Direito Civil Atual

O curso jurídico de Olinda e a análise da Constituição do império (parte 2)

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14 de outubro de 2024, 13h09

Continuação da parte 1

Em prólogo à edição do livro de Ferdinand Lassale, publicada à feição comemorativa dos 35 anos da Constituição espanhola de 1978, Eliseo Aja [1] afirma que a evolução do constitucionalismo permite distinguir vários tipos de constituições, com relação às se lançou a empresa de realizar uma periodização, observando, nos diversos países, a implantação de tipos concretos, conforme muitos anos ou décadas de diferença.

O autor demarcou cinco períodos. Após discorrer sobre as constituições liberais censitários (primeiro período), destacando a Constituição norte-americana (1787), a da monarquia constitucional francesa (1791), a da Suécia, a da monarquia espanhola (1812) e a norueguesa (1814), aporta numa segunda fase, qual seja a das constituições outorgadas.

Tais tipos constitucionais, isto é, as cartas outorgadas, ou também conhecidas por constituições pactuadas, estavam assinaladas por duas características. Uma, de matiz histórico, pela sua coincidência temporal com a volta do predomínio das monarquias de sangue ao depois da queda de Napoleão, encerrando o ciclo revolucionário francês, restaurando a legitimidade dos reis, mas sem desconhecer a conservação de muitas conquistas liberais, que se tornaram irreversíveis.

A outra, vista sob o aspecto do equilíbrio dos poderes, tais constituições, frente às do primeiro modelo, pressupunham “um reforço importante do Rey em detrimento do Parlamento, e, inclusivo dentre deste, uma perda de protagonismo da burguesia frente à nobreza, a qual se reserva, às vezes,  uma das Câmaras” [2].

Foi nessa conjuntura que Lourenço Ribeiro pode perceber — e interpretar — a Constituição de 1824. Assim, observou [3] ser natural que o seu artigo 5º consagrasse, em matéria de liberdade religiosa, uma disciplina restritiva, à medida que, adotando uma religião aprovada pelo Estado, qual seja a católica apostólica romana, permitia, restritivamente,  o culto das demais.

Compreendia que o preceito, mesmo consagrando uma única crença como verdadeira, afastava a intolerância, pois se evidencia prejudicial ao progresso das nações [4]. No entanto, restringiu o exercício das demais crenças, vedando-lhes o culto externo, a pretexto de resguardar a boa ordem e o sossego público [5].

Poderes e representação nacional

Abordando o artigo 9º, com o qual é iniciado o Título 3º, sobre os poderes e a representação nacional, nota o autor [6] não ser bastante a divisão, sendo ademais preciso a harmonia daqueles, a qual consiste na circunstância de que, mesmo separados, dirijam-se por caminhos diversos caminhos à concreção do mesmo fim, produzindo os mesmos resultados, pois, para a Constituição, é preciso tanto uma e outra coisa, para que se conservem os direitos do cidadão.

Afirma ainda que, mesmo divididos, é do interesse de cada um dos poderes exercer contínua vigilância uns sobre os outros, evitando-se, assim, que um venha a preponderar sobre o outro na balança.

Spacca

Atento à singularidade da Carta de 1824, ir além da tripartição dos poderes, como se encontra do seu artigo 10º, procura o autor [7] delinear o campo próprio, específico, de cada um deles. Inicialmente, a partir de um cotejo entre o Legislativo e o Executivo, dispõe que o primeiro é encarregado de pensar e querer, enquanto o segundo, de executar e obrar.

Em seguida, realça o autor [8] o Poder Judicial, pois, promulgadas as leis para balizarem as condutas dos súditos, não se poderia prescindir de quem tivesse de julgar tais ações, e, numa evocação a Montesquieu, não sendo conveniente que fosse o Legislativo ou o Executivo, pois, em ambas as situações, a opressão seria certa.

À derradeira, refere-se ao Poder Moderador, sobre o qual, a despeito da antecedente rebeldia de Frei Caneca [9], bem assim e da futura crítica acerba de Tobias Barreto [10], manifesta-se favoravelmente, ressaltando o seu propósito de “servir de chave à organização política, mantendo a independência, equilíbrio e harmonia dos outros Poderes, sem o que não era possível obter-se os saudáveis efeitos da divisão mencionada, porque entregues a si mesmos, facilmente se desorganizariam” [11].

Soberania da nação brasileira

Em complemento à divisão de poderes, o autor, atento ao artigo 12, observa que a Constituição de 1824 reconhece a soberania da nação brasileira, uma vez então se considerarem “como delegações da Nação os Poderes Majestáticos, de que falamos, e que constituem a soberania, mas ninguém pode delegar a outrem aquilo que não possui, é porque a Nação a tem e nela reside essencial e originariamente” [12].

É possível se destacar alguns aspectos pontuais do pensamento do autor quanto ao funcionamento dos poderes. Um deles [13], por ocasião do comentário ao artigo 13, reside na defesa da competência do Imperador em sancionar os projetos de lei aprovados pelo Parlamento, pois:

a) se autoridade que vai executar as leis não possui o atributo de se opor às que acha perigosa, a divisão de poderes, que a garantia da liberdade, tornar-se-á um perigo e um flagelo;
b) sem a anuência do monarca e dos ministros, responsáveis pelo seu cumprimento, a lei frequentemente evidenciar-se-á inútil;
c) um poder obrigado a aplicar uma lei, a qual desaprova, rápido perde toda a sua força e consideração;
d) não há pior enfermidade nos governos representativos senão a da multiplicação da lei.

Sustenta o autor a opção pelo modelo legislativo bicameral [14], sob a inspiração aristocrática, à moda da época [15], fazendo-o com um traço de inspiração em Montesquieu [16]. Observa que a democracia tem a excelência das leis, enquanto na aristocracia, a maturidade dos conselhos, e, na monarquia, a presteza da execução, daí a rematar que a junção dessas três qualidades acarreta o melhor possível.

O ideal — diz — é somente concretizável pelo sistema de duas câmaras, “porque sem a segunda não podem as Leis ter aquele cunho de madureza, que deve acompanhar a atos de tanta consequência: por maior que fosse a boa intenção de uma Assembleia, ela não se poderia livrar do entusiasmo, que faz tomar quase sempre medidas precipitadas, o que se previne havendo outra, que a sangue frio, e maduramente pese as suas deliberações” [17].

Controle judicial de constitucionalidade

Ponto de interesse, a retratar o valor que à Constituição era então legado nas monarquias europeias do “Oitocentos”, residia na competência do Parlamento para a interpretação das leis, obstando, assim, que se reproduzisse a criação norte-americana do controle judicial de constitucionalidade (judicial review) [18].

Dessa maneira, o artigo 15º da Constituição Imperial, ao enumerar as atribuições da Assembleia Geral, formada pela Câmara dos Deputados e Senado, dispunha, nos incisos VIII e IX, que àquela competia fazer as leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las, bem assim velar pela guarda da Constituição. Especialmente quanto a esta, o autor a considera de elevado relevo para a divisão de poderes [19].

A transferência de Lourenço Ribeiro, já no ano de 1929, para a cadeira de direito pátrio criminal com a teoria do processo criminal, ministrada no 3º ano do Curso de Ciências Jurídicas [20], porventura contribuiu para que os seus comentários não fossem além do artigo 70 — ou, segundo se referiu Valadão [21], ao artigo 94 —, de modo que a sua análise não chegasse a ultrapassar a organização e funcionamento dos poderes.

O certo, porém, é que não foi omisso quanto a pelo menos o realce de um traço, singular e decisivo, dos direitos fundamentais (direitos civis e políticos), ao compreender que a sua enumeração, bem como a de suas garantias, tal como fez o artigo 179, tem o condão de significar que os poderes constituídos jamais poderão suspender a sua fruição, salvo nos casos assinalados pelo próprio texto constitucional [22].

 


[1] AJA, Eliseo. Introducción al concepto actual de Constitución. In: LASSALLE, Ferdinand. 2ª ed. Qué es una constitución? Barcelona: Ariel, 2012, p. 10.

[2] “un reforzamiento importante del Rey en detrimento del Parlamento, e incluso dentro de éste una pérdida de protagonismo de la burguesía frente a la nobleza, que se reserva a veces una de las Cámaras” (AJA, Eliseo. Introducción al concepto actual de Constitución. In: LASSALLE, Ferdinand. 2ª ed. Qué es una constitución? Barcelona: Ariel, 2012, p. 16).

[3] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 19-26, abril/junho de 1977.

[4] Eis as palavras do autor: “É um princípio de Direito Público Universal, que a força física e moral das Nações está na razão direta da sua população e dos progressos feitos na ciência, comércio, ates e agricultura. Admita-se a intolerância, e veremos logo estancadas todas estas fontes de prosperidade. As Nações, são como os indivíduos, que não podem prescindir de mútuo socorro para o desenvolvimento de suas faculdades. Se, pois, obrigamos a sair do nosso território os filhos do país, se fecharmos os nossos portos aos estrangeiros, tudo por causa de opiniões religiosas, o resultado será ficarmos anatematizados do gênero humano e privados do necessário, útil e agradável, que nos podem subministrar os nossos semelhantes. Em uma palavra, a Nação perseguidora não pode deixar de ser fraca, pobre, estúpida e ignorante, renunciando assim aos seus mais claros interesses, e verdadeira glória (RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 23, abril/junho de 1977).

[5] Enumerando-as, numa tríade argumentativa, o autor expõe as razões em função das quais não se poderia permitir o culto público das religiões não oficiais, a saber: a) porque, desde todos os tempos, o ser humano sempre olhou para os atos religiosos que não praticam com desprezo, considerando-os como ridículos e dignos de zombaria; b) uma vez admitida a uma religião de Estado como imprescindível, esta deve ser mantida, tendo em vista os atos das crenças toleradas, se fossem públicas, contribuiriam para os cidadãos abandoná-la; c) o espetáculo contínuo das demais religiões seria capaz de abalar e pôr em dúvida os espíritos fracos sobre a veracidade da que professam a oficial, inutilizando-se os saudáveis efeitos da fé, e do convencimento interno, com os quais muito lucra a sociedade civil (RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 26, abril/junho de 1977).

[6] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 35-36, abril/junho de 1977.

[7] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 35, abril/junho de 1977.

[8] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 37, abril/junho de 1977.

[9] Aurelino Leal transcreve, por seu digna de leitura, a manifestação do Frei Joaquim do Amor Divino Caneca contra o Poder Moderador (LEAL, Aurelino de Araújo. História constitucional do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2014, p. 133-134).

[10] Indispensável transcrever-se a passagem seguinte: “O Poder Moderador, que é declarado no artigo 98 – a chave de toda a nossa organização política, –  e que vela sobre os demais poderes, não pode deixar de ser um poder de ordem superior aos outros. Ora, se o Poder Moderador é superior aos outros poderes, esses outros não independentes, visto como aquelle tem autoridade para resolver em ultima analyse todas as pendencias dos outros. Se esses poderes não são independentes, a Constituição mentio no artigo 9º Que independencia pode existir entre poderes de categorias differentes, subordinados uns aos outros? Serão independentes do Poder Moderador os outros poderes, que estão obrigados a recorrer a ele, quando houver duvidas sobre suas atribuições?” (BARRETO, Tobias. Preleções de direito constitucional. In: Obras completas – Estudos de Direito, setembro de 1881. V. VII, p. 73).

[11] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 37-38, abril/junho de 1977.

[12] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 39, abril/junho de 1977.

[13] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 44-45, abril/junho de 1977.

[14] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 48-52, abril/junho de 1977.

[15] Um exemplo marcante – e inspirador entre nós – foi a Câmara dos Pares (Chambre des pairs) da Carta Constitucional francesa de 04 de junho de 1814 (art. 24 a 34). O art. 24 do diploma dispunha: “A Câmara dos pares é uma parte essencial do poder legislativo” (La chambre des pairs est une portion essentielle de la puissance législative. Les constitutions de la France. Paris: Dalloz, 2009, p. 200).

[16] MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000, Livro Décimo Primeiro, Capítulo VI, p. 171-172. Tradução de Cristina Murachco. Atualmente, disponível em: https://edisciplinas.usp.br/.

[17] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 49, abril/junho de 1977.

[18] Numa primeira fase, ROSS narra que o espírito revolucionário francês, em obediência a uma rígida separação de poderes, modelou o instituto do réferé legislatif, com a Lei de 16 a 24 de agosto de 1790, cujo art. 12) não autorizava o juiz a interpretar a lei, devendo, em caso de considerar imprescindível uma interpretação, dirigir-se ao poder legislativo, deve estendido pelo Decreto de 27 de novembro de 1790 (art. 21) em caso de conflito entre tribunais diversos (ROSS, Alf. Teoría de las fuentes del derecho – Una contribución a la teoría del derecho positivo sobre la base de investigaciones histórico-dogmáticas. Madri: Centro de Estudios Políticos y COnstitucionales, 1999, p. 90. Tradução de José Luis Muñoz de Baena Simón, Aurelio de Prada García e Pablo López Pietsch). Na França, o modelo foi alterado em 1837, com a configuração do Tribunal de Cassação como um órgão judicial ao qual cabia estabelecer a interpretação da lei de forma praticamente vinculativa aos demais juízes.

[19] O autor assim se expressou: “Este § fertilíssimo em resultados, e sem dúvida um dos mais consideráveis que existem na nossa Constituição. Ele impõe à Assembleia Geral a obrigação de velar pela guarda da Constituição e promover o bem geral da Nação, logo, dá-lhe direito a todos os meios que forem necessários para obter esse fim. É, pois, um princípio cognoscitivo, por onde se pode julgar legais ou não todas as medidas ordinárias ou extraordinárias, que tomarem os representantes da Nação segundo as circunstâncias ocorrentes, uma vez que não vão de encontro à divisão dos Poderes e aos outros princípios constitucionais” (RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 61, abril/junho de 1977).

[20] PESSO, Ariel Engel. A Faculdade de Direito no Recife no Império Brasileiro, Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, v. 92, n. 2, p. 221, dezembro de 2020.

[21] VALADÃO, Alfredo. Lourenço Ribeiro, primeiro diretor e primeiro professor do Curso Jurídico de Olinda e primeiro comentador da Constituição do Império, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 200, p. 119, Julho/Setembro de 1948.

[22] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 36, abril/junho de 1977.

Autores

  • é professor titular da Faculdade de Direito do Recife — UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Doutor em Direito Público. Membro do Iida (Instituto Internacional de Derecho Administrativo e do Idasan (Instituto de Direito Administrativo Sancionador).

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