Opinião

Ainda sobre o artigo 385 do CPP e sua conformação constitucional

Autor

  • Leandro de Deus Filho

    é advogado especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professor de Processo Penal na Faculdade de Ciências e Tecnologia de Unaí (MG).

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15 de outubro de 2024, 15h16

Dispõe o artigo 385 do Código de Processo Penal que “nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença penal condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”.

A dicção do supracitado artigo sempre foi motivo de intenso debate em âmbito doutrinário. Tais divergências, foram acirradas ainda mais, após o advento da Lei 13.964/2019, que em seu artigo 3º-A, consagrou expressamente que o processo penal brasileiro tem estrutura acusatória, sendo vedadas as iniciativas do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Grosso modo, quatro são as correntes doutrinárias acerca do tema.

A primeira, capitaneada por autores como Aury Lopes Jr. (2020, p. 1.006), sustenta que o pedido de absolvição equivaleria ao não exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público vincularia o juiz criminal.

Comungando do mesmo entendimento, mas com ressalvas, André Nicolitt (2020, p. 1.066) preleciona que “não se deve imaginar que a opinião do Ministério Público vincula o juiz. Na verdade, a questão se coloca no fato de que não é aceitável, por ser incompatível com o sistema acusatório, o acolhimento da pretensão quando o próprio Parquet a reconhece infundada ou não provada”.

Noutro vértice, Paulo Queiroz (2020, p. 409) pontifica que, em tais casos, deveria o juiz aplicar por analogia o artigo 28 do CPP, remetendo os autos ao órgão superior do Ministério Público, que, se insistisse no pleito absolutório, devolveria os autos ao juiz, ocasião em que restaria ao magistrado absolver o acusado.

Américo Bedê Freire e Gustavo Senna (2009, p. 32-33) se manifestam contrários a redação contida no artigo 385 do CPP. Em sua obra Princípio do Processo Penal: Entre o Garantismo e a Efetividade da Sanção, os autores preconizam que neste cenário, acaso o juiz discorde do pleito absolutório, deverá extinguir o processo sem resolução de mérito, por perda superveniente do interesse de agir, à semelhança do que ocorre nas hipóteses previstas no artigo 485, VII do CPC.

Há ainda, corrente que leciona a plena eficácia do artigo 385 do CPP. Cite-se, por exemplo, o escólio de Eugênio Pacelli e Douglas Fischer (2018, p. 828), Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2020, p. 1.147), Fernando da Costa Tourinho Filho (2009, p. 937) e Gustavo Badaró (2016, p. 538).

Princípio do livre convencimento motivado

No que concerne a primeira parte do artigo 385 do CPP, não inferimos inconstitucionalidade e/ou violação ao sistema acusatório.

Com efeito, temos que a pretensão punitiva se materializa com a denúncia (artigo 41, CPP). É ela que irá ditar os rumos do processo, sendo vedado ao magistrado em respeito à regra da correlação entre acusação e sentença e do ne procedat iudex ex officio prover sem que haja expresso pedido, ou prover diversamente do que foi pedido (BADARÓ, 2013, p. 39).

Spacca

A toda evidência, sabendo-se que o Ministério Público não pode desistir da ação penal (artigo 42, CPP), não há, permissa vênia, como aquiescer à tese de que o pedido de absolvição equivaleria ao não exercício da pretensão acusatória – que frise-se, já foi exercido por ocasião do oferecimento da denúncia.

Ademais, certo é que vigora, no Direito Processual, o princípio do livre convencimento motivado, de modo a ser assegurado ao magistrado ampla liberdade ao apreciar as provas constantes nos autos, desde que o faça, por óbvio, fundamentadamente (artigo 93, IX, CR/88).

Por fim, se fosse vedado ao magistrado proferir sentença penal condenatória, à despeito da manifestação ministerial em sentido contrário, seria forçoso concluir que o Parquet, ainda que por vias indiretas, estaria julgando o caso penal, violando desta forma, a cláusula de reserva de jurisdição.

É o que se verifica da autorizada palavra de Diogo Malan (2021, p. 816-817) “caso a derradeira manifestação ministerial fosse vinculante para o Juiz, haveria violação da garantia da inafastabilidade da jurisdição (CR, art. 5º, XXXV) e do próprio sistema acusatório (CR, art. 129, I), pois o Ministério Público estaria, em última análise, julgando a causa”.

Agravantes

Noutra quadra, a segunda parte do artigo 385 do CPP que autoriza o juiz a reconhecer agravantes, embora não tenham sido alegadas pela acusação, é, a nosso juízo, indisfarçavelmente inconstitucional.

Não desconhecendo a respeitável corrente doutrinária que sustenta uma verdadeira repulsa à Teoria Geral do Processo e a aproximação do Direito Processual Civil e o Direito Processual Penal (COUTINHO, 1989, p. 119), parece-nos que a decisão (que reconhece agravantes não suscitadas pela acusação) é um clássico exemplo de decisão surpresa (artigo 10, CPC).

Como sabido, as partes não podem ser surpreendidas por decisão lastreada em fatos e/ou circunstâncias a respeito das quais não tenha, previamente, tomado conhecimento (NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2016, p. 223).

Com efeito, a proibição da decisão surpresa encontra-se umbilicalmente ligada as garantias do due process of law (artigo 5°, LIV, CR/88) e do contraditório (artigo 5º, LV, CR/88). Trata-se, no vernáculo de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (2016, p. 225) de um poder-dever do juiz de ouvir as partes, proibindo assim, uma sentença de “terceira via”.

Até porque, como brilhantemente verberado por Luiz Guilherme Marinoni (199, p. 258-259) “o Estado democrático não se compraz com a ideia de atos repentinos, inesperados, de qualquer dos seus órgãos, mormente daqueles destinados à aplicação do Direito. A efetiva participação dos sujeitos processuais é à medida que consagra o princípio democrático”.

Destaque-se, por pertinente, que a posição acima externada não é novidade nas letras jurídicas.

Gustavo Badaró (2000, p. 34-35) em sua pioneira e brilhante obra Correlação entre Acusação e Sentença já na virada do século, aduzia que “o princípio do contraditório exige, em relação às questões de direito que possam fundar uma decisão relevante, que as partes sejam previamente consultadas” podendo-se falar, no vocábulo do autor “em um verdadeiro dever do juiz de provocar o prévio contraditório entre as partes, sobre qualquer questão que apresente relevância decisória, seja ela processual ou de mérito, de fato ou de direito, prejudicial ou preliminar “.

Imperativo, por conseguinte, avivar que a sentença que condena o acusado (ex officio), reconhecendo agravantes não suscitadas pelo Ministério Público é nula, porquanto ser incongruente.

Com José Carlos Barbosa Moreira (2005, p. 10) — quiçá o maior processualista que já tivemos — rememore-se que “ao proferir a sentença de mérito, o juiz acolherá ou rejeitará, no todo ou em parte, o pedido do autor. Não poderá conceder providência diferente da pleiteada, nem em quantidade superior ou objeto diverso do que se pediu, tampouco deixar de pronunciar-se sobre o que quer que contes do pedido. É o princípio da correlação (ou congruência) entre o pedido e a sentença (ne eat iudex ultra vel extra petita partium)” – destaquei.

Tudo isso, foi sintetizado no autorizado magistério de Antonio Scarance Fernandes (2005, p. 313) “deve-se, assim, entender que o juiz não pode, sem pedido do promotor, aplicar as circunstâncias agravantes típicas, interpretando-se o art. 385, do Código de Processo Penal, de maneira condizente com as regras do devido processo legal. O juiz poderia, com base nesse dispositivo, aplicar as circunstâncias judiciais, não as legais, sem pedido do promotor. Com essa leitura do art. 385, seria necessário debate contraditório prévio sobre as circunstâncias agravantes para serem levadas em conta pelo juiz”.

Regressando as linhas mestras do presente ensaio, temos em síntese que: 1) o artigo 385, do CPP, em sua primeira parte, não viola o sistema acusatório. A pretensão acusatória se materializa com a denúncia, de modo que eventual pedido de absolvição formulado pelo Parquet, não poderá, jamais, vincular o juiz criminal, sob pena de malferimento da cláusula de reserva de jurisdição (artigo 5º, XXXV da CR/88) e do livre convencimento motivado (artigo 93, IX da CR/88); 2) a recíproca, todavia, não é verdadeira em relação a parte final do referenciado artigo 385, que parece ser, indisfarçavelmente inconstitucional, eis que dá azo à prolação de decisões surpresa e incongruentes, fulminando as garantias constitucionais do devido processo legal (artigo 5º, LIV da CR/88) e do contraditório (artigo 5º, LV da CR/88).

Seriam nossas impressões sobre o tema.

 


REFERÊNCIAS

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BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Novo Processo Civil Brasileiro. 23. ed. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2005.

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MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1989.

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NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 10. ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’ Plácido, 2020.

PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

QUEIROZ, Paulo. Direito Processual Penal – Introdução. 2. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodvim, 2020.

SENNA, Gustavo; BEDÊ JÚNIOR, Américo. Princípios do processo penal: entre o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado, v. 1. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

 

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Penal e Criminologia e Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professor de Processo Penal na Faculdade de Ciências e Tecnologia de Unaí (Factu).

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