Opinião

Liberdade de expressão não autoriza a veiculação de mentiras e 'opiniões' sobre temas técnicos

Autor

  • Luiz Manoel Gomes Junior

    é advogado doutor e mestre em Direito pela PUC-SP professor nos programas de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (UIT-MG) de mestrado da Universidade Paranaense (Unipar-PR) dos cursos de pós-graduação da PUC-SP e da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Mato Grosso (FESMP-MT).

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15 de outubro de 2024, 11h14

Uma vez mais o Supremo Tribunal Federal irá analisar o alcance da liberdade de expressão e a possibilidade de veiculação de fatos ofensivos quando do julgamento do Tema 837: Definição dos limites da liberdade de expressão em contraposição a outros direitos de igual hierarquia jurídica — como os da inviolabilidade da honra e da imagem — e estabelecimento de parâmetros para identificar hipóteses em que a publicação deve ser proibida e/ou o declarante condenado ao pagamento de danos morais, ou ainda a outras consequências jurídicas”.

Para entender o contexto da discussão é necessária a análise do caso concreto. Nele, a entidade Projeto Esperança Animal (PEA) acusou a entidade promotora da Festa do Peão de Barretos (Os Independentes) de maus-tratos aos animais.

Contudo, veiculou um vídeo para demonstrar a acusação, mas este era de outro local, provavelmente dos Estados Unidos. Assim, a acusação era mentirosa, hoje seria uma fake news, pois não havia vínculo entre os fatos e a Festa do Peão de Barretos.

Levado o tema ao Poder Judiciário paulista, em ambas as instâncias ordinárias houve o reconhecimento do abuso e que a liberdade de expressão não protege a veiculação de acusações falsas (fake news).

Defendem o PEA e alguns que o acompanharam (amicus curiae) uma liberdade ampla e ilimitada em termos de direito de criticar, ainda que não embasada na verdade.

Esse é o contexto dos fatos que devem nortear a decisão do Supremo Tribunal Federal.

Questão de ‘opinião’?

Alguns pontos devem ser indicados. Em relação ao tema, como tivemos o ensejo de destacar, a crítica, para ser válida e, por conseguinte, receber o respaldo constitucional e legal, deve se traduzir em uma contraposição de ideias e não ser baseada em aversões de natureza pessoal ou profissional.

Spacca

É a utilidade da crítica, a boa-fé com que a mesma é externada. Exige-se uma postura ética pautada pela cooperação e lealdade. Toda e qualquer atividade deve ser exercida com boa-fé. Sempre será vedada a crítica que contenha, obviamente, calúnias, injúrias ou difamações, pois estaria caracterizado um inadmissível abuso, como na espécie e quando não houver correlação com fatos verdadeiros. A liberdade de expressão não autoriza a veiculação de fake news (Mirian Fecchio Chueiri e Luiz Manoel Gomes Junior. Direito de Imprensa e Liberdade de Expressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 100/101).

Mas não é só. Em artigo publicado na seção “Tendências e Debates” da Folha de S.Paulo (11/10/2024), as advogadas Charlene Nagae, Clarissa Gross e Mônica Galvão, defendem que afirmar que há maus-tratos é uma questão de “opinião”.

Com o devido respeito, nada mais equivocado. Temas técnicos não podem ser abordados como se fossem simples opinião, autorizando qualquer afirmativa ou acusação, como exemplo: a) que vacinas causam doenças; b) que a Terra seria plana; c) que o homem não foi à Lua.

São temas técnicos, provados pela ciência, sendo que não se pode afirmar o contrário com a alegação do exercício de um direito ilimitado de ter opiniões, o que tem sido infelizmente muito comum nos dias atuais.

Se há maus-tratos aos animais, é um tema técnico (veterinário) e não pode ser analisado como simples opinião respaldada por um antropoformismo sem base científica, ou seja, atribuir características, sejam físicas, sentimentos, emoções, pensamentos, ações ou comportamentos humanos aos animais.

Aliás, o tema foi objeto de análise específica e técnica pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão respaldada pelo Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, no sentido de que não há maus-tratos aos animais na Festa do Peão de Barretos (Processo nº 1006538-88.2014.8.26.0066).

Em arremate, pertinente transcrever alguns trechos das decisões judiciais que originaram o Tema 837, sendo a sentença de lavra da experiente juíza Renata Rosa de Oliveira e o acórdão tendo sido relatado por uma das vozes mais autorizadas do Tribunal de Justiça de São Paulo em relação ao tema da Liberdade de Expressão, que é o desembargador Ênio Santarelli Zuliani:

Sentença: “Ao divulgar no site a Festa do Peão de Barretos (fls. 57) como evento que maltrata os animais, sem a respectiva prova, além da indicação dos patrocinadores e chamamento dos internautas para que pressionassem as empresas a deixarem de patrocinar, o réu agiu ilicitamente, abusando do seu direito”.

Acórdão: “O Judiciário não deve restringir a atividade do PEA e jamais poderá interferir nessa campanha cívica com sentenças radicais e que estabeleçam proibições para denunciar e chamar a atenção contra crueldades praticadas contra bichos indefesos, evitando, inclusive, impor condenações em dinheiro (danos morais) as quais, embora compensem os supostos ofendidos, desestabilizam o caixa da entidade e criam empeços administrativos para a continuidade do trabalho desenvolvido.

“(…). O erro do PEA decorre do emprego de uma comunicação de caráter abrangente ou sem fronteiras para propagar acusações genéricas e que, nos autos, se transformaram em inverdades. Não se provou que, na Festa do Peão de Barretos o sedem, artefato que faria o boi corcovear de dor, uma performance própria para a disputa dos montadores, maltrata os animais ou sequer influencia na sua capacidade reprodutiva (machos). Não existe um elemento nos autos comprometendo a posição neutra dos organizadores do evento sobre utilização dos animais no rodeio, sendo que a indispensabilidade do manuseio dos quadrúpedes obriga raciocinar que não há outra maneira de se realizar o episódio, pois, se forem banidos os bois e cavalos, não haverá mais festa do peão digna do nome e de suas tradições, o que não se coaduna com a política de defesa dos animais

O PEA fez uma acusação falsa e, ao fazê-lo, pela internet, pretendeu associar os patrocinadores da Festa do Peão de Barretos a um evento desmerecedor da sociedade contemporânea, o que constitui uma ilicitude grave. É que essa infundada denúncia foi exposta na internet, canal de acesso livre de milhões de pessoas, o que faz ainda mais vulnerável a situação dos promotores do rodeio, que se sentem injustiçados com a falta de seriedade das notícias do site.

“(…). O PEA fez, no processo, o que faz no site, ou seja, age de forma despreocupada com os fatos que imputa, o que não se compraz com o regime de responsabilidade pela conduta” – d.n.

Finaliza o voto: “Não se maltratam animais na Festa do Peão de Barretos, e isso está provado em processo de que o PEA participou e nada provou para demonstrar o contrário”.

Foi assim decidido com base nas provas dos autos:

Primeiro: a acusação da PEA foi irresponsável e sem provas, ou seja, o que atualmente é conceituado como fake news;

Segundo: na ação judicial sequer almejou a PEA provar suas alegações, afirmando apenas não ser seu o ônus probatório. Lança a acusação, mas sem qualquer compromisso com seus atos, com a necessidade de provar suas alegações;

Terceiro: que restou comprovado que não há maus-tratos aos animais na Festa do Peão de Barretos e;

Quarto: a liberdade de expressão não autoriza a veiculação de mentiras, de acusações abusivas e descoladas da realidade, como decidido no caso pelo Poder Judiciário Paulista.

Em arremate, o Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade, uma vez mais, de decidir o alcance da liberdade de expressão, especialmente quando envolve acusações sem fundamentação ou com mentiras (fake news), como no caso concreto, além dos limites para o alegado direito de opinião, quando envolver temas técnicos, como por exemplo: vacinas, educação e mesmo quando há maus-tratos aos animais.

Não há liberdade de expressão que proteja o responsável por veiculação de fake news, notadamente quando envolver temas técnicos, estando a palavra com o Supremo Tribunal Federal.

Autores

  • é pós-doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP-FDRP), doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, professor nos programas de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (UIT-MG) e de mestrado da Universidade Paranaense (Unipar), advogado e parecerista. Atuou como consultor da Organização das Nações Unidas — relator da Comissão Especial do Ministério da Justiça para elaboração do anteprojeto da nova Lei da Ação Civil Pública (2009/2010) — e como pesquisador do Conselho Nacional de Justiça.

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