Como a ação civil pública pode auxiliar no combate à judicialização predatória
15 de outubro de 2024, 6h36
Diferentemente dos litígios legítimos ou regulares, que contêm efetivas pretensões resistidas, a litigância predatória, caracterizada pelo abuso de direito ou fraudes, tem causado danos a toda a sociedade. Além dos transtornos e despesas acarretados às companhias que são vítimas desses litigantes contumazes, os custos para toda a sociedade são altos. Em recente relatório divulgado pelo Numopede (Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas) de São Paulo, estima-se que entre 2016 e 2021, mais de 330 mil processos com essas características foram distribuídos, com um impacto de aproximados R$ 2,7 bilhões por ano.
Não é demais enfatizar que a sobrecarga do Poder Judiciário com ações desnecessárias ou fraudulentas gera outros impactos além dos financeiros. Ao gastar tempo para a análise dessas demandas, os juízes e demais serventuários deixam de se dedicar aos reais litígios. Isso significa, minimamente, que a entrega da tutela jurisdicional se torna mais morosa e de menor qualidade.
Na mesma direção, é certo que a imagem da advocacia também fica prejudicada, em razão da conduta de maus profissionais. Em mais de uma ocasião, o Ministério Público atuou contra advogados que se utilizaram do Judiciário para a prática de crimes associados à judicialização predatória. A operação “predador”, do Ministério Público de São Paulo, e a operação “data venia”, do Ministério Público da Bahia, são exemplos disso.
Nunca é demais lembrar que a mercantilização da advocacia é vedada pelo Código de Ética e Disciplina da OAB. Isso porque a relação entre advogado e cliente é, antes de tudo, de confiança. Todavia, a advocacia predatória tem revelado que milhares de ações têm sido distribuídas sem que os advogados constituídos sequer tenham tido contato prévio com seus clientes. A lógica dá prova disso: não é factível que um único advogado distribua 20 mil, 30 mil, 40 mil ações de partes distintas em um curto período.
Ministério Público e uso da ação civil pública
O combate à litigância predatória, portanto, não é de interesse tão somente das partes que têm contra elas centenas de milhares de ações fraudulentas distribuídas, mas de toda a sociedade, que tem arcado com os custos da proliferação dessas ações, bem como com os efeitos colaterais resultantes.
Nessa direção, para que a luta contra essas práticas daninhas seja efetiva, todas as ferramentas existentes no aparato legislativo vigente deveriam ser utilizadas. Por exemplo, a ação coletiva ou a ação civil pública seriam valiosos instrumentos à disposição da sociedade, em especial para a defesa de parte da população que tem sido vítima de desses maus profissionais da advocacia.
Não se pode esquecer que, quando da distribuição de ações fraudulentas ou demandas fabricadas, geralmente a primeira vítima é a parte autora que foi ludibriada pelo advogado e convencida a ajuizar uma ação infundada. O fenômeno da litigância predatória é, antes de tudo, uma prática ilícita engendrada não pelos autores das ações, mas, sim, pelos seus patronos. Sem o concurso desses advogados, não se falaria no tema.
No caso das ações distribuídas contra bancos ou empresas do setor financeiro, o que se vê é a instrumentalização de sujeitos vulneráveis, em geral idosos ou pessoas de pouca escolaridade. Em grande parte das vezes, quando instado o autor da ação, ou ele não reconhece a demanda, ou, se reconhece, acredita que ela fora proposta por motivo diverso. Inclusive, há casos ainda mais graves em que, diante da obtenção de indenização, o advogado deixa de repassar a importância ou parte dela à parte autora.
O que se tem, então, é a necessidade de o poder público, por intermédio do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Procons, bem como as associações privadas de defesa do consumidor, intervirem em favor desses sujeitos que têm suas pretensões manipuladas indevidamente para a obtenção de vantagens indevidas.
Por exemplo, na defesa dos interesses difusos de toda a sociedade, o Ministério Público poderia ajuizar ação civil pública para que esses advogados fossem condenados a ressarcir o erário público, arcando com os custos havidos pelo Poder Judiciário quando da análise e do processamento de ações sabidamente fraudulentas.
Âmbito consumerista
Igualmente, na defesa dos direitos individuais homogêneos, o Procon ou as associações privadas de defesa do consumidor poderiam pleitear indenização pelos danos morais causados às partes que tiveram seus interesses ou direitos indevidamente instrumentalizados para a prática de ilícitos.
Seria igualmente plausível a busca pela fixação de dano moral coletivo, dado que aferível in re ipsa, e considerando-se uma violação generalizada das legítimas expectativas da população quanto à busca pelos seus direitos.
Até mesmo ante a ausência de atuação efetiva dos órgãos disciplinares da OAB, também seria possível a formulação de pedido de obrigação de não fazer, ainda que em caráter liminar, consistente na proibição da distribuição de ações fraudulentas por parte de profissionais que, sabidamente, cometem ilícitos.
O combate à judicialização predatória é árduo e demanda a participação de diversos agentes sociais, inclusive da população, que deve ser conscientizada, até mesmo para que possa cobrar das autoridades medidas efetivas. Em uma sociedade de massa, reputa-se essencial a utilização de ferramentas de tutela de interesses ou direitos coletivos, bem como do envolvimento dos legitimados para a defesa de tais interesses, para o efetivo combate da litigância predatória.
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