Opinião

Matriz e filial, licitação e isonomia

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

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15 de outubro de 2024, 9h19

Spacca

Questão perguntada por uma respeitável servidora do setor de licitações indagava se uma empresa (matriz) vencedora do certame licitatório poderia firmar contrato através de sua filial ? Ou até mesmo o contrário: vencedora a filial poderia ser firmado contrato com a matriz? Ou até mesmo uma outra filial que não participou do certame licitatório?

A pergunta, quando formulada, por licitantes tem a inclusão do argumento de que “são, tecnicamente, as mesmas pessoas jurídicas.”

Inobstante a aparência de formalismo exacerbado, a resposta tem que ser negativa em razão do vilipêndio aos princípios licitatórios.

Expliquemos.

Mesma pessoa jurídica mas não para finalidades fiscais

Inobstante sejam a mesma pessoa jurídica, não são a mesma pessoa jurídica para fins fiscais e licitatórios. Nesse diapasão é a previsão do artigo 127, II do CTN.

Nesse sentido, também, já se sedimentou a jurisprudência:

“Ementa: EMBARGOS INFRINGENTES – Voto divergente afirmando que matriz e filial são uma só empresa, afastado – Prevalência do entendimento de que se a matriz foi a vencedora do certame, não poderá relegar a execução a sua filial – Confirmação da posição majoritária – Embargos rejeitados” (EI 0041931-42.2007.8.26.0000, rel: Francisco Vicente Rossi, São José dos Campos, 11ª Câmara de Direito Público, julgamento; 14/7/2008 – grifos nossos)

No mesmo sentido sobre a regularidade fiscal individualizada: Apelação 1006721-18.2018.8.26.0099, Marcos Pimental Tamassia, 12/2/2019, TJ-SP.

O tema tem relevância para finalidade de habilitação fiscal, daí a relevância do conceito de domicílio fiscal.

Atestados de capacidade técnica não exigem a mesma formalidade

Poderia causar perplexidade o fato de que a jurisprudência admite o compartilhamento de atestados de capacidade técnica entre matriz e filial.

O autor deste texto já se manifestou inclusive pelo uso de atestados de capacidade técnica até mesmo por pessoas físicas e, não necessariamente, pela pessoa jurídica licitante.

A perplexidade, porém, é meramente aparente, já que tanto o texto mencionado quanto a jurisprudência indicada são coerentes pela simples aplicação dos princípios da competitividade, primazia da licitação e livre inciativa.

A possibilidade de compartilhamento de atestados de capacidade técnica e a impossibilidade de implementação contratual de matriz/ filial não são interpretações antagônicas mas complementares.

O compartilhamento do atestado de capacidade técnica está em consonância com a liberdade de empreender, aumentando a competitividade e a defesa do interesse público.

Já a contratação de uma pessoa distinta do ponto de vista fiscal é uma burla à regra do dever de licitar pois institucionalizaria o uso de “laranja(s)” na licitação. Uma empresa “limpa” do ponto de vista das certidões de débito participaria da licitação e a empresa “suja” do ponto de vista fiscal efetivaria o contrato burlando as regras licitatórias, notadamente a isonomia.

Spacca

Se admitíssemos tal hermenêutica transformaríamos a licitação num procedimento formal e disputa entre “laranjas” cuja disputa; efetivamente; se daria entre aqueles que tivessem maior habilidade formal em esconder débitos em detrimento da proposta efetivamente mais vantajosa.

Também restaria vulnerada a exequibilidade da proposta já que a possibilidade de contratação de empresa que não passou pelo crivo da licitação e da habilitação fiscal abriria porta para a contração de licitante sem qualquer liquidez nem condição operacional de implementar o contrato.

Para evitar discussões estéreis sobre o tema, recomendamos a inclusão expressa no edital. Assim, por exemplo:

“XXX. Se a licitante for matriz, todos os documentos deverão estar em nome da matriz, e se for a filial, todos os documentos deverão estar em nome da filial, exceto aqueles documentos que, pela própria natureza, comprovadamente, forem emitidos somente em nome da matriz.”

A previsão no edital reforça a hermenêutica descrita e acrescenta o princípio da vinculação ao edital na defesa do interesse público da vedação ao embaralhamento entre matriz e filial como instrumento de burla ao princípio da licitação e higidez da habilitação fiscal.

Se a empresa pretende utilizar de uma ou mais filiais basta habilitá-la submetendo-se ao republicano princípio constitucional da isonomia.

Desconsideração da personalidade do artigo 160

Um argumento que merece ser refutado é o que o artigo 160 da Lei 14.133/2.021 prevê a possibilidade de desconsideração da distinção de personalidades e a matriz e filial, substancialmente, nem teriam tal distinção.

Assim, segundo essa interpretação, a desconsideração poderia ser efetivada para a habilitação fiscal.

A leitura do mencionado artigo, porém, afasta tal hermenêutica. Assim:

“Art. 160. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.” (grifos do articulista).

A desconsideração pode ser aplicada para evitar fraudes e a desconsideração entre matriz e filial acoberta fraudes, motivo que inviabiliza a aplicação da mencionada regra.

Na realidade a tentativa de uso de uma filial que não participou do certame licitatório é quebra do princípio republicano, da moralidade e da isonomia e inversão da finalidade da norma que autoriza a desconsideração da personalidade.

Conclusão

Pelo exposto, a empresa (matriz ou filial) que não participa do certame licitatório não pode ser contratada pela administração pública pois é pessoa distinta do ponto de vista da habilitação fiscal.

A contratação de empresa (ainda que mera filial) que não participou da licitação ofende o princípio da isonomia, da moralidade e da competitividade pois autoriza que uma empresa “laranja” com higidez fiscal vença uma licitação e outra empresa conspurcada de débitos fiscais seja contrata ao arrepio da regra republicana do dever de licitar.

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal, autor do livro Inovações da Lei de Licitações e Polêmicas Licitatórias (3ª Ed. Dialética, 2.024, versão em português e inglês) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (Coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm, 2.023).

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