Fábrica de Leis

Projeto que tem dois donos morre de fome? Uma análise da iniciativa parlamentar

Autor

  • Daniel Assis Brito

    é analista legislativo do Senado. É bacharel em Relações Internacionais pela UnB (Universidade de Brasília) e mestre em Políticas Públicas pela Hertie School of Governance.

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15 de outubro de 2024, 8h00

Diz a sabedoria popular que cão que tem dois donos morre de fome. Sem uma definição clara de responsabilidades entre os donos, nenhum deles assume o dever de alimentar o animal. Ambos esperam que o outro vá alimentar o cachorro, que acaba morrendo de fome. Será que essa lógica também valeria para os projetos de lei?

A resposta é não. Já foi diversas vezes demonstrado, em vários contextos, que projetos de lei com mais de um autor têm maior probabilidade de avançaram no processo legislativo — e serem aprovados. Além disso, parlamentares que se engajam em atividades de coautoria tendem a ser mais bem relacionados e ter mais sucesso em seus objetivos (Sciarini et al., 2021; Kirkland, 2011).

Sciarini et al. (2021) demonstraram que quanto maior for o rol de autoria de um projeto, quanto maior for o número de autores, maiores as chances de esse projeto avançar no parlamento da Suíça. Os autores vão além. Demonstraram, também, que projetos com autores de diferentes partidos e diferentes correntes ideológicas (bridging strategy) têm mais chances de ser aprovados do que aqueles cujos autores são do mesmo campo político (bonding strategy).

Parlamentares que se envolvem em bridging strategies buscam apoio de colegas fora de seu partido e campo político e, por isso, criam maiores redes de contato e têm acesso a uma maior quantidade de informações do que aqueles que permanecem restritos a seu grupo político. Rede de contatos e informações são ativos cruciais para o sucesso de qualquer parlamentar. Ademais, um projeto que foi discutido por um amplo espectro político tende a representar um consenso de diferentes visões. Daí o maior sucesso tanto dos parlamentares que se engajam na busca de coautores para seus projetos quanto dos projetos frutos dessa atividade.

Essa lógica também vale para o Congresso Nacional. Em uma análise da 56ª Legislatura da Câmara dos Deputados – 2019 a 2022, demonstrei que quanto maior o número de autores de uma proposição, maiores as chances de essa proposição avançar no processo legislativo (Brito, 2023). Cada autor adicional aumenta as chances de uma proposição chegar ao Plenário da Câmara em 2,18%. Essa análise também mostra que buscar apoio de parlamentares de outros partidos é uma estratégia bastante efetiva. Cada partido adicional representado na autoria da proposição aumenta em quase 30% as chances dessa proposição chegar ao Plenário da Casa.

ConJur

Portanto, tendo em vista que buscar coautoria é uma maneira de aumentar as chances de sucesso de seus projetos, é de se esperar que essa seja uma atividade frequente e que a maior parte dos projetos apresentados tenham diversos autores, certo? Errado.

Na 56ª Legislatura da Câmara dos Deputados, se considerarmos apenas as Propostas de Emenda à Constituição (PEC), Projetos de Lei (PL), Projetos de Lei Complementar (PLP), Projetos de Decreto Legislativo (PDL) e Projetos de Resolução da Câmara (PRC), foram apresentados 18.320 projetos de autoria de deputados. Destes, apenas 1.835 (aproximadamente 10%) são frutos de coautoria e têm mais de um autor [1]. E das 18.320 proposições analisadas, apenas 448 chegaram aos estágios finais de deliberação – o Plenário da Casa – até o final da Legislatura. Isso representa apenas 2.45%.

Projetos de autoria de deputados 18.320
Projetos com mais de um autor 1.835
Projetos que chegaram ao Plenário 448

Quantidade e qualidade

Parece ser um contrassenso. Proposições com mais de um autor têm maiores chances de avançarem em suas tramitações. No entanto, a grande maioria das proposições apresentadas pelas deputadas e deputados são de autoria individual. O que explica essa situação? Será que os deputados não se importam com a aprovação de seus projetos? Existe um custo muito alto para conseguir apoio às proposições?

Em um texto recente aqui neste espaço, João Trindade Cavalcante Filho apresenta uma possível resposta. Ele trata do que considera um número excessivo de proposições que são apresentadas na Câmara dos Deputados. Ainda segundo ele, a maioria é arquivada sem sequer ter sua constitucionalidade analisada no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça.

Ele aponta como um dos motivos a ideia de que a produtividade do Legislativo se mede pela quantidade de projetos aprovados – ou apresentados. Essa ideia é reforçada pelas próprias Casas Legislativas e por “prêmios” de “especialistas” que acabam reforçando e incentivando esse comportamento. Como uma possível solução, sugere a exigência de um requisito de apoiamento mínimo para a iniciativa legislativa. O número sugerido é de um décimo da Casa.

A ideia é que a exigência de um apoiamento mínimo deve forçar os parlamentares a buscar apoio para suas proposições antes de apresentá-las. Isso deve diminuir o número de proposições e, de acordo com as análises aqui apresentadas, aumentar a probabilidade de que essas proposições avancem no processo legislativo.

No entanto, é preciso compreender quais são os incentivos que levam os parlamentares a apresentar um grande número de proposições de autoria individual? Quais são os objetivos dos parlamentares? E se, de fato, a intenção dos parlamentares não for a de aprovar essas proposições?

Um primeiro ponto importante é aquele já levantado por João Trindade: a ideia de que produtividade legislativa se mede pela quantidade de proposições. Essa é uma noção compartilhada e reforçada pelos próprios parlamentares e pelas Casas Legislativas, pela imprensa, por especialistas, e pela sociedade, de uma maneira geral. Obviamente, se o “melhor” parlamentar é aquele que apresenta mais projetos, os parlamentares possuem o incentivo de apresentar mais projetos – que não precisam sequer serem analisados.

Esse ponto levanta uma questão interessante: como avaliar a atuação de um parlamentar? É uma questão que merece um melhor aprofundamento, mas que está além do escopo deste texto.

No entanto, outros incentivos influenciam as atividades dos parlamentares. Seguindo Sciarini et al. (2021), parlamentares são atores estratégicos que perseguem três objetivos: promover boas políticas públicas por meio da definição de agenda e atividade legislativa (orientados para políticas); aumentar as chances de reeleição ao enviar sinais aos eleitores e tentar garantir ganhos eleitorais (orientados para votos); e aumentar o prestígio e a influência institucionais na Casa Legislativa (orientados para cargos).

A apresentação de proposições pode ser utilizada para atingir os três objetivos, de forma conjunta ou isolada. Algumas proposições podem servir apenas para sinalizar preferências e “mostrar trabalho” aos eleitores, com objetivos eleitorais, sem o objetivo de melhorar as políticas públicas. Portanto, o fato de grande parte das proposições não avançarem no processo legislativo não é, necessariamente, um fracasso de seus proponentes. A simples apresentação dessas proposições já cumpriu seu objetivo.

Por outro lado, as proposições que têm como objetivo promover boas políticas públicas, essas sim, precisam ser aprovadas, ou pelo menos incentivar o debate sobre o tema, para cumprir seus objetivos. Podemos supor que nesses casos os parlamentares busquem apoio para seus projetos e que isso se traduza, em alguns casos, em projetos com mais de um autor para terem maiores chances de aprovação.

No entanto, não é tarefa fácil identificar qual é o objetivo de um parlamentar ao propor um projeto de lei – se é que é possível. Ademais, se considerarmos que a apresentação de proposições é utilizada pelos parlamentares como uma maneira de alcançar seus objetivos eleitorais – ser reeleito, e que essa estratégia tem um custo quase zero para eles, podemos esperar uma grande resistência a propostas de limitação da iniciativa parlamentar individual.

E ficam os questionamentos: é legítimo, ou desejável, que o instrumento de iniciativa parlamentar seja utilizado para esses fins? É um problema os parlamentares utilizarem a apresentação de proposições como forma de enviar sinais a seus eleitores? Que outros instrumentos podem ser utilizados para sinalizar preferências aos eleitores e atingir os objetivos eleitorais dos parlamentares?

Entender melhor esses incentivos e os instrumentos disponíveis para a atividade parlamentar pode ser um caminho mais interessante do que simplesmente limitar a iniciativa parlamentar. Disponibilizar e incentivar outros instrumentos pode reduzir a necessidade da utilização da iniciativa parlamentar para objetivos meramente eleitorais. Ademais, melhorar o entendimento da atividade parlamentar e a forma como é avaliada – pelas próprias Casas, pela imprensa, pela sociedade – pode alterar os incentivos que moldam o comportamento dos parlamentares.

Enfim, esse é um tema bastante interessante e que merece mais atenção. Longe de querer apresentar soluções, esse texto tem o objetivo de levantar questionamentos.

 


Referências

BRITO, Daniel. Agenda Setting in the Brazilian Chamber of Deputies: Assessing the Influence of Political Parties and Legislative Member Organizations. 2023. Master’s thesis (Master of Public Policy) – Hertie School of Governance, Berlin, 2023.

Kirkland, J. H. (2011). The relational determinants of legislative outcomes: Strong and weak ties between legislators. The Journal of Politics, 73 (3), 887–898.

Sciarini, P., Fischer, M., Gava, R., & Varone, F. (2021). The influence of co-sponsorship on mps’ agenda-setting success. West European Politics, 44 (2), 327–353.

[1] Houve um problema com a coleta de dados das PECs. No banco de dados coletado, a maioria das PECs cotinha apenas o primeiro signatário. Apenas 18 PECs apresentavam os dados de todos os autores.

Autores

  • é analista legislativo do Senado, bacharel em Relações Internacionais pela UnB, mestre em Políticas Públicas pela Hertie School of Governance e especialista em Ciência Política pelo ILB e em Direito Constitucional pela Universidade Católica de Brasília.

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