Por dificuldade em restringir bets online, apenas a União deve autorizar casas de apostas
14 de outubro de 2024, 8h28
Ainda que a Lei das Bets (Lei 14.790/2023) e o Supremo Tribunal Federal permitam que estados autorizem o funcionamento de casas de jogos, essa competência deveria ser exclusiva da União. Isso devido à dificuldade de restringir as apostas aos moradores de um território e a preocupações como o endividamento das famílias e a lavagem de dinheiro.
Em 2020, o STF decidiu que estados têm competência para explorar loterias, embora a União tenha competência privativa para legislar sobre a matéria (ADPFs 492 e 493 e ADI 4.986). A Lei das Bets, promulgada no fim de 2023, também permitiu que estados autorizem o funcionamento de casas de jogos.
Porém, tem havido desentendimentos sobre o assunto, já que a União argumenta que cabe a ela regulamentar a matéria, e estados apenas podem autorizar operações em seus territórios. Por outro lado, estados, como o do Rio de Janeiro, sustentam que têm o direito de credenciar empresas para funcionar também em outras regiões.
Recentemente, a 8ª Vara Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal liberou a operação em todo o país de casas de apostas esportivas credenciadas pela Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj). A decisão foi cassada pelo presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, desembargador João Batista Moreira, que reafirmou a atribuição federal de regular a atividade em todo o território nacional.
“Ainda que concebida como serviço público de competência estadual, não se dispensa o controle federal da atividade, sem o qual há, efetivamente, risco para a ordem pública”, afirmou o magistrado.
Governadores de seis estados e do Distrito Federal questionam, no STF, trechos da Lei das Bets que restringem que o mesmo grupo econômico possa obter concessão para explorar serviços lotéricos em mais de um estado (ADI 7.640). Para eles, essa restrição reduz a participação de empresas em licitações e favorece um ambiente de competição entre os estados em que uns tendem a perder mais que outros.
Além disso, os governadores consideram desproporcional proibição que a publicidade sobre o serviço de apostas seja veiculada em estado diferente daquele em que o serviço é prestado. Ao restringir a publicidade aos usuários localizados dentro dos limites territoriais do ente da federação, a lei viola a razoabilidade e a livre concorrência, alegam.
Outras ações
Outras duas ações pedem que o texto da Lei das Bets seja declarado integralmente inconstitucional (ADIs 7.721 e 7.723). Nelas, a Confederação Nacional do Comércio e o Partido Solidariedade destacam que as apostas geram o endividamento de famílias e perdas ao setor varejista, devido à menor circulação de dinheiro.
Assim, alegam as entidades, a Lei das Bets viola os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, além do direito à saúde e do dever do Estado de regulação da ordem econômica. O relator de ambas as ações, ministro Luiz Fux, convocou uma audiência pública sobre o tema para o dia 11 de novembro.
Especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico afirmam que não há razão para invalidar a Lei das Bets. As ADIs, segundo eles, carregam preocupações legítimas, mas que deveriam ser direcionadas ao Congresso Nacional, a quem caberia cuidar de ampliar a proteção de pessoas vulneráveis contra as apostas.
Em setembro, o Tribunal Superior Eleitoral tornou as apostas envolvendo resultados das eleições ilícitas e passíveis de configurar crime ou abuso de poder. A corte apontou a oferta de vantagens financeiras ou materiais, o que tem potencial para interferir legitimamente no processo eleitoral, com propaganda e aliciamento de eleitores.
Competência da União
Devido à dificuldade de restringir bets feitas pela internet a um território, constitucionalistas ouvidos pela ConJur defendem que somente a União possa autorizar o funcionamento de casas de apostas.
O jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, avalia que não há clareza na Constituição se estados poderiam permitir o funcionamento de lotéricas e bets. Por causa dos riscos envolvidos, ele defende que a competência fique restrita à União.
“Na especificidade das bets, permitir que um estado autorize operadores a explorar o serviço em todo o território nacional pode levar à competição entre os demais entes federativos, levando à deterioração dos requisitos mínimos para segurança cibernética, jogo responsável, higidez financeira dos operadores e combate à lavagem de dinheiro. Essa posição da Advocacia-Geral da União parece a mais adequada. Nesse campo minado das bets e jogos em geral, parece evidente a necessidade de o centro de controle estar a cargo da União”, opina Lenio.
O dispositivo da Lei das Bets que permite que os estados autorizem o funcionamento de casas de jogos é inconstitucional. Isso porque permitir a operação não se confunde com a execução desse serviço público pelo ente federativo estadual, analisa o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Marco Aurélio Marrafon, combinando a competência legislativa privativa da União (artigo 22, XX, da Constituição) com a teoria da predominância dos interesses.
“No contexto do federalismo brasileiro e considerado o avanço tecnológico atual, a questão das apostas é um problema nacional e como tal deve ser tratada, à luz dos interesses nacionais, com competência privativa da União, sem poderes de autorização de funcionamento pelos Estados, ainda que eles possam explorar loterias”, diz Marrafon.
André Rufino do Vale, professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), tem opinião semelhante. Segundo ele, estados não podem permitir o funcionamento de casas de jogos, pois a União tem competência exclusiva para legislar sobre “sistemas de consórcios e sorteios” (artigo 22, XX, da Constituição).
Lógica federativa
Permitir que estados autorizem o funcionamento de casas de apostas é coerente com a lógica federativa do Brasil, afirma Ana Paula de Barcellos, professora de Direito Constitucional da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
“O STF entendeu duas coisas: que a competência legislativa da matéria é da União e que a legislação federal não poderia discriminar os estados na prestação do serviço — concedendo à União prerrogativas que os estados não teriam de prestar o serviço e obter recursos —, sob pena de abuso legislativo no âmbito federativo. Ou seja: o ponto do STF nesse segundo aspecto é que a União não pode criar uma fonte nova de arrecadação via serviço público (é assim que loteria é qualificada) apenas para si própria, excluindo os estados dessa possibilidade. A opção legislativa feita pela União sobre as bets, portanto, necessariamente seria aplicável aos estados. Não foi um ‘problema’ que surgiu depois.”
De acordo com Ana Paula, o fato de as apostas serem feitas online — e, portanto, serem potencialmente acessíveis a moradores de outros estados que não o da sede da casa de jogos — não é o critério jurídico que define a competência, seja para desenvolver a atividade (no caso de um serviço público) seja para seu controle.
“Problemas técnicos podem surgir, claro. Mas isso acontece em toda parte do mundo e, particularmente, em todas as federações”, destaca a professora.
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