Opinião

Um retorno à carta ditatorial do Estado Novo de 1937?

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14 de outubro de 2024, 10h42

A CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados, ao manifestar-se favorável às propostas que apreciou sobre limitação de poderes do Supremo Tribunal Federal, revelou manifesto desapreço e total desrespeito ao postulado da separação de poderes, consagrado pela Constituição da República!

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Uma das PECs — precisamente aquela que permite ao Congresso suspender os efeitos de decisão do STF em matéria de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos (PEC 28/2024) — não oculta o intuito arbitrário e profundamente lesivo à ordem democrática, revelado por parcela da Câmara dos Deputados, de replicar uma esdrúxula experiência de retrocesso à Carta ditatorial imposta ao país por Getulio Vargas, em 10 de novembro de 1937, que implantou, entre nós, o regime autocrático do Estado Novo!

Essa proposta encontra clara (e lamentável) inspiração em cláusula de nítido perfil autoritário, inscrita no parágrafo único do artigo 96 da Carta Constitucional de 1937, que consagrou, em nosso constitucionalismo, a medida inédita de verdadeiro “recall” judicial e que representou, naquele particular momento histórico (1937), grave retrocesso institucional e séria ofensa ao dogma da separação de poderes.

A história parece repetir-se! Desta vez, como farsa! Na verdade, essa PEC, ao atribuir competência anômala e extravagante ao Congresso, habilitando-o a suspender os efeitos de julgamento do STF em controle de constitucionalidade, institui, em nosso constitucionalismo, verdadeiro e absurdo “recall” judicial, por deliberação parlamentar!

A PEC em questão confere ao Congresso o poder de superação legislativa (“power of legislative override”) dos julgamentos do STF sobre controvérsias constitucionais, transformando o Parlamento em anômala instância de revisão das decisões proferidas pela Suprema Corte brasileira!

O Congresso, caso venha a promulgar tal proposta, estará claramente infringindo um dos limites materiais — a separação de poderes — que o poder constituinte originário estabeleceu no catálogo dos temas protegidos por cláusula pétrea (CF, artigo 60, $ 4º, nº III).

Não custa relembrar, neste ponto, considerada a essencialidade do princípio constitucional da separação de poderes, a advertência histórica de Alexander Hamilton (“Publius”), em “O Federalista” (“The Federalist Papers”, nº 78), que acentuava a necessidade de proteger-se o Poder Judiciário (“the least dangerous of the branches of government”) contra a inaceitável submissão institucional a outros Poderes do Estado, em situações aptas a comprometer a própria independência orgânica dos corpos judiciários e a liberdade decisória de seus magistrados.

A CCJ da Câmara dos Deputados, ao deliberar como o fez, parece haver ignorado (o que constitui erro grosseiro) que emendas à Constituição também podem ser qualificadas pelo STF como inconstitucionais, se e quando transgredirem, como sucede neste caso, os limites impostos ao poder reformador do Congresso, na linha de reiterados precedentes firmados há décadas pela nossa Corte Suprema (ADI 466/DF — ADI 926/DF — ADI 939/DF, v.g.).

Cabe não desconhecer que, no sistema institucional fundado no texto de nossa Constituição, o STF foi investido, por soberana deliberação da Assembleia Nacional Constituinte, na condição de guardião e protetor da supremacia da Lei Fundamental da República.

Posição que lhe confere, em matéria de interpretação constitucional, “o monopólio da última palavra”, de que já falava Rui Barbosa em discurso parlamentar que proferiu, como senador da República, em 29 de dezembro de 1914, em resposta ao senador gaúcho Pinheiro Machado, quando, definindo com precisão o poder de nossa Suprema Corte em matéria constitucional (“Obras Completas de Rui Barbosa”, vol. XLI, tomo III, p. 255/261, Fundação Casa de Rui Barbosa), deixou assentadas as seguintes conclusões:

“A Justiça, como a nossa Constituição a criou no art. 59, é quem traça definitivamente aos dois poderes políticos as suas órbitas respectivas. (…).
No artigo 59, é categórica a letra constitucional, estatuindo de acordo com a praxe geral (…) que o Supremo Tribunal conhecerá, em última instância, das causas em que se contestar a validade, assim dos atos do Poder Executivo, como do Poder Legislativo perante a Constituição. Por esta disposição constitucional, a nossa justiça suprema é quem define quando os atos do Poder Legislativo estão dentro ou fora da Constituição, isto é, quando os atos de cada um desses dois poderes se acham dentro da órbita que a cada um desses dois poderes a Constituição traçou.
Êle é o poder regulador, não conhecendo do assunto por medida geral, por deliberação ampla, resolvendo apenas dos casos submetidos ao seu julgamento, mediante a ação regular; mas quando aí decide, julgando em última instância, não há, sob qualquer pretexto deste mundo, recurso para outro qualquer poder constituído.
(…) Bem conheço o pretexto. A evasiva das causas políticas é um princípio verdadeiro, quando entendido como se deve entender. Indubitàvelmente a justiça não pode conhecer dos casos que forem exclusivos e absolutamente políticos, mas a autoridade competente para definir quais são os casos políticos e casos não políticos é justamente essa justiça suprema, cujas sentenças agora se contestam.
(…) Em todas as organizações políticas ou judiciais há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar.
Acaso V. Ex.as poderiam convir nessa infalibilidade que agora se arroga de poder qualquer desses ramos da administração pública, o Legislativo ou o Executivo, dizer quando erra e quando acerta o Supremo Tribunal Federal?
O Supremo Tribunal Federal, senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade.”

A interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal — a quem se atribuiu a função eminente de ‘guarda da Constituição’ (CF, artigo 102, ‘caput’) — assume papel de fundamental importância na organização institucional do Estado brasileiro, a justificar o reconhecimento de que o modelo político-jurídico vigente em nosso país conferiu, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental.

Há, ainda, outro aspecto a considerar!

Um dos projetos de lei que introduz, no artigo 39 da Lei 1.079/1950, um novo tipo definidor de crime de responsabilidade de ministro do STF, criou a esdrúxula e inconstitucional figura do denominado “crime de hermenêutica” (PL 4754/2016).

Trata-se de clara e autoritária tentativa de criar, por motivo de evidente intolerância institucional e aversão político-ideológica aos Juízes da Suprema Corte, punição pelo ato de julgar e de interpretar o significado da Carta da República, que representa atribuição natural inerente ao exercício da jurisdição!

Rui Barbosa/Reprodução

Rui Barbosa, em “cause célebre” por ele submetida em 1896 ao exame do STF, conseguiu que a Corte Suprema absolvesse o juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima, da comarca de Rio Grande, absurdamente acusado de “erro de interpretação” do Direito e de rebeldia jurisdicional em face de sua frontal discordância com o entendimento sustentado e desejado por Júlio de Castilhos, então presidente do Estado do Rio Grande do Sul!

Nenhum magistrado pode ser punido em razão de decisões por ele proferidas que reflitam as suas convicções pessoais ou a sua visão doutrinária do “thema decidendum”, sob pena de afronta aos princípios constitucionais da independência judicial e de sua consequente liberdade decisória!

Esse entendimento registrou-se em histórico precedente absolutório do Supremo Tribunal Federal, firmado em 1897, no julgamento plenário do “recurso de revisão criminal nº 215”, e no qual o STF repudiou, por incompatível com nosso modelo constitucional, a figura que Rui Barbosa denominara “crime de hermenêutica”!

Em 07/10/1899, a Suprema Corte, reexaminando sua anterior decisão proferida em 1897, reafirmou o juízo absolutório proclamado em favor do magistrado gaúcho que havia sido condenado por “crime de responsabilidade” tipificado no Código Penal de 1890, o primeiro Código Penal da República!

Vê-se, daí que nem a história judiciária de nosso país nem a pena vigorosa e respeitável de Rui Barbosa, patrono dos Advogados brasileiros (e do Senado Federal), dão razão ao projeto de lei em questão, em sua patética investida contra os ministros do Supremo Tribunal Federal!

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