Opinião

A hiperdisponibilidade como fator de caracterização de vínculo empregatício do atleta da luta

Autor

  • Elthon José Gusmão da Costa

    é master in International Sports Law (Instituto Superior de Derecho y Economía) advogado professor palestrante autor e organizador de livros jurídicos membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do Tribunal Superior do Trabalho no Grau Oficial especialista em Direito Desportivo (Cers) pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya) diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe) diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing) diretor do Departamento Jurídico da World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana e da Confederação Brasileira de MMA Desportivo membro da Comissão Jovem da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Lab) membro do núcleo de estudos O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral da Faculdade de Direito da USP auditor do TJDU-DF membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF (2022-2024) membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) e colunista do website “Lei em Campo” (coluna “Luta e Desporto”).

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15 de outubro de 2024, 16h18

Há alguns dias, no evento principal do UFC 307, Alex “Poatan” Pereira mais uma vez defendeu com sucesso seu título dos pesos meio-pesados, nocauteando Khalil Rountree Jr. no quarto round.

Depois de salvar o UFC em duas ocasiões distintas esse ano, liderando o UFC 300 e o UFC 303, o campeão dos pesos leves Alex Pereira não estava preparado para tirar o resto do ano de folga e aceitou mais uma luta que o UFC lhe ofereceu em pouco tempo.

Ele agora defendeu seu título três vezes em apenas 175 dias, batendo o recorde anterior de Ronda Rousey, ícone do UFC.

Em sua rede social, o atleta disponibilizou o vídeo [1] do momento em que o UFC lhe ofereceu em junho, com apenas 15 dias de preparação, uma nova luta para defender seu cinturão, proposta que o atleta respondeu apenas com o seu tradicional “chama!”.

Tal disponibilidade deixa claro que o atleta também se encontra à disposição dos patrões mesmo em treinamento sem estar com luta marcada, já que sua profissão exige treino contínuo como forma de manter o alto rendimento, o que, na presença de outros critérios [2], poderia configurar vínculo empregatício.

Discorremos mais sobre a questão da disponibilidade a seguir.

O modelo contratual dos atletas

O modelo de trabalho do UFC, que inspirou outros eventos, de contratação de lutadores como prestadores de serviços independentes (autônomos) reflete o número crescente de outros setores que agora dependem de trabalho contratual, em que o trabalhador assume o risco e a responsabilidade pelo trabalho, como dirigir para a Uber, por exemplo.

Esse é um método cada vez mais comum de contratação de trabalhadores de meio período sem os custos associados de assistência médica, benefícios de aposentadoria ou férias remuneradas.

Na luta, esse tipo de contrato é feito diretamente com o atleta, que atua, em tese, como prestador de serviços do evento, sendo contratado para uma ou mais apresentações.

O modelo financeiro do UFC, que é seguido pelos demais eventos de luta, paga à maioria dos lutadores apenas uma pequena proporção da receita geral da promoção. Documentos dos processos judiciais do UFC [3] revelam que apenas 10% a 20% dessa receita é destinada a pagamentos de lutadores e outras compensações.

Para efeito de comparação, os jogadores das quatro grandes ligas — NFL, NBA, MLB e NHL — recebem cerca de 50% da receita da liga a cada ano, conforme negociado pelos prósperos sindicatos de jogadores.

Uma diferença importante entre as ligas esportivas que oferecem uma parcela maior da receita aos seus atletas e promoções como o UFC é que as quatro grandes precisam divulgar suas informações financeiras para as associações de jogadores, enquanto os lutadores do UFC não têm uma voz coletiva que os represente na mesa de negociação [4].

Assim, além de desviar grande parte dos custos associados à competição de MMA para os próprios lutadores (como pagar pelos próprios treinos, alimentação e demais despesas), os contratos do UFC estipulam ainda uma série de cláusulas que asseguram a renda da promoção, ao mesmo tempo em que impedem a maioria dos lutadores de compartilhar essa receita.

Spacca

O UFC também tem o direito de rescindir contratos depois que um lutador perde, sem recurso, enquanto o lutador não tem cláusula recíproca para garantir que o UFC cumpra suas obrigações.

Os lutadores precisam garantir patrocínios para treinar, muitas vezes trabalham fora do MMA para se alimentar e se abrigar, e enfrentam pressão para usar a mídia social para construir seus seguidores e a marca do UFC. Durante todo esse tempo, os atletas assumem grande parte do risco e da responsabilidade por seus meios de subsistência e pelo risco a seus corpos.

A hiperdisponibilidade do trabalhador da luta em detrimento de sua saúde

Chama a atenção a cláusula do contrato dos atletas do UFC que impede o atleta de requisitar qualquer direito como empregado, se não, vejamos:

“SEÇÃO XIX

STATUS DE CONTRATADO INDEPENDENTE

19.1 DWTNCS e Lutador reconhecem que o sucesso do UFC depende de uma rede de indivíduos altamente talentosos, como o Lutador, criando uma série de lutas memoráveis, competitivas e marcantes entre lutadores. O Lutador concorda que este modelo é necessário para maximizar a receita dos lutadores sob contratos de combate, incluindo os do próprio Lutador. O Lutador reconhece que todas as regras aqui referidas são reconhecidas como necessárias e práticas para aumentar as receitas do DWTNCS e do Lutador relacionadas aos Combates e a este Contrato. O Lutador reconhece ainda que as disposições deste Acordo foram concebidas para maximizar as receitas dos contratantes-contratados ao longo do tempo. Portanto, o Lutador reconhece e concorda que o Lutador é um contratado independente e não um empregado.

[…]

19.3 Nada contido neste Contrato será interpretado para tornar o Lutador um empregado da DWTNCS ou para nomear a DWTNCS como agente do Lutador, e a DWTNCS não terá nenhum interesse financeiro (além dos direitos de compensação) na compensação devida ao Lutador por se envolver em qualquer Luta nos termos deste documento. Pretende-se que o Lutador continue sendo um contratado independente, responsável por suas próprias ações, despesas e quaisquer impostos locais, estaduais, federais ou internacionais, incluindo, mas não se limitando a, contratação, dispensa, benefícios e custos de todos os afiliados do Lutador e instalações de treinamento, equipamentos, associações profissionais, taxas de sanção, despesas médicas, seguros (exceto conforme exigido por uma Comissão Atlética aplicável), impostos de seguridade social, impostos da Lei Federal de Contribuições de Seguros (Fica) e impostos da Lei de Desemprego (Futa).

19.4 O Lutador não será elegível, sob este Contrato, para participar de quaisquer férias, cuidados médicos em grupo, compensação trabalhista ou seguro de vida, invalidez, participação nos lucros ou benefícios de aposentadoria ou quaisquer outros benefícios adicionais ou planos de benefícios oferecidos pela DWTNCS aos seus funcionários e a DWTNCS não será responsável por reter ou pagar qualquer renda, folha de pagamento, Previdência Social ou outros fundos federais, estaduais ou impostos locais, fazer quaisquer contribuições de seguro (exceto conforme exigido por uma Comissão Atlética aplicável ou de outra forma aqui previsto), incluindo desemprego ou invalidez, ou obter seguro de acidentes de trabalho em nome do Lutador. O Lutador será responsável e indenizará a DWTNCS por todos esses impostos ou contribuições, incluindo multas e juros. Quaisquer pessoas empregadas pelo Lutador em conexão com a execução dos serviços prestados pelo Lutador nos termos deste documento serão funcionários do Lutador e o Lutador será totalmente responsável por tais pessoas” [5]. (tradução e grifos do articulista)

A cláusula deixa claro que

O Lutador não será elegível, sob este Contrato, para participar de quaisquer férias, cuidados médicos em grupo, compensação trabalhista ou seguro de vida, invalidez, participação nos lucros ou benefícios de aposentadoria ou quaisquer outros benefícios adicionais ou planos de benefícios oferecidos pela DWTNCS (a Dana White Contender Series, a “peneira” do chefe do UFC, por onde costumam entrar a maioria dos atletas do evento) aos seus funcionários e a DWTNCS”.

A falta de um benefício mais consistente para a saúde dos atletas é bem complicada, pois é provável que os mesmos sofram algum tipo de lesão ou precisem de assistência na recuperação, mesmo que evitem lesões em uma luta, porque estas muitas vezes ocorrem nos treinos preparativos.

A maioria das suspensões médicas varia de 30 a 180 dias, dependendo da gravidade da lesão e, embora o UFC cubra parte das despesas médicas do lutador durante a suspensão, o atleta não pode obter renda com a luta até que seja liberado.

As causas da suspensão na maioria dos eventos geralmente variam de fraturas ósseas a lacerações faciais e sintomas de concussão. Os médicos do UFC avaliam os lutadores imediatamente após a luta e os lutadores devem receber qualquer procedimento adicional dentro de trinta dias após a luta para que o seguro do UFC cubra a lesão.

No entanto, quando os lutadores voltam para casa depois de uma luta, grande parte do trabalho de recuperação começa, sendo que o plano de saúde do UFC não cobre terapias contínuas.

Quanto à disponibilidade, o contrato ainda possui cláusula que garante ao evento assegurar-se de que o atleta realmente não pode lutar, caso ele alegue que está lesionado:

“SEÇÃO IX

LESÃO E APOSENTADORIA

9.1

Se, a qualquer momento durante a Vigência, a DWTNCS se oferecer para promover um combate para o Lutador e o Lutador se recusar a participar ou tentar cancelar ou adiar tal combate por causa de uma lesão alegada ou outra incapacidade médica, a DWTNCS terá o direito, mas não a obrigação, de fazer com que o Lutador seja examinado por um médico de sua escolha às custas da DWTNCS e, se a DWTNCS assim decidir, o Lutador deverá comparecer para tal exame com um (1) dia de antecedência.

9.2

Se a qualquer momento durante o Prazo de Vigência, o Lutador alegar estar lesionado ou temporariamente incapacitado, o DWINCS poderá, a seu critério, para cada lesão ou incapacidade alegada pelo Lutador (e além de seu direito de estender o Prazo de Vigência conforme estabelecido na Seção 4.2) () declarar que a DWTNCS cumpriu sua obrigação de promover um (i) dos combates a serem promovidos pela DWTNCS nos termos deste instrumento, sem qualquer compensação devida ao Lutador pelo referido combate; e/ou (ii) fornecer ao Lutador um aviso de rescisão de acordo com a Seção 10.

9.3

Se a qualquer momento durante o Prazo, o Lutador decidir se aposentar do MMA ou de outra competição de luta profissional ou ficar permanentemente incapacitado, então a DWTNCS poderá, a seu critério e além de seu direito de suspender o Prazo conforme estabelecido na Seção 4.4, (i) declarar que a DWTNCS cumpriu sua obrigação de promover todos os futuros combates a serem promovidos pela DWTNCS nos termos deste instrumento, sem qualquer compensação devida ao Lutador, e/ou (ii) fornecer ao Lutador um aviso de rescisão de acordo com a Seção 10.[6] (tradução e grifos nossos)

Assim, é difícil dizer que o atleta teria de fato opção de abrir mão de uma eventual convocação para lutar, ainda que esteja lesionado (como ocorreu com “Poatan” em mais de uma oportunidade esse ano), já que a cláusula dá ao evento o direito a examinar o atleta (através do médico da empresa, que está à disposição de seus interesses) também havendo clausula que dá ao evento o direito de estender o tempo do contrato a seu critério:

“SEÇÃO IV

PRAZO

4.1 Este Contrato terá início na Data de Vigência e, a menos que seja rescindido antes de acordo com as disposições deste Contrato, terminará trinta (30) dias após a ocorrência da Luta (juntamente com qualquer outra prorrogação permitida nos termos desta Seção, o “Prazo”).

4.2 Não obstante as disposições da Seção 4.1:

4.2.1 No caso de o Lutador receber uma oferta, mas não aprovar um oponente designado pela DWTNCS (tal falha na aprovação, uma “Recusa”), então a DWTNCS poderá, a seu critério, estender o Prazo deste Contrato pelo período necessário para designar outro oponente aprovado pelo Lutador ou seis (6) meses, o que for mais longo, mas tal extensão não poderá exceder dezoito (18) meses” [7]. (tradução e grifos do articulista)

Tal extensão pode não ser do interesse do atleta, se este se encontra em busca de oportunidades melhores em outros eventos, como foi o caso de Francis Ngannou.[8]

Considerações finais

Dessarte, a relação contratual, feita instrumentalmente pelos eventos através de um “contrato de prestação de serviços”, tem elementos de um contrato de trabalho individual, não ficando clara a autonomia que o evento diz que o atleta teria quanto o trata como “contratado independente”.

Outrossim, ainda que a prestação de serviços ocorra com alternância a períodos de relativa inatividade (nos quais o atleta trabalha para divulgar a marca do evento e segue em treinamento), o atleta permanece à disposição do promotor para uma eventual chamada em cima da hora, mesmo enquanto se encontra recuperando de lesões, com o contrato garantindo ao evento que o atleta lute, ainda que se encontre lesionado.

Diante disso, fica claro que a subordinação – pressuposto necessário à caracterização do vínculo empregatício – se encontra presente nesses modelos de contrato. Não foi à toa que Alex Pereira, o “Poatan”, precisou ser acionado 3 vezes só esse ano para “salvar” os cards do evento (por conta de lesões dos lutadores que fariam parte do show) em curto espaço. Embora o lema do “Chama!” seja prova da valentia de Alex, ele também demonstra que o evento – embora queira negar isso através de cláusula contratual – não tem apenas um “prestador de serviço” e, sim, um empregado disponível a qualquer momento.

 


[1] Eu Aceitei Lutar no UFC 303 – 15 Dias para se Preparar.

[2] Ver os demais elementos do vínculo que apresentei em: COSTA, Elthon José Gusmão da; COSTA, Maria Luisa Borba da. O Contrato Desportivo do Atleta de MMA à Luz do Direito Trabalhista Brasileiro. In: FELICIANO, Guilherme Guimarães et al. Direito do Trabalho Desportivo: Panorama, Crítica e Porvir: estudos em homenagem aos ministros Pedro Paulo Teixeira Manus e Walmir Oliveira da Costa in memoriam. 1. ed. Campinas, SP: Lacier, 2024. p. 169-181.

[3] Cung Le, et al. v. Zuffa, LLC d/b/a Ultimate Fighting Championship and UFC, No. 2:15-cv-01045-RFB-BNW (D. Nev.). e Kajan Johnson, et al. v. Zuffa, LLC, et al., No. 2:21-cv-01189 (D. Nev.).

[4] Mais em: COSTA, Elthon José Gusmão da. O sindicalismo no MMA. Lei em Campo, Brasil, 11 nov. 2022. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/o-sindicalismo-no-mma/. Acesso em: 12 out. 2024.

[5] BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Procedimento Comum Cível nº 5023009-13.2021.8.24.0005. Contrato de atleta do UFC. Documento: Evento 39, CONTR2. Balneário Camboriú, SC: Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Balneário Camboriú, 2022a.

[6] Ibid.

[7] Ibid.

[8] COSTA, Elthon José Gusmão da. O destino de Ngannou: o UFC e a liberdade de atuação do atleta de MMA. Lei em Campo, 17 jan. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/o-destino-de-ngannou-o-ufc-e-a-liberdade-de-atuacao-do-atleta-de-mma. Acesso em: 13 out. 2024.

Autores

  • é master in International Sports Law (Instituto Superior de Derecho y Economía), advogado, professor, palestrante, autor e organizador de livros jurídicos, membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do Tribunal Superior do Trabalho no Grau Oficial, especialista em Direito Desportivo (Cers), pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya), diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe), diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing), diretor do Departamento Jurídico da World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana e da Confederação Brasileira de MMA Desportivo, membro da Comissão Jovem da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Lab), membro do núcleo de estudos O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral, da Faculdade de Direito da USP, auditor do TJDU-DF, membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF (2022-2024), membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) e colunista do website “Lei em Campo” (coluna “Luta e Desporto”).

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