunal se limitou a exigir do devedor um procedimento adequado dentro das normas processuais. No entanto, quando analisamos essa decisão de forma mais ampla, percebemos que o tribunal se coloca em uma posição ambígua quanto à defesa da dignidade humana e aos limites de sua própria competência constitucional.

 O princípio da impenhorabilidade e a proteção da dignidade humana

A impenhorabilidade de valores depositados em contas de poupança, correntes ou assemelhadas, até o montante de 40 salários mínimos, tem fundamento no artigo 833, inciso X, do Código de Processo Civil. Trata-se de uma garantia criada pelo legislador para assegurar a subsistência mínima do devedor e de sua família, resguardando valores que, embora possam estar depositados em instituições bancárias, são essenciais para a manutenção de uma vida digna. Essa proteção deriva de princípios constitucionais, especialmente o da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1º, inciso III, da Constituição.

Ao condicionar a aplicação dessa regra à manifestação do devedor, o STJ lança um precedente que pode, em última instância, prejudicar aqueles que, por desconhecimento técnico ou falta de acesso a uma defesa jurídica eficaz, deixam de invocar esse direito no momento oportuno. A decisão revela uma postura de formalismo excessivo, que coloca em risco a efetividade das garantias constitucionais.

O silogismo invertido: a penhorabilidade imposta pelo magistrado

Se, por um lado, o STJ afirma que a impenhorabilidade até o limite de 40 salários mínimos não pode ser aplicada de ofício, mutatis mutandis, é possível inferir, por raciocínio lógico e hermenêutico, que a penhorabilidade desses valores poderia, sim, ser reconhecida de ofício pelo magistrado. Esse é o cerne da crítica que se pode dirigir à decisão: ao limitar a aplicação da impenhorabilidade a uma manifestação expressa do devedor, o tribunal abre caminho para que a penhora, que deveria ser uma exceção cuidadosa e ponderada, seja aplicada com maior facilidade, sem as devidas considerações quanto ao impacto que isso pode causar na vida do executado.

Spacca

Em termos práticos, a decisão inverte a lógica da proteção constitucional da dignidade humana. Em vez de assegurar que o magistrado, em qualquer fase do processo, busque garantir o mínimo existencial do devedor, o STJ, por meio de uma espécie de silogismo judicial, reconhece tacitamente a possibilidade de o juiz autorizar a penhora de valores que deveriam estar protegidos por lei, caso o devedor não se manifeste tempestivamente.

A teratologia jurídica e o sofisma da competência

O que torna essa decisão ainda mais preocupante é o fato de o STJ, ao condicionar a aplicação da impenhorabilidade à iniciativa da parte, criar uma norma que extrapola sua função de interpretação do direito. O tribunal, ao legislar sobre o tema, ultrapassa os limites de sua competência constitucional, invadindo a seara legislativa, onde já existe regulamentação clara.

O legislador, ao estabelecer o limite de 40 salários mínimos como impenhoráveis, não deixou margem para que essa proteção fosse facultativa ou dependesse de iniciativa do devedor. Pelo contrário, a regra foi criada para ser uma garantia objetiva, aplicada de ofício pelos magistrados. Ao alterar essa dinâmica, o STJ pratica um verdadeiro sofisma jurídico, pretendendo justificar sua decisão com base em normas processuais, mas, na realidade, subverte o sistema de proteção ao mínimo existencial.

A crítica mais contundente que se pode fazer a essa decisão é que ela constitui um ato teratológico, ou seja, um ato anômalo e desproporcional, que contraria a ordem jurídica vigente e os princípios fundamentais da Constituição. O STJ, ao criar uma condição para a aplicação de uma regra de proteção, age de forma legislativa, alterando o equilíbrio entre credores e devedores de maneira injusta.

O impacto social da decisão

A decisão do STJ não deve ser vista apenas como uma questão técnica do direito processual. Ela carrega um impacto profundo na vida de milhares de brasileiros que se encontram em situação de vulnerabilidade financeira. O reconhecimento da impenhorabilidade de valores depositados em conta até o limite de 40 salários mínimos visa justamente a evitar que o devedor seja destituído dos meios básicos de sobrevivência.

Ao condicionar essa proteção à atuação processual do devedor, o STJ, na prática, desconsidera a realidade de muitos brasileiros que, por falta de acesso à Justiça ou por desconhecimento de seus direitos, podem não invocar essa defesa a tempo. O resultado é a possibilidade de uma penhora que agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade social e econômica.

Considerações finais

A recente decisão do STJ, ao condicionar a impenhorabilidade de valores depositados em conta à manifestação do devedor, constitui um perigoso precedente que enfraquece a proteção constitucional da dignidade humana. O tribunal, ao adotar um formalismo exacerbado, distancia-se de seu papel de guardião dos direitos fundamentais, colocando em risco a subsistência de muitos cidadãos. Trata-se de uma decisão que, além de juridicamente discutível, é socialmente preocupante, uma vez que amplia as desigualdades e penaliza os mais vulneráveis.

O STJ, ao agir desta forma, deve refletir sobre os impactos de suas decisões e sobre os limites de sua atuação no campo legislativo, sob pena de comprometer o próprio sentido da justiça em uma sociedade que preza pela dignidade e pelo respeito aos direitos fundamentais.

Autores

  • é advogado, graduado pela Uniube (Universidade de Uberaba), pós-graduado em Direito Empresarial, com titulação MBA, pela FGV (Fundação Getulio Vargas), ex-consultor jurídico da Superintendência do Daerp (Departamento de Água e Esgoto de Ribeirão Preto) e ex-diretor presidente do Jornal Diário.

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