Subtração internacional de crianças: retorno tardio não é cumprimento da Convenção da Haia
14 de outubro de 2024, 7h03
Em abril de 2000, por meio do Decreto nº 3.413/2000 [1], entrou em vigor no Brasil a Convenção da Haia de 1980 [2], que trata dos aspectos civis da subtração internacional de crianças e adolescentes.
À luz do princípio do superior interesse e proteção da criança, expressamente insculpido em seu preâmbulo, a Convenção de Haia de 1980 tem como principal objetivo assegurar o retorno imediato das crianças e adolescentes com menos de 16 anos que sejam indevidamente retirados do país de residência habitual por um dos genitores, sem a autorização do outro.
A convenção reconhece situações tão legítimas quanto o retorno imediato, nas quais a permanência da criança no país requerido [3] atende melhor aos seus interesses, seja em razão de um acordo entre os pais sobre o local de residência definitiva da criança — que, indiscutivelmente, é a melhor forma de resolver esses conflitos — ou com base na aplicação de uma das exceções ao retorno previstas no artigo 13 [4] do texto convencional, como a que visa proteger a criança contra a exposição a grave risco caso seja devolvida ao país requerente.
Pois bem. Diante do principal objetivo da Convenção de Haia de 1980, que é a rápida devolução da criança ao país de origem, tem-se a urgente e necessária discussão sobre as dificuldades para garantir o retorno imediato de crianças vítimas de subtração internacional que foram trazidas ao Brasil, sobretudo em razão da complexidade do sistema judicial brasileiro, e as consequências que isso pode gerar para os interesses da criança.
Vale destacar que o cerne da Convenção da Haia de 1980 é a urgência nos conflitos que pretende remediar. Por isso, o texto busca traçar as bases para um procedimento célere de retorno imediato da criança.
Prazos
É por esse motivo que o pedido de devolução deve ser apresentado no prazo máximo de um ano a partir da subtração, e a decisão deve ser proferida em até seis meses após a apresentação do pedido. Após esse prazo, presume-se que criança está integrada em seu novo meio, nos termos do artigo 12 (b) da Convenção da Haia de 1980 [5]. A restituição, nessas circunstâncias, depende da análise do grau de integração da criança, a fim de evitar mais sofrimento com uma nova mudança de país.
Contudo, raramente uma decisão judicial no Brasil é proferida em menos de um ano da data da subtração. Isso levou à construção de um entendimento jurisprudencial adaptado à realidade brasileira em torno do período considerado crítico para que o retorno da criança seja obrigatório, no sentido de que o prazo de um ano somente é contado para apresentação do requerimento, e não para a tomada da decisão.
Risco de trauma
Entretanto, em muitos casos, devido à lentidão do processo judicial, a criança já está adaptada ao país requerido. O retorno repentino da criança, mediante o rompimento abrupto dos laços com o genitor convivente e a colocação em convívio com o outro genitor que muitas vezes a criança sequer conhece, em um país com cultura e língua diferentes, pode causar traumas irreversíveis à criança.
Por essa razão, após longos períodos de permanência no Brasil, os juízes devem ponderar as vantagens e desvantagens para a criança de uma decisão que determine seu retorno ao país de residência habitual.
Repita-se: o interesse e a proteção da criança devem ser os únicos critérios orientadores das decisões judiciais, conforme estabelecido pela Convenção da Haia de 1980. Decisões proferidas após longo período da criança no Brasil, baseadas no fundamento de que a demora dos processos judiciais não deve impedir o cumprimento da convenção, acabam por sobrepor-se ao interesse primordial da criança, tratando-se de mera estratégia para contornar o problema da morosidade do Judiciário, com sérios impactos para a criança.
Vale lembrar que, por muito tempo, o Brasil foi considerado um exemplo negativo quanto ao cumprimento da Convenção da Haia de 1980. Muitos acreditam que a causa dessas críticas se baseia no fato de que o Brasil não “devolveria” crianças. Contudo, a insatisfação é com a morosidade no julgamento das ações, prolongando o conflito por longos períodos, para então decidir pela permanência do menor no Brasil sob o argumento de integração da criança.
Retorno tardio
Não interessa qual o sentido da decisão judicial — se pelo retorno ou permanência da criança no Brasil, desde que fundada no texto convencional. O que importa é se o caso é rapidamente resolvido.
Aos olhos de qualquer observador, um retorno após quatro ou cinco anos não pode ser considerado retorno imediato. Retorno tardio não é retorno imediato, e mesmo que o retorno ocorra, ainda que tardiamente, não há cumprimento efetivo da convenção. Acreditem: o Brasil não convence a comunidade internacional de que está cumprimento a convenção retornando crianças após 3 ou mais anos do pedido de devolução.
Tomemos como exemplo dois casos recentemente decididos pelo STJ (REsp 2.126.426 e REsp 2.100.050 [6]). O primeiro caso trata de três crianças, com idade de 8, 10 e 11 anos e que vieram para o Brasil com a genitora em janeiro de 2021. Já o segundo caso envolve uma criança que veio para o Brasil em maio de 2021 com apenas sete meses de vida.
Em ambos os casos, e após mais de três anos e meio da chegada das crianças no
Brasil, o STJ decidiu que as crianças deveriam retornar para o país de onde foram retiradas.
No REsp 2.126.426, o retorno foi decidido sem que houvesse a determinação de medidas protetivas adequadas, como a garantia de que o genitor convivente retornasse com a criança, especialmente no caso da criança que veio ao Brasil ainda bebê, ou a convivência prévia e mínima com o genitor distante, agravando o risco de danos psíquicos à criança. Não foi determinada a avaliação sobre a existência ou não de vínculo ou convivência com o genitor residente no outro país.
Observe-se que retornos forçados de crianças que, após anos vivendo no Brasil, não mais conhecem a figura do genitor residente no estrangeiro, para residir em um país de cultura e língua que nunca conheceu, sem garantir um período mínimo de convivência que permita a (re)construção do vínculo emocional entre a criança e o requerente, podem configurar nova violência e, desta vez, institucional, dado o inequívoco risco de graves danos psíquicos a serem causados a partir de sua abrupta ruptura do contexto social em que inserida.
O “cumprimento” da convenção por meio do retorno tardio subverte a lógica protetora objetivada pela norma. Grave risco pode estar compreendido nos traumas consequentes de um rompimento súbito da criança após anos de convivência com um determinado genitor, para ser colocada a viver com alguém que não conhece. O súbito afastamento da criança do ambiente social e familiar onde reside por vários anos pode levar ao colapso emocional eterno, a autorizar a permanência da criança no país requerido.
Felizmente, em uma ação específica de subtração em que já havia decisão de retorno definitiva, após nove longos anos de julgamento, caso em que a criança tinha apenas quatro meses quando veio morar no Brasil, o STF concedeu HC para que a vontade da criança, manifestada em diversas oportunidades, fosse considerada, impedindo o seu retorno para o país requerente. Na ocasião o STF entendeu que:
“Pois bem. No presente caso, os elementos trazidos aos autos indicam, sem dificuldades, que o retorno imediato do paciente ao Estado requerente causaria grave lesão ao seu estado psíquico/emocional, violando, por consequência, o melhor interesse da criança. Essa conclusão é facilmente diagnosticável no quadro fático verificado quando da tentativa de entrega do menor ao seu pai espanhol, conforme destacado pelo Juízo da 1ª Vara Federal de Novo Hamburgo/RS, em informações enviadas a esta SUPREMA CORTE, a saber:
“Todas as pessoas convocadas se fizeram presentes, especialmente a criança, a mãe brasileira e o pai espanhol. As presenças e o transcurso do ato são objeto da certidão dos oficiais de justiça juntada no Evento 99, que se transcreve a seguir:
Ainda no início do ato, este juiz federal fez-se presente como observador da sua execução. Ao chegar, foi abordado pela mãe, que tinha a criança em seu colo, ambos em prantos. A criança, com nove anos, dizia que “queria ficar com a mãe” e agarrava o pescoço da genitora fortemente. Aproximaram-se para conversar o procurador da república, a advogada da União e o cônsul da Espanha. Tudo isso se deu à vista de todos. Frente ao quadro, e atendendo ao pedido do procurador da república, o juiz suspendeu provisoriamente o ato para que fosse realizada uma reunião de emergência na 1ª Vara Federal.
(…)
É espantoso que a Espanha tenha sido considerada a residência habitual do paciente, por ele lá ter permanecido por um período de 4 (quatro) meses e menosprezar os mais de 7 anos vividos no Brasil, de modo totalmente integrado com os familiares maternos.
Todo o contexto delineado demonstra que esta é uma hipótese excepcionalíssima, apta a excluir a incidência da regra do retorno imediato, prescrita no artigo 12 da Convenção de Haia, pois há forte indícios de que o paciente está totalmente integrado no Brasil, junto à família materna, com forte vínculo emocional e afetivo com a mãe e a avó, além de grave risco ao seu desenvolvimento, o que consolida situação gravíssima e, talvez, irreversível na vida do menor.
Assegurar o melhor interesse da criança também é a finalidade maior da Convenção de Haia, ao prever expressamente que a opinião da criança será levada em consideração pelas autoridades quando tiver atingido idade e grau de maturidade.” (HC 209.497)
Conclusão
Na realidade, o Brasil aderiu a um compromisso internacional extremamente importante para a solução dos casos de subtração internacional sem atentar para a complexidade do seu sistema processual, em que a maioria dos casos judicializados não oferece condições para um retorno rápido da criança.
É necessário que todos os responsáveis pela delicadíssima decisão sobre onde e com quem a criança deva residir, façam um exercício mental e se coloquem na posição da criança: se vejam dependentes material e psicologicamente do pai ou da mãe, sendo separados desse genitor, por vezes mediante uso da força, para serem levados a um lugar totalmente desconhecido para viver com alguém estranho, sem vínculo. Quem tem o poder de decidir o futuro da criança deve ter em mente em primeiro lugar, a perspectiva da criança, a necessidade de proteção como principal escopo, e às vezes sim, colocando-se em seu lugar.
Finalizo minhas reflexões com um desabafo de uma criança de dois anos vítima de um conflito de subtração internacional, a ilustrar bem o sentimento das crianças que passam por situação semelhante:
“There are no winners in a child abduction, there are only losers.
(…)
For me, in highly escalated conflict such as anchors abduction, there is only way: to seek dialogue through mediation” [7].
[2] Atualmente, 103 países são membros da Convenção da Haia de 1980. Conferir HCCH | Child Abduction Section
[3] Emprega-se o termo país requerido para designar o lugar para onde a criança foi levada por um dos genitores sem a concordância do outro. Em sentido contrário, país requerente é o local da residência habitual da criança, imediatamente antes da subtração ilícita.
[4] Artigo 13. Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retorno da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha a seu retorno provar:
a) que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o retorno da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já idade e grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão tomar em consideração as informações relativas à situação social da criança fornecidas pela Autoridade Central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado de residência habitual da criança.
[5] Artigo 12 – Quando uma criança tiver sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3 e tenha decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da transferência ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o retorno imediato da criança.
A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após expirado o período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deverá ordenar o retorno da criança, salvo quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio.
[6] Pendente a publicação do acórdão.
[7] Conferir declaração no link MiKK e.V. International Mediation Centre for Family Conflict and Child Abduction no LinkedIn: #legalprofessionals #booklaunch #familymediation #internationallaw…
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