Opinião

ANPP na execução penal

Autor

  • Ricardo Alves de Lima

    é advogado inscrito na OAB-SP pós-doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra doutor em Direito pela Fadisp mestre e especialista em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra/USP avaliador do Inep/MEC e autor de livros capítulos e artigos jurídicos.

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15 de outubro de 2024, 20h12

O presente artigo visa complementar a interpretação jurídica delineada no artigo “ANPP: tese fixada pelo STF no HC 185.913-DF e efeito perseverança” (ConJur, 27/10/2024) [1], especificamente quanto à limitação temporal “trânsito em julgado” para a celebração do acordo de não persecução penal (ANPP), definida pelo Supremo Tribunal Federal na tese fixada no julgamento do referido HC. Destaca-se a questão pontual decidida:

“(…) 2. É cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964, de 2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado; (…)” [2].

A decisão contribuiu para direcionar um entendimento quanto à retroatividade, acertando em parte o tratamento da matéria, e reduziu alguns conflitos aparentes de normas, evitando-se antinomias jurídicas. Entretanto, seu conteúdo elementar se apresenta mais complexo, conduzindo um premente olhar teleológico do ANPP.

A retroatividade das normas processuais penais mais benéficas deve ser considerada não como uma exceção, mas como uma possibilidade legítima e necessária para garantir que o processo penal atenda aos fins de justiça que lhe são próprios, dentro do sistema acusatório.

Em diversos parâmetros não se deve pensar o Direito Penal de forma desvinculada do processo penal, e seus fins direcionam pela retroatividade de lei processual penal mais benigna. Neste aspecto, a lição de Aury Lopes Junior:

“Essa íntima relação e interação dão o caráter de coesão do ‘sistema penal’, não permitindo que se pense o Direito Penal e o processo penal como compartimentos estanques. Logo, as regras da retroatividade da lei penal mais benéfica devem ser compreendidas dentro da lógica sistêmica, ou seja, retroatividade da lei penal ou processual penal mais benéfica e vedação de efeitos retroativos da lei (penal ou processual penal) mais gravosa ao réu (…). Então, a lei processual penal mais gravosa não incide naquele processo, mas somente naqueles cujos crimes tenham sido praticados após a vigência da lei. Por outro lado, a lei processual penal mais benéfica poderá perfeitamente retroagir para beneficiar o réu, ao contrário do defendido pelo senso comum teórico” [3].

O próprio parágrafo único do artigo 2º do Código Penal traz uma resposta efetiva quanto ao tempo e à retroatividade de lei mais benéfica, definindo que a “lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

Spacca

Filia-se por um entendimento mais alargado no qual o ANPP deverá ser obrigatoriamente proposto a todos que preencham tais requisitos objetivos e subjetivos, mesmo àqueles que já tenham contra si sentenças criminais condenatórias transitadas em julgado, em respeito ao direito subjetivo que emana da própria essência do benefício legal, considerando-se que ao final do período de cumprimento do ANPP, será causado igual efeito, o da extinção da punibilidade prevista para o condenado que cumpriu integralmente sua pena.

Tal interpretação se coaduna com a redação definida pelo caput, e dos incisos I e II do artigo 66 da Lei de Execução Penal – Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, a qual prevê que caberá ao juiz da execução: “I. aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado”; “II. declarar extinta a punibilidade”. Interpretando esse aspecto da lei, a Súmula 611 do Supremo Tribunal Federal definiu que depois do trânsito em julgado da sentença condenatória, será o juízo da execução competente para a aplicação de lei mais benigna.

Dessa forma, a extinção da punibilidade, em suas múltiplas dimensões, pode ser plenamente alcançada por meio do ANPP. O instituto, ao ser aplicado de maneira adequada, tem o potencial de alcançar penas que já estejam em fase de cumprimento, encerrando assim o interesse punitivo do Estado em relação ao caso concreto.

Spacca

E neste quesito não estar-se-ia delimitando sua aplicação apenas aos processos-crime que tramitaram durante ou depois de entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, sem a devida oferta do ANPP por parte do Ministério Público. Tal condição restou bem claramente definida na tese fixada pelo STF. A ideia é ir além.

Reinserção social do apenado

Os fins do ANPP trazem consigo o poder de proporcionar uma resolução mais célere e eficiente para conflitos penais iniciados a partir de sua vigência, concluídos em sua vigência, ou iniciados antes do seu nascimento. Salientando-se que a persecução penal não se encerra com o trânsito em julgado da sentença criminal condenatória, eis que a aplicação da pena em sua perspectiva de execução se apresenta como um dos meios de trazer eficiência ao jus puniendi estatal.

Por isso, o ANPP ao ser aplicado na execução penal, também abre espaço para uma nova concepção dos efeitos da reinserção social do apenado, ao facilitar sua reintegração à sociedade sem as estigmatizações que costumam acompanhar o cumprimento tradicional da pena, do regime fechado às casas de albergado.

O ANPP ao permitir a extinção da punibilidade quando do cumprimento de seu período sabático, não apenas encerra o processo penal, mas também possibilita ao indivíduo a oportunidade de recomeçar sua vida com uma folha mais leve e menos carregada por marcas criminais. Essa extinção de punibilidade representa uma forma de equilíbrio entre a necessidade do Estado de manter a ordem e a segurança pública e a conformação do direito do indivíduo à reabilitação, com seu retorno à convivência social de maneira digna e produtiva.

Além disso, o instituto do ANPP reflete uma mudança significativa na política criminal, em que se busca não apenas a punição, mas também a recuperação e a reintegração do indivíduo. A aplicação do ANPP pode, assim, ser vista como um instrumento que contribui para a redução da reincidência criminal ao promover um tratamento mais humano e focado na resolução do conflito social que o crime representa. Cenário do qual não poderão ser isolados outros instrumentos de inserção social, econômica e familiar.

Ao extinguir a punibilidade e encerrar o interesse punitivo do Estado, o ANPP também diminui a sobrecarga do sistema prisional e judicial, liberando recursos para serem aplicados em outras áreas da justiça criminal. Isso, por sua vez, pode resultar em um sistema mais eficiente e justo, que prioriza a resolução pacífica e consensual de conflitos sempre que possível, e não ao custo da liberdade do indivíduo, desarticulando-se das teorias do encarceramento.

Em síntese, a perfectibilização da extinção da punibilidade por meio do ANPP aplicado durante a execução penal não só atende ao objetivo imediato de pôr fim à intervenção penal, mas também abre as portas para uma reinserção social mais efetiva e menos estigmatizante, refletindo um avanço significativo na busca por uma justiça mais equilibrada e humanitária, a qual poderá refletir, também, nos direitos da vítima.

Desta forma, ao preencher os requisitos objetivos e subjetivos do ANPP, o condenado que esteja cumprindo sua pena deverá solicitar a celebração do acordo de não persecução penal, sendo suspensa a execução penal até solução final pela celebração ou não do acordo. Tal suspensão não afetará os efeitos da eventual condenação criminal, que poderão ser restabelecidos caso o acordo não venha a ser concluído com o Ministério Público.

Neste aspecto o Supremo Tribunal Federal definiu quanto o resultado útil do processo (que se torna ainda mais evidente quando da execução penal), quando do julgamento da 23ª extensão dos efeitos do HC nº 185.913-DF, conforme trecho extraído da decisão monocrática proferida pelo Ministro Gilmar Mendes:

“(…) Afinal, caso a negociação se mostre exitosa, como pretende a defesa do paciente, a medida asseguraria a manutenção de sua elegibilidade. Dessa forma, a concessão da ordem é medida que se impõe até mesmo como garantia do resultado útil do processo (CPC, art. 300) e do efetivo usufruto do direito do paciente a ver apreciado o seu requerimento de celebração de ANPP.

Nada obstante, trata-se de provimento cuja eventual reversão em caso de insucesso da negociação do ANPP não traria qualquer prejuízo relevante, na medida em que, se porventura definitiva eventual inviabilidade do ANPP devidamente apreciada pelo órgão ministerial na forma do art. 28-A do CPP, imediatamente após seriam restabelecidos os efeitos do acórdão que manteve a condenação do paciente (…)” [4].

Ao ser celebrado o ANPP com o condenado durante a execução da pena, o argumento interpretativo ultrapassará os efeitos da condenação criminal, e o procedimento de execução penal deverá ser alterado para a realidade vivenciada por aqueles que foram beneficiados com o ANPP antes da denúncia criminal, sendo-lhe impostas iguais condições que são normalmente estipuladas pelo Ministério Público.

Com o cumprimento do acordo de não persecução penal, o juízo da execução penal deverá decretar a extinção da punibilidade nos termos do § 13 do artigo 28-A do CPP, sendo esses efeitos menos gravosos do que aqueles estipulados na sentença condenatória, v.g. o fato da celebração e do cumprimento do ANPP não constarem de certidão de antecedentes criminais, em um passo mais evoluído do sistema acusatório para fins de reinserção do reeducando na sociedade, em linha com os fins primordiais do ANPP.

 


[1] LIMA, Ricardo Alves de. ANPP: tese fixada pelo STF no HC 185.913-DF e efeito perseverança. Disponível: <ANPP: a tese fixada pelo STF em habeas corpus e o efeito perseverança (conjur.com.br) >. Acesso em: 02 out. 2024.

[2] STF. Pleno. HC 185913 DF. Relatoria Ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 18/09/2024. DJE 19/09/2024, publicado em 20/09/2024. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5917032 >. Acesso em: 02 out. 2024.

[3] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 167.

[4] STF. 23 Extensão HC n.º 185.913-DF. Rel. Ministro Gilmar Mendes, decisão 13/09/2024. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15370179938&ext=.pdf >. Acesso em: 02 out. 2024.

Autores

  • é advogado, pós-doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela Fadisp, mestre e especialista em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra/USP, avaliador do Inep/MEC e autor de livros, capítulos e artigos jurídicos.

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